A Idade Média fascinava Maurice van Woensel, e não apenas por razões afetivas ou estéticas. Maurice dizia que o essencial das manife...

Maurice van Woensel e os bestiários medievais

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A Idade Média fascinava Maurice van Woensel, e não apenas por razões afetivas ou estéticas. Maurice dizia que o essencial das manifestações artísticas do Brasil, e especialmente do Nordeste, enraíza-se no Medievo. E tinha razão. Segundo Afrânio Coutinho, a literatura brasileira nasce sob o signo do Barroco. E o que é o Barroco, senão o efeito da cultura medieval sobre a visão de mundo herdada do Classicismo? Barroco é dualismo, agonia, antítese; o que anima a alma barroca é o impulso cristão de contestar o racionalismo e o humanismo da Grécia e de Roma. Para contestá-los procuramos os modelos teocêntricos de vida e arte vigentes na Idade Média, de cujo imaginário se embebeu nosso espírito latino.

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Maurice van Woensel Penta Springs
Maurice também sabia que o mais característico desse período se refugiara nos rincões interioranos do Brasil. Daí sua admiração pela cultura popular, depositária de mitos, lendas, histórias que, em seu dramatismo simples, revivem a saga de reis e rainhas; os amores trágicos de casais fadados à eterna separação; os conflitos íntimos de religiosos divididos entre os apelos de Deus e os do mundo; mas sobretudo as artimanhas do homem simples para sobreviver num mundo violento e desigual.

Segundo o professor Eduardo Hoornaert, Maurice “...entra no rol dos medievalistas brasileiros (..) com uma originalidade: ele sempre procurou aplicar os estudos medievais à realidade nordestina. Isso já se percebe na sua dissertação de mestrado, de 1978, que é uma análise de A Pedra do Reino de Ariano Suassuna e onde aparece um sertão habitado com sonhos medievais. Maurice acerta de cheio: há uma correspondência entre cultura nordestina e cultura medieval” (In: “A obra medievalista de Maurice van Woensel”; texto a mim enviado pela internet).

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GD'Art
Certo dia Maurice me falou que ia submeter ao CNPq um projeto de pesquisa sobre a influência da poesia medieval na poesia moderna, e me perguntou se eu queria participar. Eu sabia pouco dos seus estudos e quase nada conhecia da Idade Média. Mas defendera havia dois anos tese sobre a melancolia em Augusto dos Anjos, o que me levara a ler, por exemplo, sobre a acedia nos mosteiros. Determinado poema de Augusto me fizera pesquisar a barcarola e outras espécies medievais que chegaram aos dias de hoje. A esses rudimentos de informação acrescentei leituras de Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto, Onestaldo de Pennafort, e me senti em condições de preparar um plano de trabalho e me propor como pesquisador-adjunto. Deu certo; o CNPq aprovou nosso projeto, intitulado “Precursores medievais da poesia moderna; leitura e tradução de textos”, no qual trabalhamos por cerca de 5 anos.

Durante esse período muito aprendi com o homem e com o erudito. Maurice era uma pessoa de convivência fácil, amena, porém firme em suas opiniões. Embora fosse especialista nos assuntos que estudávamos, acolhia com respeito minhas propostas. Cada um seguia com independência o seu caminho – eu, investigando os elementos temáticos e
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Maurice van Woensel Chico Viana
formais que atestavam a influência do Medievo em alguns dos nossos poetas modernos; ele, entre outras inúmeras tarefas, pesquisando a poesia dos goliardos – uma de suas paixões.

Maurice produziu muitos trabalhos na área dos estudos medievais. O mais importante deles, já comentado neste portal, foram as traduções de Carminha Burana, publicadas em 1994 pela Editora Ars Poética. Na apresentação que escreveu para essa obra, o eminente medievalista Segismundo Spina saudou-a com entusiasmo: “Felizmente a bibliografia brasileira pode orgulhar-se de ingressar no campo da erudição literária medieval com a presente tradução (...)”. E frisava, adiante: “Maurice Van Woensel (...) é a pessoa mais autorizada no Brasil a falar sobre esse movimento poético medieval”.

Outro trabalho importante seu foi a tradução de composições do bestiário medieval. Elas estão no livro Simbolismo animal medieval: Os Bestiários. Um safári literário à procura de animais fabulosos, publicado pela Editora Universitária da UFPB. A tradução desses textos absorveu Maurice nos seus últimos anos de vida. Certa vez ele me disse que o trabalho vinha sendo feito havia anos, mas o nosso projeto lhe deu o ensejo de terminá-lo. Visando à publicação desse “livro de bichos”, ele
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inclusive mantivera contatos com uma editora do Sul do país. Pouco mais de três meses após essa conversa o livro veio a público e se confirmou como inestimável obra de pesquisa e de recriação artística.

De pesquisa e recriação, sim, pois não se sabe o que mais admirar nesse trabalho: se o levantamento das fontes, com a rigorosa caracterização tipológica dos bestiários – se o esforço de recriação poética com que Maurice procura verter para o português o ritmo e as imagens através das quais a alegoria animal aparece como reflexo dos defeitos e das virtudes humanas. Nesse livro o exegeta minucioso convive com o versejador bem-humorado, o que dá à obra uma leveza que não nos deixa sentir, na amplitude do acervo pesquisado, o peso da erudição.

Os bestiários constituem uma das melhores concretizações do preceito de Horácio segundo o qual a arte deve “ensinar deleitando”. Trata-se de textos alusivos, que tomam os bichos como imagens, metáforas, representações deformadas dos seres humanos. E assim permitem ao homem um distanciamento que o torna desarmado para absorver, sem maiores defesas narcísicas, as intenções críticas e moralizantes que neles se expressam.

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Bibliothèque Nationale de France
Não é difícil reconhecer em certos termos e construções dos textos traduzidos o espírito agudo e bem-humorado do autor. Em algumas passagens parece-me que eu o ouço falar, repetindo expressões e imagens que me eram ditas em conversas amenas e informais – às vezes ao som de um bom vinho, de uma rodada de salgadinhos ou de uma tépida fondue de queijo. Maurice não era desses que, escrevendo, sacrificam a naturalidade do colóquio em prol da correção ou de uma obtusa e falsa profundidade. Seu texto é corredio, pitoresco, e reflete a bonomia que era uma das marcas de seu espírito. Não é à toa que subintitulou o seu livro de “um safári literário”, propondo ao leitor, em vez de um roteiro acadêmico e erudito, uma excursão zoológica.

Excursão para aprender o que então se aprendia pela voz dos clérigos, poetas, reis, que, utilizando os bichos como motivos ou modelos, davam lições como estas – e aqui retiro aleatoriamente do livro um ou outro exemplo. Vejam como, num bestiário medieval francês, faz-se referência à lebre:

“Minha vida é dos cães fugir, pois minha carne é deliciosa; quanto mais alguém possuir, tanto mais vê gente invejosa.”
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St John's College (Oxford)
Ou à águia:

“Sou o rei de todas as aves; eu vôo a tamanha altura que percebo o sol sem entraves. Ver a Deus, que boa ventura!”.
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Guilllaume Le Clerc
Essas quadras, referidas aqui mais por sua brevidade, constituem um exemplo típico da estrutura dos bestiários, nos quais à descrição dos animais segue-se uma reflexão de caráter didático ou moral – sempre com o intuito, repita-se, de condenar o pecado e exaltar a grandeza de Deus.

O livro não se limita a exposição e comentário. Com o rigor de um historiador da literatura, Maurice mostra como esse tipo de composições atravessa o Medievo, a Renascença, os estilos de época posteriores ao Barroco, e chega à modernidade. É claro que, na visão dos autores modernos, essa espécie literária veio a adquirir outra configuração. Não interessava mais a referência animal como instrumento de edificação das almas, e sim como objeto lúdico ou reflexivo a partir do qual o homem melhor dimensiona a sua humanidade. Na pena de um Manuel Bandeira, de uma Cecília Meireles, de um João Cabral de Melo Neto e outros, conforme demonstra Maurice, a pintura dos
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Celyn Kang
bichos serve à caracterização às vezes jocosa, às vezes dramática, de situações em que o homem encontra no ser vivo irracional um espelho, mesmo que deformado, da sua própria natureza.

Como o trabalho de Maurice é o de um intérprete literário e o de um historiador erudito, ler a sua pesquisa sobre os bestiários é adentrar o universo cultural da Idade Média e depreender-lhe hábitos, práticas sociais e filosofia de vida. A pretexto de orientar os homens sobre o que não deve ser feito, essas composições deixam entrever o que se faz ou, o que dá quase no mesmo, o que se é tentado a fazer em detrimento da moral e dos bons costumes. Na medida em que aparecem como um espelho do comportamento humano, constituem uma forma de catarse ou exorcismo.

O homem da Idade Média debatia-se entre os apelos divinos e as chamadas tentações bestiais. Devia triunfar sobre essas últimas, mas a batalha sabe-se que não era fácil. Os bestiários constituíam uma tentativa jocosa e irônica de ele se defrontar com a besta que nele habita, identificando literalmente num bicho os traços que o diminuíam e amesquinhavam perante a divindade. Juntamente com a literatura dos goliardos, eles constituem um veio paródico que revela o outro lado, leigo e mais humano, de um universo ensombrecido por exigências tirânicas e medos irracionais.

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Guillaume Apollinaire CCO
O grande mérito do trabalho de Maurice é extrapolar esse referencial místico-moralizante e apresentar as composições ligadas aos animais como uma espécie literária que transcende as épocas históricas; remontando à Bíblia, ela atravessa o Medievo, chega ao Classicismo através dos livros de emblemas, ou mesmo de Camões, e a partir de Apollinaire atinge a Modernidade.

É óbvio que, nas realizações modernas, o espírito, a figuração, o molde narrativo/descritivo com que se apresentam os bichos diferem em muito da forma como eles apareciam nos textos medievais. Se antes a preocupação era de ordem basicamente instrutiva e moral, e os animais apareciam como símbolos de defeitos humanos, com o tempo eles foram adquirindo autonomia em relação às fraquezas que deviam representar e servindo a caracterizações positivas da vida e da natureza. Como bem observa Maurice, parece ter concorrido para isso a preocupação ecológica dos tempos modernos, em função da qual ocorreu uma espécie de reabilitação simbólica de alguns vilões clássicos – como, por exemplo, o lobo mau.

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CC0
Pela originalidade do tema e pela forma como o autor o domina e desenvolve – com uma leveza quase coloquial e o bom humor de um scholar sem preconceitos –, esse livro seguramente se constitui em referência para quem quer conhecer ou estudar os bestiários. Ao subintitulá-lo de um “safári literário”, como dissemos, Maurice se propôs uma espécie de guia nessa excursão por entre a selva de bichos. Poucos teriam feito melhor, e assim ficamos a dever-lhe não apenas nós, os viajantes, mas também os próprios bichos, que o autor generosamente resgata nesse painel da literatura de todos os tempos.

Por tudo que produziu, Maurice se constitui, de fato, em referência sobre os estudos medievais entre nós. Mas seus trabalhos sobre esse período histórico, tão mal compreendido por intelectuais que ainda tendem a vê-lo como uma época de retrocesso e trevas, não se limitaram ao âmbito acadêmico ou artístico. Ele também foi capaz de transmitir o seu entusiasmo a toda uma geração de alunos, bolsistas, orientandos, que hoje de alguma forma prolongam o seu legado. Como bem lembra Eduardo Hoornaert:

Maurice “soube dialogar com a geração emergente na Universidade Federal da Paraíba e formar um grupo de jovens que, com ele e por meio dele, assimilou uma nova visão da Idade Média, e chegou a produzir em tempo record alguns bons trabalhos”.
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Eduardo Hoornaertpiauihoje.com/
Peço licença para encerrar este depoimento transcrevendo parte do texto que elaborei por ocasião da sua morte. Não acho palavras que possam defini-lo melhor do que essas, escritas num momento de saudade e comoção:

“O que eu aprendi com o intelectual foi muito pouco em relação ao que aprendi com o homem. Maurice Van Woensel era um
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Chico Viana
compêndio de tolerância, generosidade e bom humor. Poucos conheci (vá lá o plural, para não dizerem que quero mitificar meu ex-amigo) com tal pureza de espírito. Sabia ser firme sem ser rude, sério sem ser antipático, alegre sem ser frívolo. Jamais ouvi dele um juízo malévolo sobre alguém. No máximo, quando por força de um comentário meu ele era obrigado a se manifestar, ria encabulado e sem jeito como se procurasse desculpar o outro.
A baixeza ou a indignidade alheia pareciam desconcertá-lo. Imagino que o intrigava que as pessoas antepusessem a má vontade, a antipatia, o rancor a sentimentos como a fraternidade e a concórdia. O lado mesquinho e hostil do semelhante, ele parecia afrontosamente desconhecer. Estaria nesse desdém, já que ninguém é santo, o seu único traço de arrogância. Uma arrogância gentil.”


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  1. Texto erudito e uma justa homenagem, Chico. Parabéns. Francisco Gil Messias.

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