Com um pequeno atraso, repito o óbvio: o mundo ficou mais feio, pois morreu Jane Birkin, aquela deusa que cantava, desde 1969, “Je t’a...

Os sussurros libertadores de Jane Birkin

jane birkin serge gainsbourg
Com um pequeno atraso, repito o óbvio: o mundo ficou mais feio, pois morreu Jane Birkin, aquela deusa que cantava, desde 1969, “Je t’aime … moi non plus”, sussurrando mais que cantando, é verdade, até chegar ao clímax da imitação de um orgasmo que habitou ouvidos, corações e mentes de milhões de homens no mundo inteiro, a maioria hoje provavelmente na casa dos setenta. Que jovem daquela época heroica não dançou ou não sonhou dançar coladinho aquela linda canção feita exatamente para isso mesmo: dançar juntinho da garota dos nossos sonhos - ou pesadelos, não importa? Delícia e tortura, dependendo da situação,
Jane Birkin, 1960s
talvez mais que qualquer outra, esta canção emblematizou musicalmente os anos 1970 para sempre, pelo menos no coração (e no sexo) da juventude de então. E, para além da canção, a extraordinária beleza da cantora, com tudo que ela permitia imaginar, só fazia aumentar o encantamento dos extasiados ouvintes, alguns dos quais, mais sensíveis ou mais ousados, chegavam mesmo ao êxtase cobiçado.

Verdade que a célebre canção era compartilhada por Serge Gainsbourg, compositor então casado com a cantora e cuja ostensiva feiura só servia para realçar ainda mais a beleza daquela. O Gainsbourg era mesmo feio pra valer e suscitava graves reflexões sobre esse curioso fenômeno muito antigo e universal: a aparentemente inexplicável capacidade de sedução de alguns homens feios sobre mulheres fenomenais. Seria o dinheiro? Seria a inteligência? Seriam os dotes penianos? Que diabo seria? Em todo caso, esses conquistadores improváveis, mais recentemente representados por Woody Allen, serviam de muito consolo e de muita esperança para os inúmeros marmanjos desprovidos de atrativos físicos pelo mundo afora, pois se eles conseguem, por que eu não?

Jane Birkin e Serge Gainsburg, 1970s
Algumas informações interessantes colhi sobre a musa: ao contrário do que muitos pensam, Jane Birkin não era francesa, mas nascida em Londres; depois ela naturalizou-se, incorporando definitivamente a condição de símbolo feminino da França. E a canção “Je t'aime...” foi composta originalmente para outra belezura da época: Brigitte Bardot, com quem, acredite se quiser, o improvável Gainsbourg fora casado. Eita, cabra bom de mulher bonita!


Mas o fato é que a Birkin estava mesmo predestinada ao escândalo e ao sucesso, pois foi dela, aliás num pequeno papel, o primeiro nu frontal numa produção britânica, o famoso filme “Blow-Up: Depois daquele beijo”, dirigido pelo italiano Michelangelo Antonioni. Isto em 1966, imagine, antes das explosões revolucionárias de 1968, que realmente colocaram, em termos comportamentais, tudo pelo avesso – e de fora também, claro.

Tem mulheres assim, sabemos, com esse carma – ou esse destino, melhor dizendo. O de provocar terremotos, abalar estruturas tradicionais, tornarem-se símbolos, mitos, enfim. Foi assim, além da Birkin, com Marilyn Monroe e Brigitte Bardot, por exemplo. Mulheres belas, cada qual a seu modo, namoradas ou esposas de homens famosos e/ou influentes,
Jane Birkin, em 1974
bem sucedidas profissionalmente, mas nem sempre felizes na vida privada. No século XX, estas três são incontroversas, creio eu. Outras, chegaram perto, mas não alcançaram a dimensão delas, como Ava Gardner e Elizabeth Taylor, estrelas internacionais de reconhecida beleza e repercussão, a primeira mais rebelde que a segunda, sem dúvida. O resto, parece, é silêncio.

Começando cedo, Jane Birkin teve praticamente seis décadas de carreira, pois morreu aos 76 anos. Foi múltipla, pois atuou com êxito no cinema, na música e na moda, feito raro, para dizer o mínimo. Trabalhou, com maior ou menor destaque, em aproximadamente 70 filmes, número respeitável para qualquer atriz. E apesar do alvoroço que provocou jovenzinha com o nu frontal e a sensualíssima canção, levou uma vida privada discreta e aparentemente sóbria, o que demonstra sabedoria e amadurecimento existencial. A vida não é só oba oba, salvo para José Celso Martinez, que Deus o tenha.

Não sei o que acham os jovens de hoje de “Je t’aime … moi non plus”. Talvez não achem nada, pois o sexo há muito que se desmistificou e se banalizou para eles, sem falar no fato de que já não dançam coladinhos, se é que dançam e percebem com quem estão a dançar. Ó tempos! Ó costumes!, repetiria Cícero agora se redivivo, condenado a ser totalmente ignorado por todos, salvo, talvez, pelos raros contemporâneos da saudosa Birkin ainda vivos, os tais setentões.

Jane Birkin, em 2022, durante apresentação no Barbican Centre, Londres
A trilha sonora de minha mocidade permanece na minha débil memória e no meu calejado coração. Aos poucos, entretanto, vão desaparecendo seus intérpretes originais. Cantar agora com Maysa que “meu mundo ruiu” seria demais, reconheço. Aliás, Maísa também já pegou o trem (que não é o da alegria). Perdoe, leitor, a indisfarçada nostalgia (a caretice, dirá alguém) do texto. Mas com este tema, não deu para evitar.

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