Li e gostei. Gostei muito, como sempre. E li rápido, em dois dias apenas, um livro de 239 páginas, como costumo ler o que me dá...

Breves notas sobre o novo livro de Gonzaga

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Li e gostei. Gostei muito, como sempre. E li rápido, em dois dias apenas, um livro de 239 páginas, como costumo ler o que me dá prazer. Não quer isto dizer, claro, que li superficialmente – ou perfunctoriamente, como diria algum esnobe. Ao contrário. Li com a atenção, diria mesmo a devoção com que se lê os livros que merecem. E não exagero. Nem pretendo agradar o autor, que, aliás, anda a merecer todos os agrados, não só por sua consagrada obra, mas agora também por seu título de nonagenário lúcido e quase lépido. Por isto, permitam-me iniciar recomendando, a quem ainda não leu, Com os olhos no chão, MVC/Forma Editora, João Pessoa, 2023, a mais recente publicação de Gonzaga Rodrigues, hoje decano de nossa melhor crônica.

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Gonzaga Rodrigues e José Nunes
@jose.nunes
A seleção dos textos, reunindo crônicas mais antigas e outras mais novas, feita pelo filho Paulo Emmanuel e pelo amigo José Nunes, não poderia ter sido mais feliz e criteriosa. Feita com sensibilidade estética e conhecimento da história do escritor e de seus temas, mas principalmente com afeto, aquele que se via no cuidado das mães de antigamente quando arrumavam os filhos pequenos para a missa do domingo. Um afeto que se vê – e se sente, tão explícito é. Só mesmo um filho e um amigo amorosos para fazer com tanto zelo e paciência esse trabalho de fino ourives. E a dificuldade maior, creio eu, deve ter sido exatamente separar ouro de ouro, diamante de diamante, com vontade de não excluir nada e correndo o risco (adorável para os leitores) de deixar o volume tão grosso quanto uma Bíblia (com todo respeito).

Não posso deixar de mencionar também a qualidade da edição, com a assinatura do saudoso Juca Pontes, e as belas ilustrações de Flávio Tavares, ambos mestres de sua arte. São detalhes – se é que o são – que somente valorizam o livro, como bem sabe o leitor, pois aquele, em sua tradicional forma física, é também um objeto e, como tal, tem direito a participar do belo, em suas múltiplas manifestações, juntando forma e conteúdo numa unidade harmônica, boa de se ver e de se tocar.

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Nos meus curtos saberes de leitor (como curtos são todos os meus poucos saberes, se é que os tenho), identifico, à primeira vista, no novo livro gonzaguiano, duas presenças, para mim incontornáveis, e que, na verdade, estão também em outras obras do autor, talvez em todas: o passado e a melancolia. Outros leitores mais argutos certamente registrarão outros aspectos, o que é normal – e até esperável, já que os bons livros e as boas obras de arte são mesmo pródigos em ofertar diferentes ângulos aos olhares críticos. Mas para mim, simples leitor, aquelas foram as questões que mais me tocaram.

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R. Duque de Caxias / Café Alvear
@petronio.souto
Quem acompanha, ao longo do tempo, a obra cronística de Gonzaga já deve ter notado que provavelmente na maioria de seus textos, certamente nos melhores, o domínio indisfarçável é do passado, das coisas, dos lugares e das pessoas do passado, hoje, diga-se, quase tudo – ou tudo mesmo – desaparecido, seguindo a ordem natural do mundo e da vida, onde nada dura para sempre, salvo Deus, quem sabe o Diabo. O gosto do cronista está nesse passado, não há dúvida, no que viu, no que sentiu, no que viveu. Desde o começo. Mas não por simples passadismo, não pela gratuita e injustificada visita ao que passou ou ficou “velho”. Não. Fosse assim e ele seria um cronista “chato”, apenas de leitores idosos, contemporâneos de suas narrativas nostálgicas. Entretanto, como sabemos, ele é o contrário disso. E seu talento para ressuscitar, pela palavra escrita, paisagens, histórias e personagens nos delicia, nos ensina e nos comove, a jovens e não jovens, a todo mundo, numa unanimidade aplaudida.

Claro que ele trata também de alguns traços – principalmente os odiosos – de nossa arrogante e pretensiosa “pós-modernidade”. Isto para provar que não alienou-se do mundo atual, como tantos
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R. Duque de Caxias (J. Pessoa)
@petronio.souto
de sua faixa etária, e apesar, desconfio, de que, se pudesse, deliberadamente alienar-se-ia, pelo menos de muitas coisas e pessoas. Mas, percebe-se, seu gosto é invocar o que – e quem – já passou, para revivê-los pela lembrança, a partir de suas impressões e seus sentimentos. Este trabalho evocativo não é fácil – nem poderia ser. Mas é através dele – e nele – que o autor constrói literariamente sua obra maior – e se reconstrói existencialmente, percorrendo os velhos caminhos de Alagoa Nova, de Campina Grande e do Ponto de Cem Réis. Tudo intacto, suspenso no ar, como o quarto demolido e imortalizado por Manuel Bandeira, no poema “Última canção do beco”, de 1942.

Pessoalmente, não tenho nenhum problema com o chamamento do passado à literatura e à arte em geral. Acho mesmo, sem nenhum fundamento teórico, que, no fim, tudo é sobre o passado, até o texto escrito agora sobre o acontecimento de ontem. O homem só pode escrever e criar sobre o que viveu, direta ou indiretamente – e isso é passado. Como gosto do que o cronista escreve sobre os seus pais, as figuras marcantes de seu chão natal, José Américo, Juarez Batista, José Leal, os colegas da Casa do Estudante e do Liceu, os frequentadores do Café Alvear e do Ponto de Cem Réis, Nathanael Alves, Martinho Moreira Franco, Luiz Augusto Crispim, Ângela Bezerra de Castro,
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Gonzaga Rodrigues @jose.nunes
Adalberto Barreto, Geraldo Carvalho, Zé Moscou, Osmar de Aquino, Biu Ramos, José Rafael de Menezes, os políticos daqui e de fora, os intelectuais, os doidos, toda uma inesgotável – e ao seu modo notável – galeria de personagens, suficientes para se erguer – como o cronista de fato ergueu, sem exagero, mesmo que em escala menor – uma verdadeira “Comédia paraibana”, ao modo de Balzac (e, por favor, não me chamem de louco). Como o próprio cronista confessou: “ Tudo muito longe, tudo muito perto”. Sem dúvida.

Veja-se quanto poder-se-ia escrever sobre a presença do passado na crônica de Gonzaga. Nelas há, sem nenhuma condescendência, farto material para dissertações de mestrado e teses de doutorado. Basta a academia descer um pouco de suas teóricas alturas artificiais para vir à realidade da vida criada e recriada por nosso cronista do povo.

E a melancolia? Ah, essa melancolia que não chega a ser tristeza! E nada tem a ver com depressão, seu novo nome tão pouco poético. Essa melancolia, penso, não são apenas dos textos, nenhum exultante de alegria ou de otimismo – é de Gonzaga mesmo, de sua alma profunda, de seu jeito de ser e estar no mundo. Tem pessoas que são assim, nascem assim, e isto, ressalte-se, não é nenhum defeito: é somente um temperamento, uma maneira pessoal de ver e sentir as coisas. Em alguns casos, é uma sabedoria, porque, como alguém já disse - e eu concordo, “só os idiotas são felizes”, são permanentemente alegres, panglossianos, achando que tudo está bem e tudo vai dar certo.

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Gonzaga Rodrigues A. David Diniz
Se lidos com a devida calma e pontuação, sente-se logo nos textos gonzaguianos uma doce (às vezes amarga) melancolia; até quando ele narra conquistas ou situações hilárias, percebe-se a atmosfera meditabunda, perdoem-me a palavra antiga. Mas a prefiro a outras, como pesar, mágoa ou desgosto. Estas, creio, o cronista consegue belamente evitar, a fim de conservar, para o deleite do leitor, a leveza inerente à crônica. Coisa não alcançada no mesmo gênero literário pelo Nobel Saramago, conforme impressão minha, de nenhuma autoridade, aliás.

Na introdução de seu novo livro, o cronista escreve, como quem se desculpa: “São as coisas pequenas de que têm sido feitos meus livros”. E ouso acrescentar: Ainda bem! As coisas grandes que fiquem para os outros, os metidos, os vaidosos, os pretensos eruditos de todo tipo, verdadeiros ou falsos. Ledo Ivo disse que o cronista é o historiador das coisas que não entram para a História. Não é assim com Gonzaga, sabemos, em cujas crônicas temos História, Sociologia, Antropologia e Literatura à vontade. Principalmente, temos a Paraíba dos últimos setenta anos, em prosa da mais fina qualidade. Precisa mais?

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  1. Primorosa análise do livro de Gonzaga Rodrigues, que também li com satisfação. Gil Messias é um dos grandes talentos de minha geração.

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  2. Obrigado pelo comentário.

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