Nunca usei chapéus. Conto tal coisa e, então, me vejo obrigado ao esclarecimento: mais do que mera observação isso é confissão de um de...

Um homem sem chapéu

chapeu nostalgia moda
Nunca usei chapéus. Conto tal coisa e, então, me vejo obrigado ao esclarecimento: mais do que mera observação isso é confissão de um desgosto. “Ainda é tempo”, respondeu minha mulher quando, dias atrás, despretensiosamente, tratei com ela do assunto. Como se quisesse me ajudar numa escolha difícil, aquela com quem há 47 anos divido cama e mesa me veio com o catálogo
Chapéu Panamá
de três fabricantes contendo modelos diversos de chapéus de palhinha. Os preços iam de R$ 150,00 a R$ 500,00 nesses sites de venda acessíveis até pelos celulares. Quatro vezes sem juros, dizia a propaganda. Propus o adiamento do negócio ciente, entretanto, de que ela jamais acreditaria nessa compra.

Sem ânimo, na ocasião, para falar das minhas recusas à aquisição de chapéus, revelo-as, agora. Pois bem, quando mais os desejei, não tinha idade suficiente para usá-los. Eu era muito novo, nos fins de 1950, quando meu pai abria aquelas caixas enormes saídas das lojas com reforços de papelão, a fim de acomodarem, sem amassos nem machucados, as copas imaculadas e as abas largas de um belo Ramenzoni, ou de um Cury de feltro moldado à perfeição. Aquilo, de fato, era sinônimo de distinção e elegância.

chapeu nostalgia moda
Botinas
Chapéu Ramenzoni
chapeu nostalgia moda
Art Gaúchos
Chapéu Cury

Aos doze anos, eu vira o artista jogar seu chapéu de longe para dependurá-lo, direitinho, no cabide. O bicho encaixou e ficou, ali, cai não cai, por alguns segundos. Parou de balançar antes do beijo dado por ele na mocinha a caminho da mesa onde já estavam dois pirralhos bem-vestidos e penteadinhos, à espera de uma terrina fumegante. Descrevo, é claro, uma cena de cinema e uma família típica de filmes do gênero água-com-açúcar. Falo do sonho americano projetado por Seu Zé Ribeiro na telinha do Cine Ideal.

chapeu nostalgia moda
GD'Art
Longe do meu pai, que tirava a sesta do meio-dia, tentei idêntico arremesso sem o mínimo sucesso. Não com o chapéu novo protegido na caixa apropriada em cima do guarda-roupa para dali sair apenas em ocasiões especiais. Mas com aquele já desbotado pelo uso habitual, o chapéu do dia a dia. Eu o punha na cabeça, saía à calçada, reentrava em casa e o atirava em direção a um dos ganchos do porta-chapéus que hoje me mata de saudade. Desisti da brincadeira depois de umas quinze infrutíferas tentativas. Há coisas que só acontecem no cinema, percebi, na ocasião.

007 Contra Goldfinger (1964), Direção: Guy Hamilton.
O moço que me tornei somente se surpreendeu com o chapéu de aba dura lançado e “engalhado” por James Bond num gradil porque isso significou a eletrocussão do japonês para quem ele perdia no tapa. Aquela aba metálica decapitava estátua e matou seu dono quando o Agente 007, a serviço de Sua Majestade, a Rainha, encostou na tal grade um fio vazando corrente de alta tensão. Foi o japonês pegar naquilo e morrer frito. Os fãs de James Bond bem lembram disso.

Descobri, já mais velho, que o de Indiana Jones, um Fedora legítimo desenhado nos Estados Unidos, foi fabricado pela Cury brasileira. Chapéu criticado por nunca sair da cabeça do nosso herói por mais sopapo que ele tomasse. Acho que tinha o grude dos bangue-bangues de antigamente. Explico: ventania nem socos faziam com que os primeiros cowboys perdessem seus chapéus. Acresço que o cinema também traria a mim o Borsalino invejável de Humphrey Bogart, em “Casablanca”, e os mais diversificados possíveis da turma da Máfia.

chapeu nostalgia moda
Humphrey Bogart, em Casablanca (1942), Direção: Michael Curtiz. ▪ Fonte: Imdb
Nenhum, dentro e fora do cinema, me encantou tanto quanto os chapéus do meu pai, do pai dele e dos amigos que ambos tinham quando os domingos exigiam o linho branco e, nas cidades maiores, o passeio e o trabalho trivial requeriam, também, o paletó e a gravata.

Examinar um chapéu daqueles, com as exigências das mãos limpas, já foi para mim instantes de grande satisfação. Chapéu, minha gente, não é só copa e aba. É, ainda, a fita em volta da copa, o laço, a carneira
Forro do chapéu Borsalino Fedora, fabricado na Itália.
(faixa interna de tecido, ou couro, para absorção do suor) e o forro feito a capricho para o conforto do feliz proprietário.

Não me atraem os chapéus de palhinha, os do tipo Panamá, nem estes hoje nas cabeças dos que entram, sem bons modos, em gabinetes, salões e plenários. Sei de gente enchapelada nas discussões do Congresso Nacional. Sabemos disso, aliás, eu e a torcida do Flamengo. Não percebem esses deseducados que sempre será de bom tom tirar seus chapéus em tais recintos? Ou, como sinal de respeito, na casa alheia em que sejam recebidos?

Concordo, já não há porta-chapéus na quase totalidade dos lares do mundo moderno, mas aí sempre haverá um movelzinho onde depositar o que se tenha na cabeça seja de feltro, de palha, ou de couro.

Contam-me que o genuíno Chapéu-Panamá é feito no Equador por artesãos hábeis no trato das folhas de toquilla, a palmeira local, em cidades a exemplo de Cuenca e Montecristi. O nome pelo qual passou a ser conhecido adveio da época da construção
chapeu nostalgia moda
Em 1906, o presidente norte-americano Theodore Roosevelt atravessa o canal do Panamá usando um chapéu de palha equatoriano, que ficou mundialmente conhecido como 'chapéu panamá'. Fonte: Wikimedia
do Canal do Panamá. Culpa de Theodore Roosevelt ali fotografado com um troço daqueles. Com a foto nos jornais, esse chapéu virou moda. Sua qualidade e seu preço são, até hoje, determinados pela finura da palha e a complexidade da trama.

Seja como for, não gosto deles. Prefiro os do tempo do meu pai e meu avô, quando, repito, eu não tinha idade para tais usos. Quero aqueles das páginas d’O CRUZEIRO. O diabo é que desejo isso na fase da vida em que há muito me faltam os ancestrais, as velhas revistas com suas propagandas, os costumes e os modos antigos.

Lastimo que, passada a minha hora, terei vivido, por razões bem próprias, como um homem sem chapéus. Não os tive e não os tenho nem para poses eventuais diante das lentes que colhem momentos para os álbuns da família. Mas há um lado bom nisso. Quando eu for saudade (acho que serei), meu neto não apontará para o avô de pixels, ou papel, nem morrerá de rir.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. O título e o tema dariam um conto, Frutuoso. Um homem sem chapéu. Assim como "O homem que sabia javanês", de Lima Barreto. Mas a sua bela crônica basta para o deleite dos leitores. E uma das virtudes da crônica, quando bem manejada, é este: o de nela caber contos e romances inteiros. Parabéns. PS: Você não escapará de ser apontado pelo neto, não pelo chapéu, mas pelo grande avô que você foi - e é. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Abraço forte, Gil. E sempre grato. - Frutuoso.

      Excluir
    2. Mestre Frutuoso, para vc todos tiramos o chapéu.

      Excluir

leia também