Os 37 homens ( Os Miseráveis, Parte V – Jean Valjean, Livro I, Capítulo II ) que se encontravam na barricada da rua de Chanvrerie, nas pri...

Ideal e desinteresse

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Os 37 homens (Os Miseráveis, Parte V – Jean Valjean, Livro I, Capítulo II) que se encontravam na barricada da rua de Chanvrerie, nas primeiras horas da manhã de 6 de junho de 1832, ali estavam motivados pelo ideal. Haviam sido 50 (“Ces cinquante hommes en attendaient soixante mille” – “Estes cinquenta homens esperavam sessenta mil”, Parte IV – L’idylle rue Plumet et l’épopée rue Saint-Denis, Livro XII, Capítulo VII). Reduziam-se a olhos vistos, mas não abandonavam o que buscavam atingir. Que ideal logravam conseguir estes homens? O ideal de construção de uma sociedade justa, de acordo com o discurso de Enjolras.

O jovem participante da Sociedade dos Amigos do ABC discursa não por um projeto pessoal e mesquinho de poder, mas por uma sociedade viável, por um projeto de civilização que passa, necessariamente, pela educação.
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Não se trata da falação vazia dos danosos e sempre presentes salvadores da pátria, mas da firme convicção do cidadão que sabe o caminho do processo civilizatório, lutando por ele e se entregando de tal modo que, por ele, decide morrer. Do cidadão que sabe ser a educação a única luz possível de uma aurora venturosa, que poderá acabar com a escuridão da ignorância, geradora da desigualdade e da injustiça.

No momento que precede o ataque com os canhões, os homens são apenas 26 (Parte V, Livro I, Capítulo XVIII). Victor Hugo compara toda essa ação heroica não só com as Termópilas, a famosa resistência espartana dos 300 comandados por Leônidas, no desfiladeiro das “portas quentes”, contra o exército de Xerxes, mas também com o naufrágio da Medusa, que mereceu um quadro célebre de Géricault, exposto no Louvre. A barricada de 1832 foi uma grandeza fadada ao fracasso, não pelo delírio de lutar contra moinhos de vento, mas pelo apelo à resistência que reclama a liberdade:

À un instant donné, toute barricade qui tient devient inévitablement le radeau de la Méduse.
"Em um determinado momento, qualquer barricada que resiste torna-se inevitavelmente a jangada da Medusa."
Parte V, Livro I, Capítulo II
On ne songe pas à Don Quichotte, mais à Léonidas.
"Não sonham com Dom Quixote, mas com Leônidas."
Parte V, Livro I, Capítulo 20
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É nesse momento crucial que Victor Hugo nos deixa algumas lições decorrentes do ideal verdadeiro de todos que estavam atrás da barricada, embalados pelo discurso de Enjolras. Que estas lições possam nos servir de reflexão:

Les races pétrifiées dans le dogme ou démoralisées par le lucre sont impropres à la conduite de la civilisation.
"As raças petrificadas – ou fossilizadas, se quiserem – no dogma ou desmoralizadas pelo lucro são impróprias à condução da civilização."
Livro V, Parte I, Capítulo XX
Les peuples comme les astres ont le droit d’éclipse. Et tout est bien, pourvu que la lumière revienne et que l’éclipse ne dégénère pas en nuit. Aube et résurrection sont siynonymes. La réapparition de la lumière est identique à la persistance du moi.
"Os povos como os astros têm direito ao eclipse. E tudo vai bem, desde que a luz retorne e que o eclipse não degenere em noite. Alva e ressurreição são sinônimos. O ressurgimento da luz é idêntico à persistência do eu."
Idem
Le vrai nom du dévouement, c’est désintéressement”
"O verdadeiro nome da devoção é o desinteresse."
Idem
Il y a des gens qui observent les règles de l’honneur comme on observe les étoiles, de très loin”
"Há pessoas que observam as regras da honra, como se observam as estrelas, de muito longe."
Parte V, Livro I, Capítulo XXI

Preconizador de uma revolução pacífica, Victor Hugo não fica só em palavras vãs, indo até a ação, com propostas exequíveis, dentre elas, mais uma vez, a educação como o principal meio de mudar a sociedade. A sociedade que não investe continuamente em educação não terá como abrigar e proteger os mais frágeis:

Une raison, à jeun de science et de sagesse, maigrit. [...] S'il ya quelque chose de plus poignant qu’um corps agonisant faute de pain, c’est une âme qui meurt de la faim de lumière”.
"Uma razão jejuna de ciência e de sabedoria emagrece. [...] Se existe alguma coisa mais pungente do que um corpo agonizante por falta de pão, é uma alma que morre da fome de luz."
Os Miseráveis, Parte IV, Livro VII, Capítulo IV
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Eis a solução, sempre negligenciada pelos donos dos poderes que apostam todas as fichas na ignorância e na superficialidade, sabendo que haverá quem dobre a sua aposta. Um projeto claro e exequível de educação universal e de qualidade – e Hugo sabia disso – custa menos do que a manutenção dos luxos e das ações perdulárias do executivo, legislativo e judiciário.

Até quando ficaremos só no discurso vazio, sem ter coragem de amarrar o guizo no pescoço do gato?

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