“Dizes: “Eu vou para outras terras, eu vou para outro mar. Hão de existir outras cidades melhores do que esta. De todo o esforço feito – estava escrito: nada resta e sepultado qual um morto eu tenho o coração. Até quando vai minha alma ficar nesta inação? Onde quer que eu olhe, para onde quer que eu volte a vista, a negra ruína de minha vida é o que se avista, eu que anos a fio cuidei de a estragar e dissipar”.
“Não acharás novas terras, tampouco novo mar. A cidade há de seguir-te. As ruas por onde andares serão as mesmas. Os mesmos bairros, os andares das casas que irão encanecer os teus cabelos. A esta cidade sempre chegarás. Os teus anelos são vãos, de para outra encontrar um barco ou um caminho. A vida que dissipaste aqui, neste cantinho do mundo, no mundo inteiro é que a foste dissipar”.
Estes versos são de Konstantinos Kaváfis, poeta alexandrino de língua grega, que Lawrence Durrell, o sofisticado escritor e diplomata inglês, tornou famoso ao registrar em “O Quarteto de Alexandria”, e que o meu querido amigo José Paulo Paes nos tornou acessível em português, graças a sua magnífica tradução direta do grego moderno. Nascido em 1863, morto no dia em que completou 70 anos, de câncer na garganta, o poeta deixou obra escassa e torturadamente corrigida, mas sua passagem foi marcante, talvez porque, como todo poeta de primeira linha, foi capaz de traduzir – num sentimento aparentemente pessoal – o sentimento do mundo. Eu, pobre mortal, que o conheci depois de completar 30 anos, teria morrido na ignorância se não houvesse lido este poema, que talvez seja o que melhor resuma o sentimento universal de que uma cidade, aquela onde nós passamos os melhores anos de nossa vida, acompanhará eternamente nossos passos.
Não importa se esta cidade seja a mais bonita, que tenha a beleza plástica do casario barroco refletido no espelho cristalino do rio Douro, como a cidade do Porto, no Norte de Portugal, ou o sensualismo curvilíneo do namoro permanente entre o mar e a montanha, como o Rio de Janeiro. Não importa também que suas pedras contem histórias milenares, como as sopradas pelo muro de Roma. Nem que transpire romance, como Veneza, ou história, como Paris, ou civilização, como Londres. O que importa mesmo é esta sensação de que somos seguidos permanentemente por emoções que já vivemos e que não podemos transferir. Importa mesmo é que, como a pobre aldeia de San Marcos, no Texas, na visão do jovem, bonito e charmoso Sam Shepard, o maior dramaturgo americano de hoje, a cidade seja “talhada por dentro, como todo o resto”.
San Marcos (Texas) Larry D. Moore
Guillermo Cabrera InfanteDaniel Mordzinski.
Pouca gente aqui, talvez saiba, mas a verdade é que, como Rosil Cavalcanti, como Jackson do Pandeiro e como Elba Ramalho, eu sou campinense não nascido em Campina Grande. Sou de um burgo pequeno, perdido no armo do sertão, no meio de algodoais decadentes e de reses esquálidas. Mas Uiraúna, Belém do Rio do Peixe, a pequena cidade dedicada a Jesus, Maria e José, não significa para mim tudo o que Moguer representou para o poeta Juan Ramón Jiménez, prêmio Nobel de Literatura em 1956. Arrancado de sua aldeia andaluza de casario branco, plantada num morro, o poeta fez o largo caminho da recuperação de suas origens, cantando em musical prosa poética a pureza primitiva de sua busca universal da infância. Para Jiménez, Moguer sempre foi um paraíso perdido. Ele já havia escrito:
“Quando eu era menino-Deus, era Moguer, este povoado, uma branca maravilha; a luz com o tempo dentro. Cada casa era palácio e catedral cada tempo”.”
O poeta, que pediu para viver o tempo inteiro e morrer sendo menino-Deus em Moguer, na província de Huelva, na mesma Andaluzia de Frederico Garcia Lorca, na verdade viveu nos Estados Unidos, em Cuba e em Porto Rico, onde morreu em 1958. Mas o prólogo de Elegias Andaluzas valeu por este desencontro trágico. Ele escreveu:
“Arruinado e distante, eu farei por ti, Moguer, no ideal, o que não quiseram fazer materialmente os que te manusearam iniquamente, os astuto, os presunçosos, os egoístas. Os que não te deixaram fazer algo, irmão Eustáquio, nem, contigo, aos bons moguerenhos. Te levarei, Monguer, a todos os países, e a todos os tempos. Serás por mim, minha pobre aldeia, a despeito dos agiotas, imortal”.
Meu próprio pueblo não será imortal, por mais que esteja presente em minha carne, no sangue que corre em minhas veias, nas lembranças que ao filho ingrato já começam a escassear.
Por um desses feitiços, que só Campina Grande, esta grande falsificadora, é capaz de fazer, Uiraúna é uma presença guardada num baú de lembranças, não me segue os passos como os fantasmas de Moguer que atravessaram o
Igreja de Jesus Maria José
PMCG
PMCG
Mas a vida é uma bagagem permanente. É impossível fugir desse destino de Sísifo. Fico a imaginar se Jorge Luis Borges, em sua luminosa cegueira, tivesse vivido em Campina Grande, tivesse, como eu, sentido o cheiro de pão da Panificadora das Neves nas madrugadas em que eu ficava ali na esquina da Cardoso Vieira com Venâncio Neiva ouvindo a valsa A Rosa,
R. Cardoso Vieira MS_Art
“O arrabalde é o reflexo de nosso tédio. Meus passos claudicaram quando iam pisar o horizonte e fiquei entre as casas, quadriculadas em quarteirões, diferentes e iguais, como se fossem todas elas monótonas lembranças repetidas de um só quarteirão. A graminha precária, desesperançadamente esperançada, salpicava as pedras da rua e divisei na fundura os naipes de cores do poente e senti Buenos Aires”.
Alguém aqui poderá até alegar que, para habitar com suas cinzas, o poeta preferiu a Suíça de sua juventude. A verdade é que, quando conheci pessoalmente Borges, há dois anos, a visão que ele tinha de
Jorge Luís Borges Ferdinando Scianna / Unesp
Como uma ferida que se abriu no peito do poeta, a cidade sobrevivia apenas no papel de seus versos de juventude. E foi esta cidade encantada que eu encontrei no apartamento simples, e forrado de enciclopédias, sem tapetes da Calle Maipu, pertinho da Plaza San Martin.
Buenos Aires é uma tentação permanente. Como Paris e Barcelona, é uma cidade de amor à primeira vista. Quem não se apaixona logo pelas cafeterias onde se pode conversar um dia inteiro diante de um jornal e uma xícara de café expresso, cheia ou vazia? Quem não se cativa pelo
Buenos Aires Eder Oliveira
Esta cidade não existiria, se Borges não tivesse conhecido seus arrabaldes, seus “pátios côncavos como cântaros”. Em 1929, ao abrir seu livro de poemas Cuadermo San Martin, Borges deixava claro que sua cidade não tem história. “Ela é tão eterna como o ar e a água”, diz no último verso do poema Fundação mítica de Buenos Aires. Estive pensando já tantas vezes na possibilidade de esta ser a explicação para o fato de Campina Grande roubar, com tanta simplicidade, os corações de tantos que aqui não nasceram. É provável que esta arte menor de arrumar palavras, como se enfeita bolo, eu a tenha conquistado um pouco no berço, um pouco no vício letal da leitura, um bocado nas noites enfumaçadas dos botecos todos que frequentei em minha vida. Adquiro de qualquer forma a consciência de que a energia que move esta arrumação desleixada de palavras eu a encontro aqui, nos seis anos incompletos de minha vida, nos quais me deparei, pela primeira vez, com o amor, a aventura, o ódio, a inveja, o cinema e a cartola do Cisne Lanches.
Praça da Bandeira (Campina Grande) IBGE
Colégio das Damas (Campina Grande) IBGE
“E a cidade, agora, é como um plano de minhas humilhações e fracassos; desde essa porta tenho visto os ocasos e ante esse mármore tenho aguardado em vão. Aqui o incerto ontem e o hoje distinto me depararam os comuns casos de toda sorte humana; aqui meus passos urdem seu incalculável labirinto. Aqui a tarde cinzenta espera o fruto que lhe deve a manhã; aqui minha sombra na não menos vã sombra final se perderá, ligeira. Não nos une o amor, mas o espanto: Será por isso que a quero tanto”.
E, em 1964, três anos antes de eu conhecer o amor, em carne, osso, perfume e voz, vinte anos antes de Campina Grande ter inventado o maior forró do mundo, era o espanto que abria os olhos encantados da juventude. Sim, porque eu estou falando para vocês de uma cidade real, na qual vivi seis anos incompletos, mas também de uma cidade plantada não no espaço, mas no tempo. Eu gostaria de poder fazer um itinerário lírico desta cidade num tempo específico, o tempo de minha geração, ou melhor, para ser menos pretensioso, o tempo de minha turma. Em 1964, quem não se lembra?, Lennon e Mc Cartney nos ensinavam que é possível a cada um fazer e que o prazer é um direito ou uma revelação. Minha turma, que se reunia em Santo Antônio, na casa de Aderaldo, ou no Ponto Cem Réis, na casa de Regina, ou que ouvia Herb Alpert e Tijuana Brass tocando Lonely Bull no casarão de Nicó Barros, no bairro da Prata, minha turma amava Elis Regina, Edu Lobo e descobria a cor da voz de Milton Nascimento. Nós estávamos insatisfeitos com o mundo já pronto que víamos à nossa volta. Nós queríamos mais, muito mais. E viver nesta cidade nos ajudou a encontrar os caminhos. Nossa inquietação tinha tudo o que ver com a inquietude de artesãos, que sempre impediu Campina Grande de parar no tempo.
Rua Marquês do Herval com a Av. Floriano Peixoto (Campina Grande) IBGE
Octávio Paz, um doce índio mexicano de luminosos olhos azuis, não bebeu Cuba Libre num assustado na casa de Paulo Cirne, não conheceu Luci Matias, que escrevia inspiradas
Rádio Borborema IBGE
E Octávio Paz escreveu:
“O garoto que caminha por este poema, entre San Ildefonso e o Zócalo, é o homem que o escreve: esta página também é uma caminhada noturna. Aqui encarnam os espectros amigos, as idéias se dissipam. O bem, quisemos o bem: endireitar o mundo. Não nos faltou integridade: nos faltou humanidade. O que quisemos não o quisemos com inocência. Preceitos e conceitos, soberba de teólogos: golpear com a cruz, fundar com sangue, levantar a casa com ladrilhos de crime, decretar a comunhão obrigatória. Alguns se converteram em secretários dos secretários do Secretário Geral do Inferno. A raiva virou filósofa, sua baba cobriu o planeta”.
Minha turma adolescente lutou contra a hipocrisia nos costumes e pelo direito à diferença. Nos anos 60, o mundo descobriu a existência do indivíduo e garantiu, não sem muita guerra, nem com muito amor, o direito inalienável que cada um tem à solidão, até mesmo à solidão da nudez. Seguimos as trilhas de Little Richard e Chuck Berry, de Elvis Presley, Caetano Veloso e Roberto Carlos. Mas, envergonhado, o rosto nas mãos, reconheço que tantas vezes o arrastar das bandeiras da liberdade nos levou às tiranias.
Ainda assim, eu gostaria de completar o poema de Paz para, em benefício de minha turma, em memória da geração de Márcio Vilar e de Arnaldo Xavier, esclarecer que muitos de nós tivemos a coragem de retroceder para avançar, descobrindo – como o poeta mexicano mais adiante o faz em seu poema-vômito – que a poesia, ponte que liga a história e a verdade, não é caminho em direção a isto ou aquilo, mas é ver a quietude no movimento, o trânsito na quietude. Como Paz escreveu:
“A história é o caminho; não vai a nenhuma parte, todos o caminham, a verdade é caminhá-lo. Não vamos nem viemos; estamos nas mãos do tempo. A verdade: saber-nos, desde a origem, suspensos. Fraternidade sobre o vazio”.
Nota explicativa de Flávio Ramalho de Brito:
Remexendo em velhos papeis encontrei um jornal, de quase 40 anos atrás, com um texto que é um panorama da vida social e cultural de Campina Grande em meados dos anos 1960. Relembrei o texto ao seu autor, o jornalista e escritor José Nêumanne Pinto, que me respondeu: “Descobri-o em meu arquivo de textos no computador e o reli com emoção que há muito não sentia lendo um texto velho no qual ainda incorria no vício do excesso de citações”. O texto foi apresentado por Nêumanne em um Seminário de Semiótica e Literatura ocorrido, em setembro de 1987, em Campina Grande e, no mês seguinte, no dia do aniversário da antiga Vila Nova da Rainha, foi publicado no jornal O Momento da Capital da Paraíba.
Remexendo em velhos papeis encontrei um jornal, de quase 40 anos atrás, com um texto que é um panorama da vida social e cultural de Campina Grande em meados dos anos 1960. Relembrei o texto ao seu autor, o jornalista e escritor José Nêumanne Pinto, que me respondeu: “Descobri-o em meu arquivo de textos no computador e o reli com emoção que há muito não sentia lendo um texto velho no qual ainda incorria no vício do excesso de citações”. O texto foi apresentado por Nêumanne em um Seminário de Semiótica e Literatura ocorrido, em setembro de 1987, em Campina Grande e, no mês seguinte, no dia do aniversário da antiga Vila Nova da Rainha, foi publicado no jornal O Momento da Capital da Paraíba.