Ironia eu ir assistir ao mais novo filme do cineasta espanhol Pedro Almodóvar, O quarto ao lado, por esses tempos. Falo do impacto que a morte assistida do filósofo-poeta Antônio Cícero me causou, recentemente, (pois o filme tem esse como tema central). Além da vitória do horror do Trump nos Estados Unidos, pois o filme também fala dos tempos sombrios do neoliberalismo. Tudo passeou pelos meus pensamentos, enquanto assistia a esse belo filme.
No filme, as personagens são duas amigas, Martha e Ingrid, vividas pelas maravilhosas Tilda Swinton (do inquietante filme Orlando, e uma mulher de beleza andrógina e perturbadora), repórter de guerra e acostumada aos horrores da violência humana, e Julianne Moore (a minha eterna Mrs. Brown, de As Horas). Martha se encontra em estado terminal e está lidando com o abismo da finitude e algumas decisões limites. Um dos desejos é que a amiga Ingrid fique num quarto ao lado, numa casa no meio de uma floresta bela, como se fossem umas férias. Mas só como se fosse. Amiga é coisa que se guarda do lado esquerdo do peito, já cantava Milton Nascimento. Uma amiga que aceita, espia, acolhe, passeia, lê para a outra, remexe as gavetas, encontra os perdidos, e mente. Mente para protegê-la.
A casa escolhida para as “férias” é uma casa moderna, construída em cubos, silenciosa, sob o canto dos passarinhos. Cores fortes. Uma porta vermelha. Uma porta que vista fechada, poderá ter uma leitura finita. “Portas”, de Marisa Monte caberia como trilha. Na sala, um quadro famoso do pintor americano Edward Hopper, de título “Morning Sun”, o que por si, já é uma ironia, pois essa manhã ensolarada destoa do tema e atmosfera do filme; quadro esse, que tive a alegria de ver numa retrospectiva do pintor em Madrid, em 2012. Nessa tela, uma mulher olha em frente, através de uma janela de vidro, assim como Martha e Ingrid que repetem a pose, nas lindas Chaise Longue do jardim. Temos a impressão de que elas saíram diretamente do quadro do Hopper. Essas cenas na varanda em frente à floresta, me remeteram à outra cena emblemática de um outro filme do Almodóvar – Fale com Ela, quando duas personagens que se encontram em uma clínica, também estão sentadas numa varanda, a falar da vida – Na vida nada é simples! Como exclama a personagem vivida por Geraldine Chaplin.
As referências artísticas de Almodóvar, pontuam o filme desde o início. O conto que encerra o livro Dublinenses, “The Dead” (traduzido como “Os Vivos e os Mortos”), do irlandês James Joyce, completa o enquadramento final do filme, com a famosa cena da epifania do personagem Gabriel – a neve que cai e as palavras que contemplam a placidez dos pensamentos.
Outra referência literária/fílmica foi sobre o filme Carrington (1995, Christopher Hampton) sobre a vida de Lytton Strachey e a sua esposa Dora, que faziam parte do grupo de intelectuais Bloomsbury (Londres, anos 20), e que tinha a escritora Virginia Woolf como integrante. Virginia inclusive teve um casamento relâmpago com Lynton. E tanto o conto de Joyce, como o filme citado, fizeram parte dos meus programas de Literatura Inglesa do curso de Letras. Senti saudades dos alunos, e fiquei a imaginar se eles assistiram Almodóvar?
O tema da finitude e da amizade, podem parecer longe dos temas exagerados do cineasta espanhol, mas as suas cores estão impressas em cada fotograma. A porta vermelha, o batom carmim e o terninho amarelo gema de ovo na cena final de Martha; a camisa Madras verde bandeira; um quadro gigante de flores coloridas na parede; um pulôver amarelo, roxo e branco; a figura, esquálida e esquisita, da atriz Tilda; as ideias ambientalistas do personagem do ator John Turturro, e tantos outros detalhes verdes, amarelos e vermelhos, completam a paleta desse belo filme. As cores extravagantes e alegres, contrastam com o tema cinza dos limites da vida-morte-vida.
O reencontro entre Ingrid e Martha, após anos de separação e diferentes trajetórias de vida, é tanto um confronto quanto uma reconciliação, construindo uma narrativa de dor e esperança.