Não há pôr do sol como ao pé de “O Beijo”, de Victor Delfín, na Miraflores de Mário Vargas Llosa. A poucos metros de uma tragédia em q...

A moça que lavava versos

Não há pôr do sol como ao pé de “O Beijo”, de Victor Delfín, na Miraflores de Mário Vargas Llosa. A poucos metros de uma tragédia em que 35 mulheres atiraram-se para o precipício do Pacífico… por amor. Há tragédia e poesia nesta Lima de céu quase sempre cinza.

Há certa frustração também, diante dos escassos vestígios de Llosa, especialmente numa Miraflores imortalizada por sua literatura. Vamos saber que ali perto há seu apartamento para as suas poucas idas a Lima. Um lugar que passa despercebido.

O Beijo (escultura de Victor Delfín) / Helder Moura na Casa da Literatura Peruana / Miraflores de Vargas Llosa Gaby Fil Φ / Helder Moura / McKay Savage
Vamos encontrar algo a mais, nas proximidades do Convento de São Francisco, no distante Centro Histórico de Lima. Há, por ali, para quem bem observar, a Casa da Literatura Peruana, numa estação ferroviária, com registro de vários escritores e poetas. Llosa está num canto da exposição.

E quem reparar nas escadarias que dão acesso ao andar de baixo, vai verificar que, em cada degrau, há versos de poetas peruanos, alguns marcados pela melancolia da cidade, outros pela defesa dos povos colonizados com a violência própria da colonização.

Escadaria da Casa da Literatura Peruana Helder Moura
Naquele dia, uma moça cantarolava alguma música inca, enquanto lavava as escadarias, tão absorta que não percebia como eu observava seu ofício, e não deixava de enxergar certa ironia com suas esfregadas nos versos dos degraus, enquanto cantava.

Não pude deixar de me aproximar e indagar: “Você está lavando os versos, com força. Não acha que vai terminar apagando?” Ela, então, pega de surpresa, suspendeu o trabalho e me olhou intrigada demonstrando certo incômodo: ”Apagar? O senhor é poeta por acaso?”

Eu, pego de surpresa, apenas gaguejei: “Não sei se sou…” Ela, voltando ao seu ofício tranquilamente: “Devia saber que, mesmo sendo lavados, se forem realmente versos nunca irão se apagar…” Sem mais rimas, não me restou nada mais do que ir embora, com aquelas palavras versejando em torno.

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  1. Poeta, escritor, professor, jornalista e muito curioso

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