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Saio do barbeiro (falo “barbeiro” por algum obscuro resíduo machista; o certo hoje é dizer “cabeleireiro”) e vou caminhando pela praia. D...

Saio do barbeiro (falo “barbeiro” por algum obscuro resíduo machista; o certo hoje é dizer “cabeleireiro”) e vou caminhando pela praia. De máscara. Penso na crônica que devo escrever. Qual vai ser o assunto? Vou devagarinho pela calçada, sentindo-me recomposto em meu aspecto e, sobretudo, aliviado com os fios brancos – hoje são tantos! – que ficaram no chão. O barbeiro (ou cabeleireiro) fez um trabalho ao mesmo tempo estético e higiênico, decepando-me as marcas hirsutas de velhice. Tanto desbastou, que me sinto mais moço. E olho com uma euforia antiga, um quase adolescente vigor de espírito, a paisagem e as pessoas que passam por mim.

Li há algum tempo uma pesquisa sobre a palavra mais bonita da língua portuguesa. Muitos levaram em conta apen...

Li há algum tempo uma pesquisa sobre a palavra mais bonita da língua portuguesa. Muitos levaram em conta apenas o conteúdo e responderam “amor”, “ética”, “democracia”, “credibilidade” e semelhantes. Essas são palavras nobres, não há dúvida, pois veiculam elevados conceitos ou sentimentos. Mas os responsáveis pela pesquisa estavam mais interessados na forma. Queriam saber das palavras como organismos sonoros ou mesmo visuais. Palavras que tinham uma beleza em si.

Poucos recursos são tão engenhosos na língua quanto o diminutivo. Ele não é apenas uma medida de tamanho ou de valor; é sobretudo uma form...

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Poucos recursos são tão engenhosos na língua quanto o diminutivo. Ele não é apenas uma medida de tamanho ou de valor; é sobretudo uma forma de nos colocarmos no mundo. Uma estratégia de convivência, um meio de nos relacionarmos com as pessoas. Sem o diminutivo teríamos que enfrentar tudo em grau normal, quer dizer, na crua dimensão da realidade.

'O pássaro secreto', de Marília Arnaud, é o relato de uma crise. O romance se estrutura co...

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'O pássaro secreto', de Marília Arnaud, é o relato de uma crise. O romance se estrutura como uma parte propriamente narrativa, em que a personagem principal, Aglaia Negromonte, relata cronologicamente os fatos ligados à sua vida, e outra com características de um diário. Nessa última a personagem reflete sobre a sua experiência no lugar a que é conduzida por força das ocorrências que, em grande parte por culpa dela própria, lhe destruíram a sanidade. A bem urdida alternância entre os dois segmentos sugere-nos, desde o início, que desfecho lhe seria destinado.

Costuma-se destacar no “Eu” apenas o desencanto existencial e a fixação na deterioração da matéria. Articulado ao polo de tristeza e pessi...

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Costuma-se destacar no “Eu” apenas o desencanto existencial e a fixação na deterioração da matéria. Articulado ao polo de tristeza e pessimismo, no entanto, existe na obra de Augusto dos Anjos uma dimensão oposta, de erotismo e alegria. Nesse plano nem tudo se resume à fixação na morte e à apologia do verme, sendo possível perceber em algumas passagens a satisfação com a vida e a exaltação da Natureza – a mesma Natureza que em outros momentos aparece como a “velha madrasta” a cujas leis o homem está acorrentado.

Haverá ou não Carnaval? Alguns governos estaduais e municipais já decretaram que não, mas ainda ...

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Haverá ou não Carnaval? Alguns governos estaduais e municipais já decretaram que não, mas ainda não há uma resposta definitiva para essa pergunta. Por via das dúvidas, vou deixar no fundo do baú a fantasia que comprei há algumas décadas e pretendia estrear na próxima festa de Momo. Ela está empoeirada (um pouco mais do que o dono) e precisa de uma lavagem que lhe remova o bolor.

      Soneto de Natal A cada ano o gesto se renova e nos faz recobrar a esperanç...

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Soneto de Natal
A cada ano o gesto se renova e nos faz recobrar a esperança. Quem de mágoa e dureza fez-se a prova anseia por voltar a ser criança. Verdade ou mito? Isso pouco importa à mão que se dispõe ao largo aceno e almeja em comunhão abrir a porta a quem a vida deu ou dá de menos.

Pais e mães que procuram meu curso para seus filhos costumam fazer a ressalva: “Queremos um curso de redação, não de gramática.” Geralment...

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Pais e mães que procuram meu curso para seus filhos costumam fazer a ressalva: “Queremos um curso de redação, não de gramática.” Geralmente acrescentam a essas palavras a informação de que os filhos não leem, ou leem pouco, por isso têm dificuldade de escrever. O acréscimo é pertinente, demonstra bom senso. Quem não lê não escreve. O que não se entende é a restrição à abordagem gramatical. Como se fosse possível produzir satisfatoriamente um texto sem o conhecimento das normas que disciplinam o uso da língua.

Hoje ela mais escuta do que fala. É o contrário do que costumava acontecer, já qu...

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Hoje ela mais escuta do que fala. É o contrário do que costumava acontecer, já que ela sempre falou muito. E os filhos precisavam de suas palavras. Eram o resultado de seus conselhos, advertências, ralhações. Frutos não apenas biológicos, mas também espirituais. Nem tudo era acatado ou compreendido. Precisou de tempo para que entendessem a intenção, o sentido, o valor do que ela dizia.

O ser humano tem dificuldade de pensar ou agir por conta própria. Necessita de quem o oriente, sugira um roteiro segu...

O ser humano tem dificuldade de pensar ou agir por conta própria. Necessita de quem o oriente, sugira um roteiro seguro nos descaminhos da vida. Essa característica da nossa espécie é que propicia o aparecimento de orientadores espirituais ou guias de comportamento.

Não falta quem se aproveite do nosso natural desamparo para nos vender fórmulas ou manuais de conduta, nos quais estaria a chave para a conquista da felicidade. Só que esse caminho não existe fora de nós; deve ser construído por cada um. Nenhum guru conhece das pessoas o que elas intimamente são, por isso não pode apontar a ninguém o caminho que as faça felizes.

Viver é um risco, e quem recua de medo da vida se arrisca também. Pode morrer dentro de si mesmo, gemer nos am...

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Viver é um risco, e quem recua de medo da vida se arrisca também. Pode morrer dentro de si mesmo, gemer nos amarelões da alma por inanição existencial.

No fundo de todo homem está o Demo, espreitando. É muito fácil ser mau. Duro é renunciar à maldade, pois a bondade não faz parte da nossa natureza. Tem que ser aprendida, e para ajudar nisso criamos Deus. Exige renúncia, ração de convento e muita força.

A quem não tem esperança, aconselho: tente viver assim mesmo. Às vezes, por entre as brumas do desencanto, insinua-se um sentido, um farol. O amanhã é de quem acredita.

Do que se escreve nem tudo faz sentido, nem tudo leva a alguma coisa. Mas é preciso escrever, nem que seja para dizer o que já foi dito. Tudo é repetição, mas em novos contextos.

É preciso atravessar a vida se distanciando do ciúme, da inveja, da injúria. Cabisalto, mesmo que por dentro estremecido. O outro é lobo voraz e está sempre nos espreitando. O que consola é que, como lobos, o cercamos também.

Com os outros pode-se viver bem no artifício, nunca no total espontâneo. Isso pede a mentira para melhor conviver, o abrirdentes com jeito de sinuosa simpatia, mel que disfarça o ferrão.

Política é jogo sujo, que não separa os bons dos maus. É gangorra em que cada um, na fome do poder, pode descer ao seu avesso. E depois, sem a luzinha do escrúpulo, fazer o caminho oposto.

Convém evitar as demasias, pois o que delas sobra pode nos afogar. É então o caso de ser reto-direito, mas sem o dente da inflexibilidade. Esse não só perfura a carne, também vai fundo na alma.

Mulher não é tão perigoso como se diz. Tanto mais se amansa, quanto menos a gente se mostra sensível aos mistérios que nela tentaram encarnar. É preciso vê-la tal qual, sem o afã da fantasia. Mulher despreza o homenino que, de medo, cerca-a de ameaças ferozes com fome de matar, morrer, ou ambos.

Às vezes é bom ficar doente grave. Faz pensar melhor e joga o orgulho para debaixo do topete. Pequenos ficamos diante da morte, como quem na travessia de um deserto tem de ir a pé e sabe que nunca, nunca chegará ao outro lado.

É comum se discutir a eficiência da psicanálise. Segundo alguns, como método terapêutico ela tem perdido terreno para procedimento...

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É comum se discutir a eficiência da psicanálise. Segundo alguns, como método terapêutico ela tem perdido terreno para procedimentos mais práticos e objetivos, como os da psicologia cognitivo-comportamental. Para outros, entre os quais me incluo, o valor da psicanálise situa-se além do divã; está em seus reflexos na Cultura.

A psicanálise não é apenas um método clínico. É sobretudo uma forma nova de ver o ser humano. Antes de o mestre vienense descobrir o inconsciente, o homem contentava-se com a soberania da razão. Achava, com Descartes, que existia porque pensava. Freud alargou a dimensão do eu; mostrou que há domínios obscuros, irracionais, que determinam o que somos – ou o que desejamos ser.

Além de quase médico, fui também quase cantor. Para entender como isto se deu é preciso remontar ao início da década de 1980, quando fiz o...

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Além de quase médico, fui também quase cantor. Para entender como isto se deu é preciso remontar ao início da década de 1980, quando fiz o Mestrado no Rio de Janeiro. Como tinha tempo livre, pois fora liberado pela UFPB somente para estudar, resolvi fazer um curso de empostação vocal.

Decisão tomada, consultei os classificados do “Jornal do Brasil”, onde me deparei com um anúncio: “Sílvia Lamounier – rejuvenescimento vocal”. Era mais do que eu desejava: não apenas empostar, arranjar direito as sílabas, controlar a emissão da voz, mas também rejuvenescê-la. A professora morava numa transversal da Av. Nossa Senhora de Copacabana. Tive que ir de ônibus até lá, pois a linha de metrô que liga o Flamengo a Copacabana ainda estava em construção.

O maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que não existe. A essa prática, dá-se o nome de superinterpretação. Superinte...

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O maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que não existe. A essa prática, dá-se o nome de superinterpretação. Superinterpretar é ir muito além do que está dito. É propor intenções, sugestões, duplos sentidos, quando o que se evidencia não passa muitas vezes de mediocridade. Isso pode ocorrer de boa ou má-fé.

Dizem que a paixão cega, por isso os apaixonados não percebem os defeitos dos parceiros. Uma tradução aproximada dessa verdade se encontra...

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Dizem que a paixão cega, por isso os apaixonados não percebem os defeitos dos parceiros. Uma tradução aproximada dessa verdade se encontra no velho ditado: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”. Os apaixonados são movidos por razões que só Freud explica – e aqui não me limito a repetir um clichê. Para o criador da Psicanálise nossa atração pelo objeto amoroso decorre de nebulosas determinações inconscientes, que remontam às vivências infantis.

A gripe é sobretudo uma agressão moral. Você sabe que ela não vai lhe matar, mas o estado a que o reduz é lastim...

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A gripe é sobretudo uma agressão moral. Você sabe que ela não vai lhe matar, mas o estado a que o reduz é lastimável. Não dá para fazer selfie com o nariz vermelho e os olhos injetados. E o pior é o defluxo que dele emana (prefiro o termo “defluxo” ao escatológico “catarro”).

A medicina criou um nome pomposo para designar a gripe – influenza, que vem do italiano. É um termo simpático e que até nos dá vontade de passar pela experiência. Parece haver certa nobreza numa afecção cujo nome evoca a pátria de Dante e Michelangelo. Mas a empolgação acaba quando vêm os espirros e a febre (ou melhor, a febrícula, com esse sufixo derrisório). Seu moral começa a balançar, e o corpo pede cama.

O soneto “Apóstrofe à Carne”, publicado em Outras Poesias, é um dos que bem exemplificam a estética dissonante e segmentada de Augusto dos...

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O soneto “Apóstrofe à Carne”, publicado em Outras Poesias, é um dos que bem exemplificam a estética dissonante e segmentada de Augusto dos Anjos. Nesse poema estão presentes alguns dos tópicos relevantes de sua obra – como o sentimento da morte próxima, a antevisão da própria decomposição física, o julgamento negativo e moral da carne (sexual e perecível) em confronto com o espírito, o desconforto com a hereditariedade (cujo veículo – a conjunção carnal – o eu lírico rejeita). Eis o texto, que a seguir brevemente apreciamos:

A pandemia não foi de todo embora; persiste em casos esparsos, que assustam e às vezes matam. Ainda assim, é grande a pressa das pessoas p...

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A pandemia não foi de todo embora; persiste em casos esparsos, que assustam e às vezes matam. Ainda assim, é grande a pressa das pessoas para voltar ao antigo normal. Isso se explica pelo longo tempo em que o coronavírus privou-as de liberdade, modificando hábitos, dificultando a convivência e fazendo a maioria se enfurnar em casa.

A casa existe como um contraponto da rua, é o lugar para onde se volta depois de sair (com todas as ressonâncias simbólicas que esse gesto possui).

1 A utopia da igualdade gerou algumas tiranias modernas, como o socialismo stalinista. É raro um ditador que não invoque, para conquistar ...

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A utopia da igualdade gerou algumas tiranias modernas, como o socialismo stalinista. É raro um ditador que não invoque, para conquistar o poder, o princípio de que todos são iguais. Esse tipo de pensamento justifica a aplicação de uma diretriz única, confundida com a existência de um único partido. Como pode o Estado, identificado com um partido único, comprometer-se com a diversidade do corpo social? Se for de esquerda, vai demonizar os que têm; se for de direita, vai ignorar os que não têm.

Melancolia e ironia têm em comum a percepção do contraste entre a pequenez do homem e o seu desejo de transcender a si mesmo rumo a uma ...

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Melancolia e ironia têm em comum a percepção do contraste entre a pequenez do homem e o seu desejo de transcender a si mesmo rumo a uma experiência do Infinito. Tanto o melancólico quanto o ironista manifestam a consciência do impasse entre a relatividade do indivíduo e o Absoluto a que ele aspira.

Outra característica comum às duas é o combate entre ideia e forma, sentimento e expressão. É através da Forma que o melancólico procura compensar o sentimento de vazio, o vácuo narcísico que lhe compromete a referência autoidentitária. A arte é um sucedâneo do Objeto Perdido, o que dá à criação artística um estatuto de essencialidade e transcendência.