Sou filho da cidade de Patos, no Alto Sertão paraibano. Nasci lá por um acaso: meu pai, Francisco Espínola, era o juiz de direito. Até o filho número 5, a minha mãe, Nair, dirigiu-se para a sua terra natal, Misericórdia, hoje Itaporanga, onde estava a sua mãe, Salomé Pedrosa, que era parteira voluntária e lhe dava todo o apoio necessário.
Mas, parece que nasci antes do tempo previsto, e não deu de Mamãe correr para lá. Meses depois o meu pai foi sendo transferido de comarca em comarca, até que em 1952 foi promovido para a Capital, João Pessoa.
Patos (Paraíba) ALCR
Mas nem por isso deixei de gostar do Sertão, pois as nossas férias eram passadas lá, geralmente em Misericórdia, mas também em Pombal, cidade onde meu pai nascera.
Macondo é uma cidade fictícia do livro Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques. Seus biógrafos dizem que ele se inspirava na sua cidade natal, Aracataca, que era de onde vinham os personagens e os fantasmas da sua obra.
Misericórdia está para mim como Macondo está para Gabriel Garcia Marques. A grande diferença é que a minha cidadezinha existiu. Hoje é Itaporanga, uma cidade próspera e desenvolvida, e pólo regional no sudoeste da Paraíba.
Mercado Público de Misericórdia @itaporangapb
Como meu pai não tinha carro e a família era enorme, nós íamos para lá no ônibus da Viação Gaivota. Naquele tempo não havia rodovia asfaltada, assim eram 12 horas de viagem. Os mais velhos chegavam exaustos, mas os mais novos só se divertiam. Vez por outra um vomitava pela janela do ônibus, mas isso era coisa de menino, mesmo. O motorista da Gaivota invariavelmente era João Mouco. Este era um excelente profissional. Era tão bom que diziam que ele substituía o segundo motorista com o ônibus andando!
@Paraíba Bus Team
A princípio a nossa avó, que carinhosamente chamávamos de Mãí, nos acomodava na casa dela. Porém, com o crescimento dos netos, ela separava uma de suas casas, mandava fazer uma faxina para acomodar os mais velhos. Mais exatamente os maiores de 14 anos, idade que passou a ser uma meta a ser batida por nós.
A casa de Mãí e Paí, que era o meu avô Josué Pedrosa... Ah! Essa casa era uma das atrações das férias! Cheia de quartos e salas, situava-se na Praça João Pessoa, ao lado da Prefeitura de Misericórdia. Diferenciava-se das demais da praça por ter uma fachada mais moderna. Porém mais feiosa.
Praça João Pessoa, vendo-se o obelisco (esq), a casa de Josué Pedrosa e a Prefeitura de Itaporanga @itaporangapb
Certa noite, numa das férias de julho, acordei-me de madrugada tiritando de frio. De repente ouvi Humberto dizer, no quarto vizinho: “Ô frio da gota!” Lá da sala veio a voz do primo Clóvis, que tinha insônia crônica, responder: “É mesmo”
Caí na risada acordando Mamãe, que me deu um beliscão: “Vá dormir, menino!”
De dia as salas e quartos eram transformados em rodas de baralho. O jogo principal era o pif-e-paf, onde o objetivo era formar três trincas de cartas. As apostas eram a dinheiro.
Marcos Nagelstein
A porta da frente tinha uma peculiaridade: a chave foi perdida NAS FÉRIAS DE 1960! E até Mãí morrer, em setembro de 1971, a porta ficou todos esses anos sem ser trancada.
Nas férias sempre havia um ou dois hóspedes levados por alguns dos netos. As mesas de refeição eram por turmas. Inicialmente as mulheres e crianças. Nas seguintes, os rapazes e os tios.
Misericórdia (PB) @Pedro Saulo B. de Mello
“Você é convidado de Paulo Fernando?”
“Não”
“De João Neto?”
“Não”
“Então é convidado de Clóvis!”
O rapaz respondeu, encabulado:
“Seu Josué, eu não sou convidado de nenhum dos seus netos. Acontece que eu estou numa pensão, e vi que aqui era tão animado que passei a fazer as refeições...”
Cely C. Azevedo
“Ele era justamente o mais educado: era o único que nunca reclamava da comida!”
Como falei, a casa era uma das mais modernas da praça, acho que modelo anos 1950. Além das salas grandes e de muitos quartos, ela tinha um terraço amplo onde ficavam os potes de água, em frente aos banheiros.
Todos os dias o botador de água enchia os potes. Acima destes um cabideiro onde eram pendurados os canecos para tirar a água do pote. Os canecos tinham as bocas pontiagudas e amoladas, que era para ninguém beber neles.
Cely C. Azevedo
A casa de meus avós tinha “extensões” que eram muita importantes para os netos de férias. Vale lembrar as pequenas casas com quartos repletos de rapadura, até o teto. E também de sacas de arroz, pois meu avô tinha uma despolpadeira de arroz na rua do cabaré. Este era chamado de rói-couro, pela minha avó Salomé.
Eles também eram proprietários de um engenho de cana-de-açúcar. A moagem, temporada de colheita da cana e preparação dos subprodutos, era uma festa à parte, quando lá no engenho se reunia toda a família e convidados para fazer rapaduras, alfenim, e tomar caldo-de-cana.
@manufaturadeideias
A casa deles outrora tinha sido a morada inicial dos meus avós, até que estes se mudaram para a casa definitiva, na mesma Praça João Pessoa.
Esta casa tinha como maior atração um sótão mal-assombrado, repleto de móveis velhos, e um gramofone original, porém quebrado. E arroz, muito arroz espalhado, além de rapaduras soltas. Dizem que à noite lá aconteciam coisas.
Cely C. Azevedo
Havia as casas das tias Doralice e Jaci. E a do tio Jupi, o Edgar Cavalcanti Pedrosa. Em todas elas nós éramos muito recebidos e bem tratados.
As nossas férias eram, na realidade, um grande reencontro das moças e rapazes que estudavam fora, geralmente na Capital, porém alguns estudavam em Campina Grande, outros em Recife.
O programa básico era: pela manhã, banho de rio, mergulhando no Pôço do Trocato. À tarde, futebol, que terminava na sorveteria de Firmino, na Avenida Getúlio Vargas, chupando picolé de manga ou maracujá. Ou na sorveteria de Walter, tomando cerveja ou cuba libre, que era rum com coca-cola.
Av, Getúlio Vargas (Misericórdia) Guthierri Soares
Outra alternativa que a cidade oferecia era comer doce de leite cortado, no café de dona Maria Pinheiro, avó de Zeórges. Era o ponto preferido pela geração mais velha. Meu irmão primogênito, João Neto, gostava de ir se encontrar com amigos no bar Cova da Onça, de Amadeu. Nos primeiros tempos este não bebia. Mas de tanto insistirem passou a experimentar umas bebidas. Coitado: tornou-se alcoólatra, perdeu o bar e os amigos, aqueles mesmos que o puseram nessa vida e o abandonaram. A humanidade pode ser, realmente, cruel.
Cely C. Azevedo
À noite, após o jantar às vezes tinha reunião na ACREI: Associação Cultural e Recreativa dos Estudantes de Itaporanga. Esta era uma agremiação fundada pelos irmãos Fonseca, nossos primos: Edmilson, Jesus, Tonhe e Dehon. Eram atividades recreativas e culturais, que ajudavam a movimentar a estudantada.
Nos sábados e domingos, após a missa na Matriz seguíamos para a praça desta, onde rolava o quem-me-quer: desfile das garotas namoráveis, braços dados, subindo e descendo a praça.
Depois seguíamos para a sorveteria de Walter, onde sempre tinha um assustado (encontro dançante). Era ótimo, invariavelmente ao som do lançamento do último LP de Roberto Carlos 👉🏽 .
Cely C. Azevedo
A praça era uma continuação das diversões noturnas. Lá nos reuníamos para conversar em torno do Pirulito, que é como chamávamos o obelisco no canteiro central, até a hora de recolher.
Muito engraçados eram os festivais de piadas, geralmente puxados pelos irmãos Cleanto e Nonato Pinto. Mais divertidos, ainda, eram os concursos de peidos: o mais sonoro, o mais original, o mais alto, e o mais fedorento, que acabava a brincadeira. Depois cada um ia para a sua casa.
Igreja Matriz N. S. da Conceição @itaporangapb
Só o potó, cuja urina provocava queimaduras de até terceiro grau, e o barbeiro urbano, que foi extinto pela antiga SUCAM, é que não havia na mesa da minha avó. Seria o paraíso para o primo Hélio Espínola, que é entomologista. Ou para um tamanduá.
Lynn Amanita
Como toda boa cidade do interior, Misericórdia também tinha os seus doidos. Eram, segundo Ana Cândida, figuras pobres, muito excêntricas, cada uma com a sua neura, hoje denominada TOC.
Os que mais destacaram, à época, foram: Zezinho Doido, nosso parente. Ele não deixava ninguém completar um círculo em volta dele, e ficava girando em torno de si, acompanhando quem tentava fechar a roda.
Kycia Baar
O Dr. José Alves Neto, nosso querido primo Zé Neto, recorda-se também de Teretetei, que saía correndo pelas calçadas da cidade dando “tiros”.
Mas os dois mais bem votados foram Açoite e Zé de Tachim.
Zé de Tachim era o mais completo dos, digamos, excêntricos de Misericórdia. Ele contava todos os passos que dava para ir a algum lugar. Nunca saía de seu trajeto. Certa vez o saudoso Nonato Pinto, que nos deixou recentemente, com quem às vezes gostava se rivalizar, sentou-se ao meio-fio da praça justamente em cima do lugar que Zé de Tachin subia na calçada. Este ficou parado do outro lado da rua, aflito porque não podia atravessar. E só conseguiu quando Nonato saiu!
Celyn Kang
Açoite era um doido itinerante, pois ele passava temporadas em várias cidades do Vale do Piancó. Mas freqüentava, também, Patos e João Pessoa, como testemunhou Gilson Melo:
“Tem muitos anos, eu trabalhava numa agência do Banco Industrial de Campina Grande, na Barão do Triunfo.
Açoite - me parece que era de Patos, e eventualmente vinha a João Pessoa. Entrava no banco assobiando, de uma maneira que eu nunca tinha ouvido e nunca mais ouvi. Parecia em ‘duas vozes'!
Depois que recolhia o dinheiro que conseguia, dizia: ‘Quero que Deus abençoe vocês todos (ou outra coisa assim). Já para mim, quero que um fenemê me atropele, logo que eu saia na rua!'"
Pois é, esse era o jeito de Açoite ressaltar o seu agradecimento: jogando praga em si mesmo.
Mais antigo e freqüentador de Itaporanga do que eu, o primo Jesus Fonseca traz à baila muitas outras figuras “excêntricas”:
“Cafuringa: que quando apertava o juízo, colocava os dedos no ouvido e saia correndo pelas calçadas emitindo sons, as vezes, calmos, muitas vezes, barulhentos. Degredo: apareceu em Misericórdia, vindo não se sabe de onde. Era calmo, com semblante alegre, um sorriso sem expressão.
Baptista Ferr
‘Degredo quer o que?' ele respondia:
‘Quero a cocada de Creuza!'
Creuza de Tiburtina: era uma vendedora de cocada pelas ruas de Misericórdia. Não se sabe precisar a qual cocada ele se referia.
Raimunda: chegada das bandas do Ceará se adaptou à cidade, vindo, inclusive, quando se acalmava, a trabalhar como doméstica. Geralmente, ela ficava na casa de Valfredo e Praxedinha, pais de Vanilton, Wilton e Valqúiria. Quando em crise, saia pelas ruas falando que estava com a Alemanha na cabeça.
Zé Marcelino: natural de Olho D'água, perambulava pelas ruas de Misericórdia. Era perigoso, gostava de jogar pedras nas pessoas, principalmente, naqueles que o incomodava.
Ian Barth
Gonzaga Doido: este talvez tu tenhas conhecido. Era natural de Boaventura, da Família Alves. Durante a semana vendia pão pelas ruas ou cocadas. Saia quase que cantando, 'cocada boa de côco, olha a cocada boa de côco é quinhentos reis'. Na venda do pão, ele soltava o grito 'pão doce, pão aguado, flor de pinha, mão de onça, pão crioulo'!”
O impressionante dele é que sabia ler, mas não sabia escrever. Aos sábados, na feira, ele espalhava dezenas de versos de cordel pelo chão e ficava com um na mão, cantando a estória. Quando chegava ao meio da leitura, ele parava e falava para a matutada que o cercava para ouvir seu canto:
‘Só continuo se comprarem meus versos, ajude o pobre Gonzaga!'
Sumiu de Itaporanga e foi visto por Beca de Lindalva, cantando seus versos na Praça da Sé, em São Paulo.”
Vista da Serra do Cruzeiro
@euamoitaporanga
@euamoitaporanga
Fim de férias, retornávamos à João Pessoa mais cansados, porém muito satisfeitos com as aventuras, os namoros e as amizades. Viajávamos com a sensação de saudade, jurando que ia voltar.
Quem garantia que não perderíamos o ônibus era o Velho Chicó, que passava a noite acordado, dizem que jogando, e de madrugada nos acordava batendo com um cassetete na janela.
Imagino que deixávamos a nossa avó, Mãí, e Pedrosa, a governanta da casa, exaustas porém muito aliviadas, com saudades dos seus favoritos.
Nos dias atuais, com o modernismo e a internet afastando a convivência física, tornando “modernas” mesmo as cidades menores, acho muito difícil se encontrar outra “Misericórdia.” Não com o potencial de fantasia que a realidade de minha Misericórdia teve.
Vista de Itaporanga em 1950 Guthierri Soares