Deixei de lado a minha aversão à histeria coletiva, sempre que surge um filme dado a polêmicas. Custo a vê-lo e, depois de assistir, sint...

Para onde olhar?

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Deixei de lado a minha aversão à histeria coletiva, sempre que surge um filme dado a polêmicas. Custo a vê-lo e, depois de assistir, sinto uma decepção profunda com tanta energia gasta em torno de nada. Pois bem, deixei de lado isto, que alguns podem chamar de preconceito, e fui ver o badalado filme Não olhe para cima (EUA, Adam McKay, 2021). Desta vez, não me decepcionei com o filme, achei-o, como entretenimento, razoável, histriônico, às vezes, mas sem a sustentação que muitos nas redes sociais desejaram lhe dar, querendo particularizá-lo, como se a película fosse uma alegoria específica do Brasil e não de um momento por que passa o mundo, hipnotizado pela força sedutora das banalidades midiáticas.
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9 de janeiro de 2022 ▪ Manifestantes protestam nas ruas de Bruxelas e Paris contra a obrigatoriedade de vacinação.
Agora mesmo, enquanto escrevo este texto vejo a notícia das manifestações contra a vacinação, na Europa, em países como Alemanha, Bélgica, Áustria e República Tcheca.

O filme é uma sátira razoável, a respeito de como não nos enxergamos, de como nos recusamos a nos ver a nós próprios. Só olhamos para nós nos achando maravilhosos e querendo ser vistos pelos outros, de modo que confirmem a maravilha que somos. Diante disso, nos expomos nas redes sociais e criamos memes à exaustão sobre qualquer coisa, porque tudo virou encenação, tudo se tornou midiático e, sem trocadilhos, meteórico. O meme de hoje já não serve amanhã, pela necessidade de um brilho novo a cada dia.

Perdemos a nossa noção crítica e a colocamos nas mãos de artistas de qualidade duvidosa – ainda que tivessem qualidade artística! –, cuja produções, o mais das vezes, são grotescas e sem conteúdo, porém com mais projeções e mais críveis do que cientistas ou pessoas de sólida formação intelectual. A ciência, por outro lado, tornou-se um detalhe para os muitos que desejam se expressar apenas midiaticamente. Veja-se, por exemplo, que no filme em questão, até o próprio Dr. Mindy, em um dado momento, capitula à sedução da mídia e da sua representante maior do mundo da banalidade... Para mim, fica claro que a ciência passou a ser um joguete, nas mãos dos assíduos frequentadores do mundo mágico das redes sociais. Quando ela é conveniente é sempre bem-vinda; quando é uma verdade inconveniente, é desacreditada.

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O filme Não olhe para cima nos mostra essa banalidade em que vivemos atolados, de celular na mão, com os olhos mergulhados na tela, em busca da aceitação do outros. Mostra também a dissociação da política com o mundo real, que não é uma concepção de político A ou B, mas, de modo geral, de todos os políticos, de olho nos índices de pesquisa, muitas delas fabricadas. Veja-se, por exemplo, que estamos às vésperas de mais uma eleição presidencial e não há um só político com um projeto viável para a Educação, empresa plenamente realizável. Pensem, então, qual seria a medida a ser tomada, se acontecesse o apocalipse anunciado que o filme mostra...

Mas o filme tem mais a mostrar, de maneira despretensiosa e sem invencionice narrativa: nós alimentamos as redes sociais com tantos dados pessoais, que os algoritmos criados pelas empresas sabem mais de nós do que nós mesmos.
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Meryl Streep é a presidente Orlean, no filme Não olhe para cima (2021)
Isto é real e preocupante. O resultado disso é a perda de nossa privacidade. Abrimos mão dela e depois vamos reclamar que estão sendo invasivos. A partir da compreensão desse fato, o que menos me preocupou no filme foi o cometa. Aliás, não creio que ninguém tenha ficado em tensão com a possibilidade do desastre. O filme não tem como finalidade causar essa empatia. Por outro lado, não creio que o mundo tenha, atualmente, tecnologia para deter um cometa da magnitude apresentada no filme, de cerca de 9km de diâmetro. Se tiver, não creio que consiga viabilizá-la em seis meses. Ou a tecnologia existe e, paralelamente, há todo um trabalho de prevenção para um caso desses – entendam que a questão não é “se” vai acontecer, mas “quando” vai acontecer – ou só teremos que rezar para que algo desvie o cometa da rota.

Para os que pensam que o filme trata do Brasil ou simplesmente de negacionismo, observo que há uma questão maior, que a obtusidade córnea, como diria Eça de Queirós, não deixou perceber: os líderes dos países ricos e importantes politicamente, num caso desses, morreriam com a população ou, não importa que credo político preguem, teriam um plano B, fugindo em naves espaciais ou para abrigos em bunkers previamente preparados para o fenômemo? Fico com a segunda opção.

Em excelente texto para este Ambiente de Leitura Carlos Romero, Sonia Zaghetto, uma de suas colaboradoras, publicou Não olhe para cima, olhe para o espelho, em que acentua a discussão bizantina que foi criada após o lançamento do filme. E disse-o muito bem. Cegas pelas escolhas partidárias, as pessoas, no Brasil, sobretudo, enxergam no filme apenas uma sombra tosca do que ele é. Discussões bizantinas são o forte das redes sociais, cujos frequentadores só pensam em se expor, para se acharem melhor do que as outras,
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Sonia Zaghetto é jornalista e escritora; autora do livro História de Oiapoque e coautora de A Página em Branco dos Teus Olhos (em parceria com o dramaturgo Cláudio Chinaski).
tendo como grande argumento, que acham inquestionável e insofismável, o seu credo político.

A maior parte dessas discussões inúteis é sobre o chamado “terraplanismo”. O que muda na vida das pessoas se a Terra é plana ou se é esferóide? Nada. Não muda um “a”. Ainda assim, há quem se descabele, deixando de lado as discussões que realmente importam, como a cobrança de uma política de educação para todos, única via de mudança de nossas pobres vidas.

Sonia Zaghetto também nos brinda com uma excelente conceituação, a partir do título do filme, que ela aproveita para o título de sua crônica: Não olhe para cima, olhe para o espelho. Sim, olhar para o espelho é mais difícil do que olhar para cima. Tentar ver a si mesmo e querer mudar a sua própria concepção de vida parece empreitada mais difícil, quase impossível, do que querer mudar o imutável. Se não conseguimos nos ver, se só toleramos a nossa imagem quando refletida no mundo irreal das redes sociais, onde aparecemos perfeitos, dando lição nos outros, com que finalidade olharemos para cima, se não veremos nada e não mudaremos nada?

Enquanto nos ignoramos, ficamos à espera da mais nova banalidade diária, patrocinada pelos diversos credos partidários, a que seguiremos como rebanho a caminho do matadouro, feliz por haver deixado a estreiteza do curral.

Sonia, obrigado pelo mote.

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