É realmente uma vitória ou uma simples consolação? Eis a questão. Valerá a pena? Ou é apenas uma justificação de derrotados? A chamada vitória moral tem muitos aspectos. Pode ser várias coisas, dependendo das circunstâncias e das pessoas, mas uma coisa é certa, creio eu: tem sempre mais de moral que de vitória propriamente dita, e aí está o seu segredo e – por que não? – sua beleza.
Políbio Alves não precisa de nenhum título acadêmico para ser quem é. Ele já possui o mais belo e importante dos títulos: ele é poeta, simplesmente poeta, e não necessita ser mais nada nesta vida – nem em outra que venha a haver. Poeta. E aqui não vou entrar em minúcias de crítico literário — que não sou. Não vou afirmar isso ou aquilo sobre sua poesia, sua obra poética, porque de qualquer modo ele é poeta — e isto basta. Pelo menos, para mim.
Antes que alguém (algum espírito de porco) pergunte o que é que nós brasileiros temos a ver com a rainha da Inglaterra, respondo logo: Em princípio, nada. Mas, pensando bem, numa visão menos estreita, como simples ocidentais, temos, sim, alguma coisinha a ver com aquela senhora que morreu na última quinta-feira, aos 96 anos, depois de reinar por setenta anos no Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte) e de se tornar, sem nenhuma dúvida, um dos maiores e mais populares ícones mundiais da segunda metade do século XX até hoje. Mesmo os mais exaltados republicanos, reconheça-se, haverão de ter a imagem dela gravada na mente, tanto ela esteve cotidianamente presente nos meios de comunicação do mundo inteiro, ao ponto de incorporar-se ao imaginário coletivo, semelhante a uma marca planetária, tipo Coca-Cola, McDonald’s e outras de igual porte e penetração. Por isso, ela era pop – e continuará sendo ainda por muito tempo.
Alguns seminaristas saem do seminário, mas o seminário nunca sai deles. Fica para sempre, como uma tatuagem na alma, irremovível. Assim também com outros lugares, outras experiências, que marcam de tal modo as pessoas, que se misturam de uma vez por todas às respectivas biografias. Como falar, por exemplo, de Antonio Carlos Villaça, o grande escritor e memorialista, sem falar também por sua passagem pelo Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, onde dramaticamente malogrou sua juvenil vocação para o claustro? De Villaça, diz-se, com toda razão, que ele deixou o mosteiro, mas o mosteiro nunca o deixou.
Cronista inspira cronista. Acontece muito. A gente lê uma crônica de outro autor e se sente tentado a abordar tema semelhante ou parecido sob ótica diferente – a nossa. E desse processo, diga-se, têm resultado, não raro, bons textos; às vezes, até melhores que os originais. Isso vai muito na linha de que em literatura nada se cria de verdadeiramente novo desde os gregos e Shakespeare, o que é verdade, penso eu. Não se trata de plágio, claro, mas apenas de dar um outro enfoque ao assunto. Muitas vezes, toma-se apenas um pequeno detalhe, uma rápida passagem, uma mera citação do texto original, e, partir dali, cria-se um cenário novo, um olhar distinto, uma escritura que nada – ou muito pouco – tem com o ponto de partida.
Terminei de ler A casa das letras, de Abelardo Jurema Filho (Fecomércio PB e MVC/Forma, 2022), e fiquei pensando nos mistérios da vida. Explicar-me-ei melhor a seguir.
Abelardo nasceu no Rio de Janeiro em meados do século passado, onde viveu uma infância de classe média, mas de certa forma privilegiada, uma vez que seu pai, cujo nome carrega com muita honra, era na época político de reconhecido prestígio, tendo sido líder do governo Juscelino Kubitschek na Câmara dos Deputados e ministro da justiça no governo João Goulart. Suas perspectivas, portanto, eram alvissareiras, como se dizia antigamente. Não tivesse havido o golpe de abril de 1964, que derrubou o presidente Goulart, e a consequente cassação do mandato de seu pai, logo exilado no Peru, pode-se dizer que sua vida teria sido outra. Imaginemos.
O professor José Jackson Carneiro de Carvalho construiu um espaço que é só seu na literatura paraibana e – por que não? – brasileira. Que eu saiba, só ele, entre nós, logrou estudar, com a profundidade devida, três autores fundamentais das letras universais, Albert Camus, André Malraux e Fiódor Dostoiévski, escrevendo e publicando sobre cada um deles um livro específico, com a qualidade capaz de inscrevê-los, com destaque, na fortuna crítica dos respectivos escritores. Não é pouca coisa, do ponto de vista intelectual, nem aqui, na aldeia, nem em qualquer lugar do mundo.
Jô Soares, ao morrer na sexta-feira, 5 de agosto, era um patrimônio nacional. Para além do clichê, isto significa que ele tinha alcançado uma notoriedade e um respeito praticamente unânimes por parte dos brasileiros, de tal modo que passou a ser visto como uma das riquezas humanas e culturais do país, orgulho da raça. Não é pouca coisa, sabemos, principalmente porque ele foi antes de tudo um comediante, ramo artístico nem sempre levado a sério, até porque dedica-se a nos fazer rir, mesmo que com toda seriedade crítica, como era o caso. E também porque o Brasil, nos últimos tempos, não tem contado com muitas figuras do seu naipe, mas, pelo contrário, tem se despovoado cada vez mais de homens e mulheres credores da admiração pública.
Gabriel García Márquez disse que todos nós temos três vidas: a pública, a privada e a secreta. Veja só. Pura verdade. É exatamente assim, intuímos, vivenciamos, no silêncio de nossa mais guardada intimidade. Uma vida pública, uma vida privada e uma vida secreta. É isso. A nossa vida verdadeira ou a verdade de nossa vida, onde estará, na primeira, na segunda, ou na terceira? Parece-me que na soma das três, porque somos seres fragmentados, feitos de várias partes, vários ângulos, nunca uniformes, nunca inteiriços, daí só mesmo um pintor cubista, a la Picasso, para nos retratar fielmente.
O amor pode, sim, acabar, como praticamente tudo na vida, inclusive a própria, como sabemos. Esse fim do amor, porém, não é uma fatalidade, mas uma possibilidade, de tal modo que é sob esse ponto de vista que a célebre crônica de Paulo Mendes Campos, intitulada exatamente de O amor acaba, deve ser lida e interpretada, penso eu.
Pequenino de tamanho, franzino, fala mansa, mas um gigante do ponto de vista moral e científico. Assim foi – e continua sendo – o professor Natanael Rohr, que nos deixou há poucos dias, vítima de complicações da covid. Até nisso, ele, que sempre foi igualitário, igualou-se a milhares de brasileiros que não resistiram ao vírus. Sua história de vida é notável, mostra como, pelo esforço familiar e pessoal e através do conhecimento, pode-se superar obstáculos e conquistar um lugar digno na sociedade.
Todo matuto autêntico é por natureza calado. Quem conhece, sabe. E aqui não estou usando a expressão “matuto” com viés depreciativo. Não. Utilizo esta palavra porque ela é bem nossa, nordestina e brasileira, e sempre foi a que serviu e serve para designar o homem do campo, o homem rural profundo, o homem do “mato”, como se costuma dizer. Hoje eles são bem menos, com a urbanização galopante do país, mas já foram muitos, milhões, até recentemente. São os trabalhadores das fazendas, dos sítios, dos pequenos pedaços de chão, os que estão sempre olhando para o céu, procurando adivinhar as chuvas, os que tangem os bois, os bodes e as ovelhas, os que vão à cidade no fim de semana comprar mantimentos rústicos nas feiras ou armazéns, os que ainda usam chapéu de couro, roupa de mescla e alpercata de rabicho.
Sempre me impressionou esse silêncio dos matutos. Parece que se envergonham de falar muito – ou até mesmo pouco, como se achassem, talvez herança ancestral da escravidão, que não têm direito sequer à palavra. Mas há algo além dessa suposta vergonha e timidez: é uma sabedoria de vida que os faz limitarem-se, no falar, apenas ao essencial, dispensando todo o supérfluo tagarela, típico dos citadinos. Ouvem mais do que falam, sempre. Nunca tomam a palavra; restringem-se a responder laconicamente as perguntas que lhes são feitas. E isso é algo que passa de pai para filho, constituindo um traço cultural facilmente identificável, do mesmo modo que neles as mãos grossas, calejadas, são um traço físico concretamente palpável. Os matutos são sempre econômicos com as palavras. Não por avareza, mas porque elas lhes faltam mesmo. Seu vocabulário limita-se normalmente ao mínimo. É como se para eles as vinte e três letras do alfabeto fossem demais. Como se só precisassem de algumas vogais e algumas consoantes.
Esta é uma pergunta medonha, daquelas para as quais ninguém tem uma resposta pronta, salvo os idiotas. É preciso refletir para respondê-la porque a resposta necessariamente tem a ver com a vida que levamos, como somos, o que fizemos e deixamos de fazer. Fundamentalmente, creio, tem mais a ver com os outros que com nós mesmos, a maneira de tratá-los, de considerá-los, se os vemos como meios ou fins de nossas ações, se os valorizamos em sua dignidade intrínseca etc etc. Sim, porque “...ao fim, seremos vistos pelo que amamos ou deixamos de amar”. E “ao entardecer desta vida, te verão no amor”, como bem disse São João da Cruz. Significa dizer que seremos lembrados e julgados pelo que fomos e fizemos de bem, e não por outras gloríolas acidentais, por mais importantes que estas pareçam aos olhos dos tolos.
Saber viver é uma arte. Pensando bem, tudo é arte, até fritar um ovo e fazer o nó da gravata. Tudo é arte. Viver, então, é a arte maior, porque envolve reter apenas o essencial, dispensando os acessórios, supérfluos pela própria definição. Saber viver, quem domina essa arte difícil que, como o samba, não se aprende na escola? É uma arte misteriosa, distribuída aleatoriamente pelos deuses entre os homens, independentemente de tudo: origem, cultura, riqueza, lugar de nascimento etc etc. É uma verdadeira arte democrática, sopra onde quer, como o vento e o Espírito Santo. Os franceses, mestres de quase tudo, chamam-na de “savoir-vivre”; nós, tupiniquins, a traduzimos literalmente como a arte de saber viver. E é isso mesmo.
A guerra e seus absurdos. Não bastam as incontáveis vidas perdidas nem os incalculáveis prejuízos materiais. A guerra e a violência que lhe é inerente terminam por afetar as pessoas das mais diversas formas, todas negativas. E, no entanto, os homens continuam a guerrear, como se ainda vivessem na mais remota antiguidade e não em pleno século XXI. Onde estão as Luzes, onde está a Razão, é de se perguntar qualquer um mais atento a tanto desvario.
Gilberto Freyre é realmente um assunto inesgotável, volto a dizer. Ele sempre está nos surpreendendo com novas facetas, novos ângulos, pelos quais estamos continuamente a colocar mais uma pedrinha no imenso painel de sua múltipla figura, sempre incompleto, do jeito que ele queria que fossem os seus livros, as suas teses, a sua “persona”, enfim.
Devo inicialmente esclarecer que o título acima foi emprestado de uma crônica do mineiro Ivan Angelo (assim mesmo, sem acento circunflexo), constante do livro Certos homens, Arquipélago Editorial, 2011. Achei que poderia aproveitá-lo para dar-lhe outro enredo, fazendo o que no mundo da música costuma-se chamar de "variação sobre mesmo tema". Reconhecida e paga a dívida autoral, vamos então ao que interessa, ou seja, passemos à varanda. À varanda gourmet.
Há cem anos, em 1º de junho de 1922, nascia no Rio de Janeiro talvez a artista mais completa que o Brasil já teve. Refiro-me a Bibi Ferreira, de nome Abigail Izquierdo Ferreira, ou simplesmente Bibi, primeira e única. Uma verdadeira estrela, na mais completa acepção da palavra. Uma diva, como se costuma chamar as deusas de Hollywood. Foi atriz, diretora, cantora e outras coisas mais no mundo do teatro e do espetáculo, sempre com a marca de um talento extraordinário, daqueles que beiram a genialidade, sem nenhum favor. Quem teve o privilégio de vê-la no palco sabe que é isso mesmo, sem nenhum exagero.
O leitor sabe. Há muitos momentos na vida em que o que mais queremos, o que mais precisamos é simplesmente fugir da realidade que nos oprime, nos incomoda, nos torna infelizes. Essa realidade pode consistir num problema sério ou apenas num certo cansaço com as coisas e situações do dia a dia. A situação do país, por exemplo, martelando nosso juízo cotidianamente nos jornais (os que restam) e na televisão. Uma tediosa repetição de notícias deprimentes, suficiente, por si só, para levar qualquer um à depressão. Que fazer então?
Foi assim que Gilberto Amado definiu o nosso Itamaraty, segundo Antônio Carlos Villaça em carta ao escritor cearense Edmílson Caminha. Que definição notável! Digna de um grande escritor, de um mestre das palavras e das imagens, que Gilberto efetivamente foi. Suas memórias em vários volumes estão aí para comprovar. E ele fala com conhecimento de causa, pois foi diplomata durante muitos anos, nomeado por Getúlio Vargas, sem concurso.