O cheiro de alho refogando na panela e a fumaça da água fervendo na panela são a minha máquina do tempo. Não precisa de engrenagens reluzentes ou luzes piscantes, basta um fio de azeite aquecido, três dentes de alho amassados e a chama amarela do fogo. Enquanto espero dourar, já não estou mais no apartamento minúsculo da cidade grande. Estou na cozinha de paredes de madeira da casa de minha vó,
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na cidade do interior do meu estado, onde o tempo tinha a espessura do mel.
Era domingo, dia de massa com polenta e galinha assada. Eu chegava de viagem. O carro era estacionado em frente a casa e a primeira coisa que encontrava era aquele aroma que me abraçava. Não era um cheiro sofisticado, era honesto: farinha da polenta, gordura do frango, o verde cru da couve lavada na pia. Vovó, com seu avental florido, me dava a colher de pau: "Prova a polenta, vê se tá bom de sal". Era um ritual provar aquela polenta mole e quente, soprar com cuidado, era a minha primeira lição do dia. A de que coisas boas exigem paciência, de que o segredo não estava num ingrediente mágico, mas no fogo baixo, no cozinhar devagar.
Enquanto a polenta fervia, eu fazia lição na mesa da cozinha. Vovó cozinhando e eu decorando fórmulas de matemática. O rádio a válvula Philips, sempre sintonizado na mesma emissora, tocava samba antigo. Meu avô, sentado ao lado comentava as notícias e conversava com meu Pai. Naquela cozinha eu sempre aprendia condutas humanitárias, pertencimento, alegria de viver. O almoço era servido na mesa de madeira, com toalha de pano xadrez.
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Nada combinava: os pratos eram de conjuntos diferentes, os copos tinham logotipos de propaganda. Mas a conversa fluía fácil. Falávamos do time que não ganhava, da governo, da árvore na calçada que dava muito limão, e das flores do jardim que o Pai cuidava. Eu ouvia mais do que falava, aprendendo, sem saber, que história de família não se conta em livros, se conta entre uma garfada e outra. O segredo do tio que todos os dias vinha nos visitar, a coragem da prima que abriu um salão, a paixão juvenil
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dos meus avós que começou num baile de igreja. O mundo lá fora podia estar cheio de pressa, de notícias ruins, de complexidade. Mas ali, o domingo era eterno, o universo se resumia a um prato fundo com polenta mole, um bolo de chocolate de sobremesa e a certeza de que eu era amado. Simples assim. O aroma se completava e com ele, uma calma que nenhum aplicativo de meditação consegue oferecer.
Percebo, hoje, que memória saudável não é aquela congelada em âmbar, perfeita e inalcançável. É a memória que continua viva, útil, nutritiva. É o cheiro que, anos depois, ainda te ensina a temperar a vida. É o som do samba no rádio que te lembra que há uma cadência própria para cada coisa. É a lição de que o amor, muitas vezes, tem a forma prática de um almoço quente esperando por você. Essa memória não é um lugar onde eu volto para fugir, é um alicerce que me sustenta aqui, no agora. É o que me faz acreditar que, não importa quantos domingos modernos e ansiosos eu enfrente, sempre terei dentro de mim o fogo baixo, a paciência do cozimento e o sabor inconfundível do que, de fato, importa.