Às vezes, a saudade fornece o tempero faltoso àquilo que nos vai à boca. Pode ser qualquer coisa: um fígado acebolado, uma galinha de cabidela, um bolo, um sorvete. Mas, para que assim ocorra, é necessário que tenhamos a mente e os pés no lugar onde um dia vivemos nossos melhores momentos. É preciso que o vento nos sopre um sotaque, um tom de voz, uma melodia. E que o sol ilumine paisagens que nunca nos saíram da cabeça nem do coração.
Tragam-nos o instante e as circunstâncias esses restinhos de passado, reanimem antigas memórias e nada mais faltará ao prato, à taça, aos cremes e fatias que então provemos,
Mundial Lanches
A lembrança dos companheiros que um dia tive nos meus percursos a pé até o bairro da Torre de volta para casa, noite alta, desde a velha Redação do jornal ocasionalmente instalada na Rua João da Mata, dá ao cachorro-quente que hoje peço em Jaguaribe o melhor tempero da cidade.
E ninguém venha me dizer – como, me dizem os filhos – que a filial da Praia serve o mesmo pão, a mesma salsicha, a mesma carne moída, as mesmas verduras. E que, para tanto, dispõe de equipe igualmente treinada na matriz. Não adianta, nada me convence de que tenho o mesmo tempero nos dois ambientes.
Mania de velho? Pode ser, pois os jovens não têm tempo de vida suficiente para as grandes saudades. Somente mais tarde terão seus apegos completos e absolutos. Mal sabem, coitados, o que os anos lhes reservam. Enquanto isso, adultos já próximos dos cabelos grisalhos, dão-se a zangas de crianças. Não veem motivo para sair da frente da sorveteria, à beira-mar, em busca daquela que a mesma firma mantém na Marechal Deodoro, cinco bairros depois, quase no Centro.
Jeshoots
Ela, é claro, me compreende e comunga da mesma preferência mesmo quando o convite à Friberg coincida com uma ou outra arenga mais séria. Sorvete, meus queridos, é caminho para a harmonia. E tem o atalho de certas mesas.
Falei da incompreensão dos jovens. Creiam, isso não serve para os netos, desde que tenham pouca idade. Nos seus cinco ou seis anos, diante de uma casquinha de goiaba com coco,
Snap
Saudade completa qualquer tempero, repito. Cabidela, por nela falar, tem origem da qual sei um pouco. Li que Gilberto Freyre atribuía à influência francesa esse capítulo da culinária portuguesa que nos chegou com as galinhas embarcadas na frota de Cabral. Aquelas que, nos relatos de Caminha, assustavam os índios. É prato que leva sangue e vinagre. E é prato que já teve o melhor dos seus sabores quando era feito na cozinha da minha infância. Nunca mais a tive tão boa, no que pesem os meus 44, quase 45 anos de casado. Ôpa, acho que acabo de cometer uma enorme inconfidência. Terei que voltar ao sorvete, apesar do diabetes.
Por falar nisso, saí em perseguição a um doceiro quando estive em fim de semana na casa que o irmão mais novo construiu no lugar onde tivemos pai e mãe vivos e os avós, tios e primos por perto. Alcancei-o uns 200 metros depois, já na calçada da pracinha onde ele se postou a uma distância segura, longe das vistas e da briga da minha mulher mais preocupada do que eu com meus níveis de açúcar.
G. Prado
O homenzinho arriou o cavalete em “x” que tinha nos ombros, retirou da cabeça e pôs sobre ele o tabuleiro cuja tampa se abria em ângulo de uns 100 graus e exibiu o doce de coco com a textura, a cor e a consistência corretas, nem muito mole nem muito duro, brilhante, pegajoso e com filetes de mel.
D. Sertão
Sei pouco das cabidelas e menos, ainda, de doce americano por mais que saiba o que leva e como é preparado. Tem coco ralado, açúcar e limão, não mais do que isso, em cozimento bem demorado até o ponto certo: aquele em que larga do tacho no fogo a lenha e, quando aglomerado, toma tempo para se espalhar. Sim, é preciso que nos venha aos lábios, também, com um saborzinho levemente esfumaçado, um cheirinho distante dos pés de pau caídos das capoeiras do interior.
O que não consigo explicar é o adjetivo “americano”. Afinal, os do Norte não são dados ao cultivo e colheita de cocos, a não ser, talvez, no meio do Pacífico, em ilhas do Havaí por eles capturadas e não mais devolvidas. Mesmo assim, aquele povo, quase por inteiro, sequer bebeu a água rica em vitaminas e sais minerais que nos propicia um coco verde.
PxH
Contudo, importante mesmo foi constatar que o quebra-queixo daquela praça era, de fato, o doce de Manuel. Assim não seria, certamente, se o doceiro que então me servia não tivesse o tamanho, os passos miúdos e a cabeça de algodão do meu amigo. “Pai e filho?”, perguntei ao dono daquele tabuleiro depois de inteirá-lo das minhas saudades e recebi, um tanto decepcionado, resposta tão miúda quando ele: “Não”.
Foi quando reparei duas almas diferentes em corpos e gestos similares. Não importava, pois o menino que um dia eu fui tinha de volta o seu doce.