Aurora ( Aurore ) é o título do capítulo X do Livro I , La guerre entre quatre murs ( A guerra entre quatro muros ), da Quinta parte ...

Aurora

cosette marius miseraveis victor hugo
Aurora (Aurore) é o título do capítulo X do Livro I, La guerre entre quatre murs (A guerra entre quatro muros), da Quinta parte de Os miseráveis, Jean Valjean. Não há nada de excepcional, nesse curto capítulo (p. 950-952), do ponto de vista da sua compreensão linear: com a aurora, Cosette se levanta, faz a sua toilette de moça, enquanto pensa num possível reencontro com Marius, escapando, assim, de seguir o pai a Londres, e criando, a partir
cosette marius miseraveis victor hugo
G. Brion, 1862
da idealização amorosa, a esperança de casar-se com o rapaz e formar uma família. É inegável, no entanto, a sua complexidade metafórica, que desvia a atenção do leitor, colocando em primeiro plano o pudor da jovem.

De sua parte, o narrador onisciente estabelece uma censura, em nome da castidade de Cosette, exigida pelo pudor, que não deixa o leitor penetrar os segredos do leito virginal da menina-moça, embora revele que ela esconda na parte obscura de sua mente os desejos de transformá-lo em alcova. A desculpa é que a poesia até poderia ousar cometer essa invasão, mas a prosa, que é o caso do livro, só tem a permissão de invadir e mostrar um leito nupcial, ficando, desse modo, proibido ao leitor penetrar, ainda que só com os olhos, um leito virginal (“On peut à la rigueur introduire le lecteur dans une chambre nuptiale, non dans une chambre virginale. Le vers l’oserait à peine, la prose ne le doit pas”, p. 951). A estratégia do narrador desvia, mais uma vez, a atenção do leitor, ao estabelecer uma distinção entre poesia e prosa, esta objetiva, tendendo a dizer; aquela subjetiva, elíptica, sintática, tendendo a sugerir.

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G. Brion, 1862
Continuando a revelar os motivos de sua objeção à visão do interior do leito, diz o narrador que Cosette é mulher em botão, por conseguinte, sagrada (“La femme en bouton est sacrée”), não devendo ser contemplada, pelos olhos curiosos do leitor, o que seria uma profanação (“Ici, contempler, c’est profaner”, p. 951). Nesse ínterim, de modo a reforçar a irmandade entre castidade e pudor, o narrador lança mão de um conto oriental, cujo conteúdo trata da criação da rosa e da sua cor: Deus teria criado a rosa branca, mas, cheia de pudor em seu desabrochar, tornou-se rosa ao ser contemplada por Adão. Os elementos da complexidade metafórica vão sendo semeados pelo escritor, aos poucos, aparentemente de maneira inocente, de modo que o leitor não afaste de sua mente a imagem de uma Cosette casta e pudica.

A contextualização do capítulo com o conteúdo do romance, sobretudo nessas duas últimas partes, a quarta e a quinta, também parece não passar de informações que o leitor já conhece. Cosette desperta, na aurora do dia 06 de junho de 1832, segundo dia de luta nas barricadas de Paris, principalmente naquela em que se concentra a luta, a da rua da Chanvrerie,
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G. Brion, 1862
nos Halles. É lá que se encontra Marius, juntamente com outros insurgente e os Amigos da Sociedade do ABC, grupo de que ele é um dos cabeças, à espera de um desfecho que só poderia ser a morte, como já aconteceu, a esta altura, com Jean Prouvaire, Bahorel, père Mabeuf e Gavroche. Morte heroica; porém, morte.

Cosette não tem qualquer conhecimento desses fatos. O que ela sabe é algo vago dito por Toussaint, a criada, na noite anterior, antes de deitar-se. Em Paris, “parece que há coisa” (“il paraît qu’il y a du train”, p. 950). Inocente sobre onde se encontra Marius, Cosette, após “as duas abluções, a da alma e a do corpo; a prece e a toilette” (“Elle sortit du lit et fit les deux ablutions de l’âme et du corps, sa prière et sa toilette, p. 951), passa a construir o seu castelo de felicidade, com a formação de uma família, junto a Marius (p. 952):

“O dia surgindo dourava essa coisa feliz, a grande lei Multiplicai estava lá, sorridente e augusta, e esse doce mistério se estendia na glória da manhã. Cosette, os cabelos ao sol, a alma nas quimeras, iluminada por dentro pelo amor e pela aurora por fora, inclinou-se como maquinalmente e, sem quase ousar confessar-se que ela, ao mesmo tempo, pensava em Marius, pôs-se a observar
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G. Brion, 1862
os pássaros; essa família, o macho e a fêmea; essa mãe e esses pequenos, com a profunda perturbação que um ninho provoca em uma virgem.”

A contextualização do capítulo liga as duas circunstâncias diferentes: a luta na barricada, onde se encontra Marius, e o ideal amoroso de Cosette, por ocorrerem no mesmo dia. É, então, que vemos como o vocábulo aurora, que dá título ao capítulo, vai ganhando nuances de conotações, que parecem acontecer suavemente, como a aurora, cujos tons nos dizem que ainda não há luz suficiente para ser o dia, mas também já não existem trevas bastantes para ser a madrugada. E, assim, nesse lusco-fusco, as trevas vão suavemente se afastando e dando espaço para a manhã e a sua luz esplendorosa, sobretudo uma manhã de primavera, a poucos dias do solstício de verão, em 21 de junho. E o vocábulo, por sua vez, como a manhã, se ilumina.

Aurora, como vocábulo, é um signo linguístico. Vemos o seu significante impresso no título do capítulo X; mentalizamos o seu significado na imagem de tons róseos entre a madrugada e a manhã; chegamos à sua significação de momento de transição que anuncia o nascer do sol e a chegada da manhã.
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G. Brion, 1862
É esse o sentido superficial do título do capítulo, para quem se satisfaz com a horizontalidade do discurso. A literatura, no entanto, é verticalizante, prioriza uma compreensão em segundo grau que, por vezes, se desenvolve em vários níveis.

Da leitura horizontal, designando o momento cronológico do despertar de Cosette, o vocábulo passa ao despertar da virgem atenta à fertilidade e à procriação da primavera, quando observa a natureza e a maturidade que o verão trará com o sol do solstício. O ninho causa-lhe uma perturbação; a família de pássaros, uma satisfação. Ao final de sua primavera, como menina, Cosette vê se aproximar a aurora de sua maturidade feminina, esperando realizá-la com Marius, cuja concretização será a família, transformando o seu leito virginal em alcova nupcial. A este processo de transformação da compreensão do vocábulo, chamamos significância.

Mas o escritor não se satisfaz. Ele ainda não explorou suficientemente o vocábulo aurora, por isso continua a sua luta em busca de outras compreensões que possam elastecer a significância, quando manipulada pelas cavernas da criação literária. Aurora também diz respeito ao despertar de Marius. Atingido dolorosamente pela frustração amorosa, Marius, “louco de dor” (“Fou de douleur”, Parte IV, Livro 13, Capítulo 1, p. 881),
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G. Brion, 1862
se dirige à barricada para morrer. O suicídio não lhe sabe bem, já uma morte heroica e gloriosa, lutando pela liberdade, o aproximaria do pai, o coronel Georges Pontmercy, herói de Waterloo. Ferido em batalha, como o pai, Marius é salvo por Jean Valjean, e terá direito a uma ressurreição na carne e no espírito; na carne, porque, para ele, a morte era certa. No espírito, porque reencontrará o seu ideal amoroso, com a amada Cosette.

Victor Hugo tem razão, ao afirmar no contraste que realiza entre levante e insurreição, mostrando esta mais nobre do que aquela, mesmo quando fracassa: “Insurreição é, por vezes, ressurreição” (Parte IV, Livro 10, Capítulo 2, p. 831). Para Marius, as trevas da frustração se desfazem com a aurora da ressurreição, firmam-se com a luz da salvação por Jean Valjean e se solidificam com o esplendor do amor de Cosette.

Cheguemos a um final possível. Cosette, na visão de Marius, é uma imagem que sobrepõe uma cabeça de Maria a um pescoço de Vênus, compondo a visão da castidade e da beleza (“Une tête que Raphaël eût donnée à Marie posée sur un cou que Jean Goujon eût donnée à Vénus”, Parte III, Livro 6, Capítulo 2, p. 556). É a mulher em botão, como a rosa, que, ao desabrochar, revela a sua cor. Juntando as pontas semeadas ao longo do capítulo, observamos que Cosette não só desperta no momento da aurora, ela é a própria Aurora. Jean Valjean sabe disso, ao descobrir a beleza de Cosette, como o alvor da manhã, que se mostra sorridente para todos,
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G. Brion, 1862
mas para si próprio é lúgubre, porque prenúncio de que vai perdê-la – “Aube riante pour tous, lugubre pour lui” (Parte quatro, Livro 3, Capítulo 5, p. 707). Aqui, se aplica muito bem o que se diz da jovem, esplêndida no seu vestido de noiva, indo ao seu casamento na Igreja de Saint-Paul: “Dir-se-ia uma virgem, em via de se tornar deusa” (“On eût dit une vierge en train de devenir déesse”, V, 6, 2, p. 1080).

Cosette, como imagem da Aurora, não passa despercebida nem para M. Gillenormand, o avô de Marius, que concorda com o casamento entre os dois jovens, deixando Marius surpreso, a ponto de fazer as pazes com o velho avô, voltando a chamá-lo de “mon père”. M. Gillenormand, vendo Marius de retorno à sua casa, feliz por ele ter sobrevivido aos ferimentos da luta na barricada da rua de Chanvrerie, o progresso de sua convalescência, e encantado com a beleza de Cosette, decide aquiescer (Parte V, Livro 5, Capítulo 3, p. 1056):

Ah! você pensava que o velho ia fazer tempestade, engrossar a voz, gritar não, e levantar a bengala sobre toda essa aurora. Absolutamente. Cosette, seja. Amor, seja. Eu não peço melhor. Meu senhor, faça o favor de se casar. Seja feliz, meu filho bem-amado.

Cosette é, portanto, equiparada a Aurora, a deusa mais bela do Olimpo, aquela cujos dedos cor de rosa, como diz Homero, abrem as portas do Oriente, para a passagem de Apolo no Carro do Sol, iluminando a manhã; a manhã de Marius renascendo das barricadas, ressurgindo das trevas dos esgotos e encontrando a luz do amor nela própria.

cosette marius miseraveis victor hugo
Gravura de Os miseráveis (Segunda Parte), de Victor Hugo ▪ edição original (Lacroix, Verboeckhoven & Cie) ilustrada por Gustave Brion, 1862 ▪ Fonte: Gallica
O signo tem muitas faces escondidas sob muitas camadas. A criação literária enxerga e atinge algumas delas e, com isso, o faz sair da sua imobilidade, da sua estagnação, recuperando o dinamismo que lhe é peculiar, ao revelar novos sentidos, novas compreensões, em níveis sempre mais profundos, nunca permitindo, no entanto, a absorção da sua ampla significância, que ficará sempre em aberto, à espera de outras leituras.

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  1. O mestre guia pela mão seus cativos leitores e alunos. Parabéns, Milton. Francisco Gil Messias.

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  2. Hélder Moura15/11/25 07:45

    Mestre Milton, você sempre surpreende com suas lentes enxergando onde poucos conseguem. Minhas reverências

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  3. Que bela leitura. Grato, Professor. Permita-me o abraço. Frutuoso.

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  4. Eitel Santiago de Brito Pereira15/11/25 11:58

    Prosa e poesia, presentes nos textos de Victor Hugo é Milton Marques, encantando os leitores. 👏👏👏

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  5. Mil, tenho um casal amigo, do qual fui madrinha de casamento,que espera, agora, a primeira filha. Escolheram o nome de Aurora. Outro dia , me perguntaram se gostei. Afirmei que sim e tentei justificar pela pluralidade de significados que ele encerra. Nada perto da análise poética do seu texto de hoje. Cuidei logo de remetê-lo para eles . Um presente que não se compra. Aurora, para eles, ganhará outras nuances mais luminosas ainda .Parabéns!

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  6. Milton, o signo.Aurora, como.você diz muito bem, tem múltiplas fases e permite inúmeras leituras.

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