Stefan Zweig tinha predileção por eles. Aos vitoriosos, preferia os perdedores, maiores e menores, não importava. Por isso, biografou e perfilou de Maria Antonieta, a rainha guilhotinada, a Sebastião Castellio, personagem pouco conhecido que teve a coragem de enfrentar o todo-poderoso Calvino – e perdeu, claro. Nos livros desse austríaco triste que conheceu a glória e o exílio, os perdedores ganharam a compreensão e a admiração da posteridade, o que, no fim, não deixa de representar a melhor e mais definitiva vitória.
Neste 12 de outubro de 2023 o escritor Fernando Sabino, se vivo fosse, estaria completando cem anos de nascimento. Em condições normais, imagino que a data talvez viesse a ser não apenas lembrada mas também celebrada nos meios culturais brasileiros, dada a importância do mineiro nas letras nacionais. Acontece que, como bem sabem alguns, as condições desse centenário não são propriamente “normais”, dada a catástrofe literária que se abateu sobre o autor com a publicação, em 1991, de seu livro Zélia, uma paixão (Editora Record, Rio de Janeiro, 1991), cujo imaginoso subtítulo era “Romance da figura mais surpreendente de nossa vida política nos últimos tempos”. Essa figura, que na verdade não tinha nem tem nada de romanesca, é a ex-ministra da Economia no governo de Fernando Collor, Zélia Cardoso de Mello, de triste memória, ressalte-se.
De perto, todo mundo é diferente, ou seja, é igual ao que é, realmente. De longe, as aparências costumam enganar, as virtudes e os vícios eventuais se exacerbam ao olhar alheio, talvez menos atento, e aí a imagem formada pode não coincidir com a realidade. Mas de perto a história é outra. A escritora nova-iorquina Sigrid Nunez, aos vinte e poucos anos, teve a oportunidade de conviver com Susan Sontag, inclusive morando em sua casa, por um bom período. Era uma espécie de assistente (inicialmente, datilografava a correspondência) e depois tornou-se namorada do filho da ensaísta; mas logo se estabeleceu entre as duas uma relação de amizade, o que lhe permitiu observar e penetrar
Eu não sabia, confesso. Mas fiquei sabendo que existe, há poucos anos, na estrutura governamental da Inglaterra um Ministério da Solidão. Isto mesmo, leitor, um Ministério da Solidão, acredite quem quiser. Que coisa extraordinária, pensei. Até para países civilizados e desenvolvidos é algo fora do comum, absolutamente singular, pleno de criatividade e salutares consequências, imagino. Pois não será a solidão um dos males que mais aflige a humanidade, desde sempre, mas bastante acentuado nas últimas décadas, principalmente nos centros urbanos, onde reinam o anonimato e a impessoalidade?
De quantas traições é feita a história... Se fôssemos radicalizar, poderíamos até dizer que a história é feita, tem sido feita, a partir de traições. Maiores ou menores, explícitas ou camufladas, não importa, mas sempre traições. De homens, de mulheres, de civis, de militares, reais ou inventadas, de todos os tipos. A literatura ficcional também é feita de traições, pelo menos boa parte dela, talvez a melhor. Que coisa é essa, tão presente – e com tanto poder?
Com um pequeno atraso, repito o óbvio: o mundo ficou mais feio, pois morreu Jane Birkin, aquela deusa que cantava, desde 1969, “Je t’aime … moi non plus”, sussurrando mais que cantando, é verdade, até chegar ao clímax da imitação de um orgasmo que habitou ouvidos, corações e mentes de milhões de homens no mundo inteiro, a maioria hoje provavelmente na casa dos setenta. Que jovem daquela época heroica não dançou ou não sonhou dançar coladinho aquela linda canção feita exatamente para isso mesmo: dançar juntinho da garota dos nossos sonhos - ou pesadelos, não importa? Delícia e tortura, dependendo da situação,
Aquele pobre homem de Póvoa de Varzim (distrito do Porto) e que se tornou um dos maiores escritores portugueses e universais de todos os tempos só agora, agosto de 2023, chega ao Panteão Nacional de Portugal, instituição que “acolhe e homenageia as pessoas mais importantes da história” daquele país. Nada mais justo. Afinal, ao lado de Camões e de Fernando Pessoa, o velho Eça está entre os deuses do Olimpo da língua portuguesa e não há dúvida quanto a isto. Ponto.
É só no que se fala nestes últimos tempos. Harmonização facial pra cá, harmonização facial pra lá, e por aí vai esse recente modismo estético-médico-social, no qual, como nas salsichas, misturam-se muitas coisas e motivações, algumas não muito salutares, esta é a verdade. É apenas um modismo temporário, como a quase totalidade das modas, ou é uma tendência de comportamento da sociedade, com possibilidade de alguma permanência? Sinceramente, não sei, até porque não sou sociólogo nem antropólogo nem nada, mas o tempo dirá, como sempre faz. Aliás, é exatamente o tempo o fator que diferencia moda do que não o é: se passa rápido, é modismo; se fica, não é.
Atemporal e corajoso. Atemporal porque é eterno, está além do tempo, existirá, sob mil disfarces, enquanto existirem os humanos e o sentimento amoroso que lhes é próprio. Corajoso porque publicizado em poemas reunidos em livro sem nenhum temor – ou pudor. Admirável romantismo que se expõe em tempo tão antirromântico como o nosso, tempo em que até se ri do romantismo, tido por obsoleto por amantes que talvez desconheçam o amor enquanto lirismo, posto que limitados ao rés do chão do sexo casual; amantes que, mal informados - e mal formados -, confundem romantismo com pieguice e não entendem absolutamente a sutil distinção feita por Rita Lee em célebre canção: “sexo é prosa, amor é poesia”.
A escritora Heloísa Buarque de Hollanda, que acabou de tomar posse na Academia Brasileira de Letras, na vaga de Nélida Piñon, resolveu, aos 84 anos, trocar de sobrenome. Reirou o Buarque de Hollanda de seu ex-marido e colocou no lugar o Teixeira de sua mãe. Heloísa é uma intelectual respeitada, independentemente de gênero. É também uma feminista antiga (no bom sentido) e militante, e é provavelmente por este viés que ela explica a inusitada decisão.
Esta frase do título acima tomei emprestada de Luciano, que, num momento de felicidade retórica, usou-a na saudação que fez à sua mãe por ocasião de seu 80º aniversário, há mais de uma década. Ele primeiro disse “Hosana nas alturas!”, dando graças a Deus pela vida longeva e saudável da genitora querida, para depois concluir, criativa e belamente, colocando a própria Dona Ozanira Maia nas alturas celestiais. Repito, pois, Ozanira nas alturas, pois é onde ela certamente está, agora que foi chamada ao descanso da eternidade, após uma vida admirável e fecunda.
Washington Rocha é um dos mitos, se é que posso dizer assim, de minha juventude. Ginasiano no extinto Colégio Estadual do Roger na segunda metade dos anos 1960, não consigo dissociar aquela época da figura carismática do líder que, literalmente, com a força da palavra e do idealismo, levantava e inflamava multidões de jovens estudantes em históricas passeatas em favor da democracia, naqueles tempos de ditadura militar recentemente instalada no país. Ele também era jovem, praticamente da idade dos seus liderados, mas com esta diferença fundamental:
Observo que Eitel Santiago de Brito Pereira vem aos poucos fazendo o mesmo percurso intelectual que fez seu pai Joacil a partir de certa fase da vida: caminhar cada vez mais do direito para a literatura. O que é compreensível, pois, para os verdadeiramente vocacionados, as letras literárias têm uma capacidade de encantamento maior que as jurídicas. Principalmente em tempos em que o direito, pelo menos aqui no Brasil e sob determinados aspectos, não tem se apresentado muito atraente nem edificante. Com isso, ganha a literatura paraibana sem que se perca o reconhecido jurista.
João Batista de Brito, nosso notável professor, cronista e crítico de cinema e de literatura, é daquelas pessoas discretas por natureza e por sabedoria. E esse é um dos seus charmes, um dentre outros, certamente só acessíveis aos privilegiados aos quais ele abre a porta, uma fresta que seja, de sua preservada individualidade. Como todo sábio, ele fala menos do que ouve, e quando quer expressar seu pensamento, geralmente escreve mais do que fala. É uma das nossas mais altas estrelas intelectuais, sem nenhuma dúvida, com renome para além dos muros baixos da aldeia, e, ao mesmo tempo, é uma das que faz menos alarde disso. Na verdade, não faz alarde nenhum, e até se esconde quando tal é possível.
Patos tem sido, ao longo da história, celeiro de importantes políticos. Alguns mais restritos ao âmbito municipal, outros que conquistaram nome estadual e um ou outro que atingiu alguma projeção nacional, a exemplo de Ernani Sátyro, que teve reconhecida atuação parlamentar na Câmara dos Deputados, notadamente durante o período da ditadura militar pós-1964, à qual serviu com fidelidade. E por ter tido inequívoco destaque nacional e ter exercido o governo da Paraíba por quatro anos (1971-1975), Sátyro provavelmente foi o político patoense de maior destaque a partir da segunda metade do século XX, talvez em todos os tempos. Em política, como se sabe, o mais das vezes a importância deriva mais dos cargos ocupados que das pessoas que os ocupam, se bem que, no caso particular de Ernani, ele possuía valor pessoal, sim, inclusive o literário, autor que foi de obra respeitada.
Li e gostei. Gostei muito, como sempre. E li rápido, em dois dias apenas, um livro de 239 páginas, como costumo ler o que me dá prazer. Não quer isto dizer, claro, que li superficialmente – ou perfunctoriamente, como diria algum esnobe. Ao contrário. Li com a atenção, diria mesmo a devoção com que se lê os livros que merecem. E não exagero. Nem pretendo agradar o autor, que, aliás, anda a merecer todos os agrados, não só por sua consagrada obra, mas agora também por seu título de nonagenário lúcido e quase lépido. Por isto, permitam-me iniciar recomendando, a quem ainda não leu, Com os olhos no chão, MVC/Forma Editora, João Pessoa, 2023, a mais recente publicação de Gonzaga Rodrigues, hoje decano de nossa melhor crônica.
Ela se chamava Isabel da Nóbrega (pseudônimo de Maria Isabel Guerra Bastos Gonçalves), escritora portuguesa, autora de respeitada obra e falecida em 2021, aos 96 anos, no Estoril. Ele, o tal prêmio Nobel, foi José Saramago, companheiro dela de 1970 a 1986 e falecido em 2010. A partir de quando se separaram, em 1986, literariamente ele foi cada vez mais em frente (e para o alto), enquanto ela, pode-se dizer, estagnou ou, digamos, permaneceu onde estava, com seu nome praticamente restrito ao seu país. Ele foi ao mundo e se apaixonou por outra, a jovem jornalista espanhola Pilar, a quem legou o título de “viúva” e os bônus correspondentes. Eu diria que legou-lhe até mais, dado o sumiço imposto a Isabel desde a separação: seu presente, sua posteridade e até,
Dia desses, estava em uma das empresas de velório da cidade cumprindo o doloroso dever de solidariedade para com um amigo que perdera um filho. Ambiente triste, como seria de esperar, onde, pela conversa eventual e discreta com um e com outro, procura-se aliviar a tensão inerente ao momento. O leitor sabe como é. Ali naquele espaço e naquelas circunstâncias travava-se – e trava-se repetidamente — o eterno combate entre Eros e Tânatos, já explicado por Freud, as duas pulsões (de vida e de morte) que marcam permanentemente a existência dos humanos e de todos os seres vivos, resultado da finitude que a todos condena à efemeridade. Daí as conversas e eventualmente até mesmo inoportunas
Certamente por excesso de recato, os olhos no chão parecem ter sido uma constante na vida de Gonzaga Rodrigues desde que ele aportou, rapazinho, por estas plagas citadinas, ali na Praça Pedro Américo, onde paravam os ônibus vindos do interior. Mas melhor assim, penso eu, pois mais vale a timidez de olhos baixos que a arrogância de narizes empinados. José Américo era o governador e ele vinha de Alagoa Nova acompanhando um amigo conterrâneo, sobrinho de José Leal, secretário de jornal da capital e nome já ilustre no jornalismo da província. Esse amigo tinha a promessa de um emprego, logo confirmada pelo tio bem colocado, mas Gonzaga nem isso: trazia só sua parca
Era o ano de 1977. Nelson Rodrigues aos sessenta e cinco anos, cansado, com a saúde debilitada e sem gostar de viajar, decide, surpreendentemente, aceitar um convite para uma noite de autógrafos de seu livro O reacionário, recentemente publicado, a realizar-se em Florianópolis. Nelson, que notoriamente cultivava idiossincrasias, recusava-se a viajar de avião e dizia que “quando passava do Maracanã já começava a sentir saudade do Brasil”. Mas mesmo assim viajou. No seu carro, um imenso Opala, dirigido por um motorista, e acompanhado por uma irmã. Do Rio a Floripa, direto, são dezessete horas de estrada. Não é mole. Imagine para um homem que à época, de tão frágil, parecia um ancião, cheio de mazelas, e que morreria três anos depois. Pois ele foi, ninguém sabe porquê.