Certamente por excesso de recato, os olhos no chão parecem ter sido uma constante na vida de Gonzaga Rodrigues desde que ele aporto...

Gonzaga Rodrigues: com os olhos no céu

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Certamente por excesso de recato, os olhos no chão parecem ter sido uma constante na vida de Gonzaga Rodrigues desde que ele aportou, rapazinho, por estas plagas citadinas, ali na Praça Pedro Américo, onde paravam os ônibus vindos do interior. Mas melhor assim, penso eu, pois mais vale a timidez de olhos baixos que a arrogância de narizes empinados. José Américo era o governador e ele vinha de Alagoa Nova acompanhando um amigo conterrâneo, sobrinho de José Leal, secretário de jornal da capital e nome já ilustre no jornalismo da província. Esse amigo tinha a promessa de um emprego, logo confirmada pelo tio bem colocado, mas Gonzaga nem isso: trazia só sua parca
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Gonzaga Rodrigues
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literatura juvenil, seus limitados sonhos de quem, por modesto, contentava-se com pouco e certamente alguma esperança no futuro, pois esta não falta nem no alforje dos mais desvalidos. Como seria de esperar, José Leal não pode, naquele momento, fazer muita coisa pelo amigo do sobrinho, mas alguém na redação, como se ouvindo as preces de Dona Antonina, botou os olhos em cima do desamparado rapaz, convidou-lhe para um café no Alvear e deu-lhe a necessária injeção de ânimo, sem a qual os começos pessoenses do futuro cronista teriam sido ainda mais difíceis. Esse anjo da guarda inesperado chamava-se Geraldo Sobral e só por isso, por aquele gesto de pura e gratuita fraternidade, merece o lugar que tem na história cultural paraibana.

Olhos nos chão manteve Gonzaga numa certa noite mais adiante, vindo do Liceu, onde abandonara uma aula pela metade, em direção do Alvear onde, sem tostão, tomou uma mesinha de granito ao canto, sob o olhar pouco amigável do garçom diante daquele freguês que nada pedia, nem mesmo um simples cafezinho, quem diria a famosa cartola ou a média inglesa com pão ao forno, iguarias que o rapaz às vezes dividia, em dias mais felizes,
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com dois companheiros colegiais: Bau Montenegro e Isauro Peixoto Filho. Bem que a mãe lhe recomendara nunca botar o pé adiante da mão nem entrar onde não se é chamado … Agora tinha, desarmado, de enfrentar a implacável indagação do garçom pouco compassivo: “Quer alguma coisa?” Dia pesadíssimo aquele.

E mais outros iguais viriam, durante bom tempo. Até que o rapaz versejador foi encontrando seu caminho, uma ajuda aqui, outra acolá, as entranhas e as redações dos jornais dando-se a conhecer àquele que, a partir dali, não faria outra coisa na vida: escrever, escrever e escrever, fazendo da palavra escrita, publicada ou não, mais que seu ganha-pão, sua razão - primeira e última – de viver. E com a palavra escrita, arduamente conquistada e trabalhada dia a dia, o jovem alagoanovense foi crescendo, crescendo, até se tornar rei das redações de jornais, imortal da Academia de Letras, doutor honoris causa da UFPB e, aos noventa anos, decano de nossa crônica e inconteste astro das letras aldeãs, não só de agora, mas de todos os tempos.

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Gonzaga Rodrigues
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Nos começos, e mesmo quando já estabelecido – e reconhecido, insistiu em conservar os olhos baixos diante dos maiorais da cidade. Um Osias Gomes, um Oscar de Castro, um Celso Mariz, um José Rafael de Menezes, um José Leal, um Juarez da Gama Batista, um Virginius da Gama e Melo, um Luiz Augusto Crispim, um Carlos Romero, um Vanildo Brito, um Francisco Pereira Nóbrega, dentre outros, sem falar em José Américo de Almeida, sua admiração maior, o ídolo imenso de quem certo dia mereceu a visita surpreendente no hospital onde se recuperava de poética enfermidade. É possível que as fumaças universitárias desses “grandes” tenham intimidado o jornalista autodidata. Tolice, agora se sabe, pois seu cabedal de leituras à época já não ficava atrás do de ninguém na aldeia, era uma silenciosa biblioteca ambulante, em permanente expansão. E se aqueles “cardeais” pudessem adivinhar o futuro provavelmente teriam sido mais receptivos para com o noviço.

Esses olhos voltados para o chão certamente são acre herança das acidentadas origens, de sua história pessoal e familiar, dos gens que correm em seu sangue brejeiro, da prevenida educação recebida da mãe e do pai adotivos, gente honrada, modesta e altiva ao mesmo tempo, briosa em sua simplicidade, feita da matéria de um Samuel Duarte, o político que, mesmo necessitado,
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Samuel Duarte CC0
recusou o dinheiro do milionário Drault Ernani e foi por este chamado de “pobre orgulhoso”. As marcas da infância, sabemos, ficam para sempre, e não foi à toa que o velho Machado de Assis, de meninice e adolescência também difíceis, já escrevera que “o menino é o pai do homem”. Como negar tais sabedorias mais que provadas pela experiência?

Sem nenhuma dúvida, é bonita essa modéstia que tem acompanhado, ao longo da vida, o cronista Gonzaga; é bonita porque feio e desonroso seria o esquecimento voluntário, por parte dele, dos árduos começos; é bonita principalmente se vista dos píncaros a que chegou o filho de Dona Antonina, confirmando, com seu alvissareiro exemplo, que “o importante não é de onde se parte, mas aonde se chega”, emblema honorífico de tantos vitoriosos admiráveis. Tivessem seus caminhos sido fáceis, como foram os de muitos que se perderam na vida, talvez não estivesse agora colhendo os aplausos unânimes da aldeia. A propósito, que foi feito de Anchieta, aquele sobrinho de José Leal, seu jovem companheiro de chegada à capital, imediatamente empregado pelo tio ilustre?

Os maiorais, seguindo a lei da vida, foram aos poucos se aposentando e morrendo, deixando um espaço na cultura local que Gonzaga, mesmo sem pedir e sem nunca forçar a porta, foi naturalmente ocupando, até atingir, sem controvérsias, a consagração atual, mais de seus méritos que
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da bela idade longeva, mais de sua alta obra jornalística e literária que de sua antiguidade no ofício, mais de sua incessante labuta diuturna que do grisalho de seus cabelos … A simbólica medalha da “Legião de honra” que agora a Paraíba reconhecida coloca em seu peito magro e curtido, porque nunca teve a chance de engordar às custas de benesses públicas e privadas, faz-lhe a única justiça que importa e que fica: aquela que nasce espontaneamente dos seus concidadãos, perfumada com o cheiro aclamativo das homenagens indiscutíveis.

Vê-se que continua fiel a certos credos juvenis, a despeito das desilusões. A esta altura, tal fidelidade, que a alguns pode parecer inofensiva teimosia, converte-se em virtude respeitável, digna dos capitães que não abandonam os navios naufragados.

O cronista bem poderá dizer que esses “olhos no chão” do título do livro agora publicado (Editora MCV Forma, João Pessoa, 2023) têm a ver com a provecta idade do autor, atualmente um pouco – só um pouco - recurvado por conta do peso dos anos. Tudo bem, concedo.
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Afinal, é comum os privilegiados nonagenários olharem mais para baixo que para cima. A lei da gravidade é um fato de que não se pode fugir. Mas é óbvio que alguém como Gonzaga, que escreve semanalmente em A União e no Ambiente de Leitura Carlos Romero, que acaba de publicar um livro muito esperado e que circula diariamente pela urbe com muita disposição, há também de ter os olhos no céu. E não necessariamente no céu dos religiosos, no qual talvez não acredite, ainda por influência do pedreiro Luiz de França, primeiro guru ideológico, nunca esquecido.

Entretanto, são exatamente esses “olhos no céu” que interessam nesta hora aos muitos leitores e amigos de Gonzaga Rodrigues, o escriba que, devagar e sempre, alcançou o topo da montanha literária paraibana e de quem nos orgulhamos de ser contemporâneos, a contemplar as mesmas estrelas e o mesmo firmamento.

Hora de levantar os olhos, cronista! O escrivão Isaías Caminha finalmente venceu. E o antigo coroinha agora veste a túnica branca dos papas.

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  1. O texto do poeta Gil Messias , nos abraça a alma em um belo, poético e fiel retrato do nosso cronista maior , o inolvidável Gonzaga Rodrigues!

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