Antes de comentar a segunda lição de compreensão do texto literário, via Os Miseráveis, gostaria de me dirigir aos meus alunos de clássica...



Antes de comentar a segunda lição de compreensão do texto literário, via Os Miseráveis, gostaria de me dirigir aos meus alunos de clássicas e a todos que estudam ou desejam estudar latim, para dizer que podemos aprender as nuances dessa língua com Victor Hugo. Senão, vejamos.

Na parte III de Os Miseráveis – Marius –, Victor Hugo começa a traçar o perfil da Sociedade dos Amigos do ABC, jovens estudantes universitários, inflamados com a ideia de revolução e de república, numa França que, em 1815, após o desastre de Waterloo, voltou a ser monarquia e se encontrava sob o poder de Charles X, penúltimo rei de França.

Façamos um parêntesis para explicar que a sigla ABC não representa aqui só as três primeiras letras do alfabeto, numa alusão ao fato de que nenhuma sociedade pode querer ser justa sem educação. Para Enjolras, o futuro está nas mãos do professor – “l’avenir est dans la main du maître d’école”. L’ABC, na sonoridade da língua francesa, é também “L’Abaissé”, o rebaixado, o povo, que deveria ser a primeira preocupação de um estado republicano. Nem sempre é...

O primeiro perfil é o de Enjolras, depois vem o de Combeferre, feito a partir do paralelo com o jovem anterior. Ambos revolucionários, mas com meios diferentes de entender como atingir os ideais libertários e republicanos (vale a pena conferir o perfil completo, para nos darmos conta do tamanho desse escritor). Em um dado momento, Hugo sai-se com esta verdadeira pérola de sutileza, dando uma aula de latim, de modo a mostrar que a oposição entre eles é questão de nuance:

“S’il eût été donné à ces deux jeunes hommes d’arriver jusqu’à l’histoire, l’un eût été le juste, l’autre le sage. Enjolras était plus viril, Combeferre était plus humain. Homo et Vir, c’était bien là en effet leur nuance” (Parte III, Marius; Livre IV, Les Amis de L’ABC; Capítulo I, Un Groupe que a Failli Devenir Historique).

“Se tivesse sido dado a estes dois jovens chegar à história, um teria sido o justo; o outro, o sábio. Enjolras era mais viril, Combeferre era mais humano. Homo et Vir, aí estava, com efeito, sua nuance”.

Uma das dificuldades no ensino de qualquer língua é estabelecer diferenças sutis entre termos que parecem ter sentidos iguais. No caso do latim, a diferença entre HOMO e VIR consiste em que o primeiro é genérico, designando o SER HUMANO, por mais que de HOMO, HOMĬNIS tenha vindo via acusativo (hominem), a palavra HOMEM, que designa, em português, tanto o genérico, quanto o específico. Já o segundo termo VIR, no latim só expressa o homem do sexo masculino, cuja tradução pode ser homem viril, macho, amante, herói, não podendo ser empregado no sentido de ser humano. Em suma, todo VIR é HOMO, mas nem todo HOMO é VIR.

De modo hábil, Victor Hugo nos ministra uma lição para não mais esquecer, não importa se o leitor é ou não latinista.

Dediquei parte de minha vida ao batente diário no rádio. Nesse período, passava cerca de cinco horas por dia usando os microfones de impor...



Dediquei parte de minha vida ao batente diário no rádio. Nesse período, passava cerca de cinco horas por dia usando os microfones de importante emissora de rádio da Capital, a extinta Rádio Arapuan AM – 1.340 KHz.

Apresentava dois programas diários: “João Pessoa, Bom Dia”, das 5h às 8h, e “Jogo Aberto”, das 12h às 14h. Fazia isso sem contar com nenhuma espécie de produção, o que seria impossível hoje. Nos dias atuais, no mínimo, seria uma tremenda aventura, um voo cego.

Contava apenas com o telefone da cabine (às vezes cortado por falta de pagamento); um carro de frequência modulada circulando pelas ruas, com um repórter esperto a bordo; a simpatia do operador de áudio - e nossa criatividade, já que a internet só era conhecida nos livros de ficção científica.

Os programas começavam na hora certa, sendo a pontualidade britânica uma das marcas do apresentador. Mas nunca terminavam no horário preestabelecido, em razão da grande audiência e da presença de ouvintes para participarem das atividades no próprio estúdio - ou simplesmente para terem uma "conversa particular" comigo, na sala de espera, pedindo uma orientação, um conselho ou um favor qualquer: a libertação de um filho preso injustamente, proteção para vítimas da violência policial, internação de um parente enfermo ou o enterro de algum miserável.

Por força das circunstâncias - o que me deixava na condição de um misto de camelô e repentista -, era obrigado a comentar (e a me posicionar publicamente) a respeito dos mais variados assuntos - da falta de água nas torneiras à falta de vergonha das autoridades.

Era, portanto, sem ter essa intenção (e para o bem ou para o mal), uma figura polêmica, com alguma notoriedade na província, em consequência dessa minha diária hiperexposição pública. Apesar do sucesso, sentia-me uma espécie de doutor em generalidades. Um tagarela, por dever de ofício.

Talvez seja por isso que, volta e meia, ainda hoje me peçam para falar sobre o rádio paraibano, quase sempre colocando à frente a tão surrada pergunta: “O rádio daquele tempo era melhor do que o de hoje?” Resposta impossível de ser dada: os tempos são outros, o modo de fazer é outro, os empresários são outros, os profissionais são outros, a audiência é outra. Logo...

Só acho estranhas, hoje, as pautas de Polícia e de Política, infalivelmente presentes no dia a dia do ouvinte; uma presença que se dá a toda hora, a todo instante. Pode observar: no rádio (e, às vezes, até mesmo na TV), só dá Polícia e Política! Argh!

Para não ir muito longe, até porque não tenho mais tempo para nhém-nhém-nhém, vamos ao que realmente interessa: comecei a desligar o rádio e a televisão quando a cobertura responsável foi substituída pela dramatização excessiva.

No passado havia mais sobriedade em tudo. E hoje, portanto, ao fazer este comentário, sinto que o saudosismo (de minha parte pelo menos) é no mínimo inevitável.

* (foto à esquerda: Arquiteto Clodoaldo Gouveia, autor do Projeto da Rádio Tabajara, no centro de João Pessoa, demolida)

E assim se passaram 50 anos! O quê? Nunca imaginei comemorar 50 anos de algo que fosse. Esta semana, nós , turma da Quarta Série A das Lou...



E assim se passaram 50 anos! O quê? Nunca imaginei comemorar 50 anos de algo que fosse. Esta semana, nós , turma da Quarta Série A das Lourdinas, celebramos meio século de ginásio. Com pompa e circunstância. Festa sagrada e profana. O tempo passou, mas quando nos encontramos, é a mesma meninice: refrãos, sacanagens, e pilhérias. Tudo isso tomando Grapette! Repete! E rezando uma Ave Maria nos intervalos.

Fico sempre a lembrar de filmes como Shirley Valentine, e de Educating Rita. Porque? Pela Grécia, digo Lagoa; pela periferia londrina, digo Festa das Neves; e pela nossa turma da quarta A ginasial.

E diante dos nossos dias no colégio, por entre as freiras, os pátios, o pavilhão, a capela, os corredores, e a saída do colégio – a melhor parte.....A vida correu. E todas nos tornamos profissionais das mais diversas áreas: médicas, cirurgiãs, advogadas, defensoras públicas, engenheiras, químicas, arquitetas, professoras, escritoras, umas fadas das flores, outras do francês, do inglês, e até mesmo do além mar – do português.

A Internet nos aproximou num grupo de whatsapp e a partir daí fomos checando as informações da vida de cada uma. Por capítulos. E uma felicidade de constatar que estamos vivas (com exceção da querida Rosana Maciel); todas com saúde; algumas casadas, outras não; mães de família ou sozinhas; e com alegria de viver, apesar das vicissitudes do caminho. Não é pouco!

E esse colégio foi referência nas nossas vidas. Dizem algumas que, a melhor parte. Meninas, sonhadoras, em formação, em estado de curiosidade, de perspectiva ao futuro. O futuro chegou. E já faz tempo. E nesse espaço/tempo, experiências que marcaram as nossas trajetórias. Lembranças das risadas, da broncas, das alegrias, das delicadezas, mas também da severidade, e das opressões tantas; opressões essas que criticávamos e que hoje sabemos bem dos nós que alinhavavam o nosso desenvolvimento na perspectiva de uma vida de menina/mulher. A nossa música? Andança, (Paulinho Tapajós), cantávamos pra afirmar cotidianamente a nossa amizade.

Claro que estudar em colégio de freira gerava também algum descontentamento em algumas. Em mim particularmente, questionava a rigidez, a disciplina, e por vezes os preceitos religiosos, que eu ainda não entendia. Mas menina ainda, me emocionava com o cantar dos hinos no mês de maio; também indagava sobre os pecados, ou fragilidades da natureza humana, mais ainda das limitações de liberdade nas vidas das meninas.

Mas não só de estudo se vive! Tinha o Crush com pastel oco no recreio; as confissões e Orai pro Nobbis no mês de maio; as festas no auditório e nós dançando Metais em Brasa; o Coral para as afinadas; nossas peraltices do fazer escondido; as árvores do pátio; os segredos inconfessáveis das descobertas/vivências sexuais; as carteiras enceradas; os uniformes com o cós dobrado para virar mini saia; os bastidores da aula de bordado, e os alvoroços da saída, ficaram sim, nos nossos corações para sempre!

Um brinde à felicidade que um dia tivemos por entre portões, salas de aula, notas boas e/ou nem tanto; aprendizados; e o carinho que perdura até hoje. Resumindo , e também pensando nos filmes, acho que estamos a cumprir bem os nossos destinos a celebrarmos aquela turma que, um dia foi toda nossa e ainda é – A Quarta A.

Ah! O tempo! Esse senhor tão bonito!


Olha o afã de Rodin de pôr desespero... eterno... na Porta do Inferno, - sem atinar, ainda, ( até ver a sua luta finda ), que em tod...



Olha o afã de Rodin de pôr desespero... eterno... na Porta do
Inferno,
-
sem atinar,
ainda,
( até ver a sua luta finda ),
que em toda obra de Arte
o todo é sempre menor
do que a sua melhor
... parte,
-
no caso,
o dominante,
impactante Dante,
pelo que o refaz... separado,
ampliado,
criando,
jamais poderia supor,
a sua grande obra-prima:
O Pensador!

Basta... a gola ...num Rembrandt,
pra se ver quão ricas – quase lendas – eram as rendas
de Amsterdam.

... estratos,
cirros,
cúmulos e nimbos,
em que pese às toneladas d´água,
milagrosamente levitam,
e,
nesses limbos,
transitam,
-
até que... tudo... deságua... em frágua de raios,
furacões,
trovões,
-
e desce ... aos grandes,
sombrios
rios,
que vão,
de novo,
pros mares – como se eles fossem seus lares – e, clandestinos,
pros céus,
de onde vêm,
de novo,
em... véus,
...pras minas,
nascentes
e fontes,
passando debaixo das pontes,
... pra foz,
...a dar,
nos seus tantos e muitos trajetos – e insondáveis projetos – a vida ... atrevida... a esses rebanhos de ... estranhos,
que fomos e somos,
e sempre seremos:
nós.

e é quase certo
que
se estamos numa vasta necrópole,
temos metrópole por
perto,
-
assim a escultura,
na sepultura,
na qual um menino... franzino ( em que a vida... fez várias podas ) salta... da cadeira de rodas
pro céu,
explica que... sua gente,
apesar de cristã
é rica.

Nenhum Miller,
mais,
é moleiro;
Charpentier,
... carpinteiro;
o velho Ferrari,
ferreiro.
-
Nada tem,
mais,
a ver com guerra, ... o Guerreiro.
-
Fato extraordinário:
não há,
mais,
armas,
no... armário.

há obras grandiosas em nome da fé,
como a catedral de Colônia.
Mas ela nada mais é
(como o Affonso Romano escreveu )
que o Himalaia do Eu.

Ouvi de uma pessoa de pouca escolaridade, mas de uma humanidade e espiritualidade como só encontro em pouquíssimas pessoas, que o professor...


Ouvi de uma pessoa de pouca escolaridade, mas de uma humanidade e espiritualidade como só encontro em pouquíssimas pessoas, que o professor deveria ganhar “muito, muito, muito, muito, muito bem, porque tudo passa pelo professor”. Concordei com ela, mas fiz a ressalva de que todos deveriam ganhar o suficiente para ter uma vida digna.

Sem saber, essa pessoa estava citando Victor Hugo, em Os Miseráveis: “Les deux premiers fonctionnaires de l’état, c’est la nourrice et le maître d’école” (Parte I, Fantine, Livro 5 La Descente, capítulo II, Madeleine).

Numa tradução mais livre, a frase em português seria: Os dois primeiros funcionários do estado são a merendeira e o professor.

Cabe ressaltar o seguinte: Victor Hugo não fica apenas na ficção, quando se posiciona em favor da educação como fator primordial do progresso. A sua frase, de um romance de 1862, foi garimpada na célebre frase de Danton, durante a Assembleia Legislativa, de 02 de setembro de 1792, nos dias que antecederam a instauração da primeira república francesa. Ela se encontra insculpida na base da estátua daquele revolucionário, em pleno boulevard Saint-Germain, em Paris – “Depois do pão, a educação é a primeira necessidade do povo.”

A frase de Os Miseráveis é a ressonância do discurso de Hugo, em 1848, na Assembleia Constituinte, que deveria levar a França à sua segunda república, após a fuga do último rei de França, Louis-Phillipe.

Rejeitando ser Ministro da Instrução Pública, cargo para o qual o convidou o poeta e amigo Lamartine, Hugo se elege deputado por Paris. Ele acreditava que assim faria muito mais do que sendo ministro. É como surge o importante discurso do poeta e romancista “Questões para o encorajamento das letras e das artes”, em novembro de 1848, denunciando e reprovando uma redução no orçamento que ameaçava as letras, as artes e as ciências, de que eu retiro, entre outras memoráveis (“a economia seria pequena, a destruição seria grande”), a seguinte frase:

“Il faudrait faire pénétrer de toutes parts la lumière dans l’esprit du peuple; car c’est par les ténèbres qu’on le perd.”

“Seria necessário fazer penetrar de todos os lugares a luz no espírito do povo, pois é pelas trevas que o perdemos”.

A França ouviu a luta de Hugo e se esmerou durante décadas para dar uma educação universal. No Brasil, se os pouco letrados têm consciência da importância crucial da educação, alguns muito letrados ignoram-na olimpicamente e nossos legisladores se restringem a discursos vazios de ação. Continuaremos na nossa indigência cultural, cujo reflexo pavoroso é a indigência social, enquanto nos faltarem os Hugos que sejam, interessados, realmente, em política, no sentido platônico do termo, e não em politicagem.

O silêncio responde à indagação sobre os antepassados. Eclode uma curiosidade envolvente, quando percebemos o vácuo dos parentes (próximos ...


O silêncio responde à indagação sobre os antepassados. Eclode uma curiosidade envolvente, quando percebemos o vácuo dos parentes (próximos ou distantes), amigos, vizinhos, enfim pessoas de antecedentes partidas.

Estarão num onde ou em si mesmos? Para os que aderem ao Futuro Definitivo, medram folículos de esperança adornados por flores que se rasgam dentro do coração. Quando passamos por estradas, em viagem, nada mais emocionante do que os túmulos de beira de estrada. Ali, sob as cruzes simples, está o início, o desmoronamento, a solidão.

Adornadas e mostrando tocos secos e apagados de velas, testemunham a fé ingênua, porém autêntica, na realidade escondida, no mistério desafiante. Não são os mausoléus monumentais semeados nos cemitérios capazes de concorrer em expressão de pureza com os pequeninos sarcófagos de chão, espalhados na extensão das rodovias. Estes exprimem a pascalidade honesta da vida submissa ao trânsito inevitável.

Estive olhando as fotos daqueles que nos precedem. Pensamos que jamais irão, perderão o embarque, e torcemos para eles ficarem eternamente conosco. Quando crianças, então, nem suporíamos tal possibilidade. Mas temos de ser firmes e estarmos preparados.

Esta vida é estágio, oportunidade para crescermos, amarmos o semelhante, o próximo, convivermos sob a luminosidade, socorrermos as necessidades de quem nos estira o sinal de suas dores físicas ou não.

Morre antes quem não se desloca de seu trono confortável e segue em direção aos pobres, aos carentes, aos que clamam por uma palavra de carinho, compreensão e apreço. Como manchamos o sentido da vida!

A violência e desrespeito para com o irmão, o preconceito assanhado a tentar diminuir a condição humana das diferenças, o orgulho e vaidade como se tudo fora permanente. Mero engano!

Neste Finados, vale uma reflexão sobre o mistério da vida/morte. Nem tudo está perdido: despontam, a cada dia, os sinais de imortalidade, de continuidade, de transcendência: não os enxergam os cegos de espírito ou enganados pelas limitações mundanas.

Não falei em religião, nem em correntes antagônicas (a propósito) – nós, humanos, temos o discernimento suficiente para as escolhas e posicionamentos diante do Criador. Acima de tudo está a Vida, o senso humanitário, a nudez de quaisquer confrontos.

Após as lágrimas, jorram sorrisos. A lápide não é a última página. Muita claridade precisa chegar para nos curar a cegueira. Amemos a vida límpida como um regato tranquilo a correr infinitamente e sem foz. Há uma faísca de fé em cada suspiro de Amor. Mesmo em quem duvida.

Percebo que a institucionalização exclusiva do fazer ou do produzir da arte, empobrece-a sobremaneira, hoje. O Artista precisa ser. Preci...


Percebo que a institucionalização exclusiva do fazer ou do produzir da arte, empobrece-a sobremaneira, hoje.

O Artista precisa ser. Precisa expressar-se em seu âmago, em sua sinceridade ainda que idiossincrática.

Quando a instituição toma para si a tutela da obra, subordina o Artista que, pouco a pouco vai se tornando minúsculo.

Os concursos, como já dizia Bèla Bartòk, são competições para cavalos, não para Artistas.

Em nome de necessidades empregatícias, o Artista vira artista, e a Arte (des)arte, apequenada por circunstâncias burocráticas e de uma pseudo e forçosa comparatividade inexistente para o foro íntimo de quem se expressa e busca expressar-se…

O Artista é autêntico quando se entrega ao seu que-dizer próprio, quando sua voz interior fala e o seu âmago se faz ouvir.

Do contrário não há Arte sincera.

A vida está sempre nos mostrando o quanto devemos aproveitar cada minuto dela. Reclamamos que só vemos tragédias na tv, o que não deixa de ...


A vida está sempre nos mostrando o quanto devemos aproveitar cada minuto dela. Reclamamos que só vemos tragédias na tv, o que não deixa de ser verdade, mas assistimos meio que anestesiados, acreditando que nunca iremos passar por nada daquilo, e seguimos sem prestar atenção nos sinais.

Quando, mergulhados na nossa distração, somos surpreendidos pelas vulnerabilidades da vida, levamos uma rasteira, e percebemos quão tolos fomos em não ter desfrutado das chances de viver momentos de real felicidade.

O mais grave é que continuamos sem ver, não aproveitamos o quanto poderemos ainda sorrir ou chorar de alegria, estamos sempre deixando para depois, e pior dando chance para o azar.

Infelizmente, SÓ PERCEBEMOS ISSO QUANDO PERDEMOS A CHANCE de ver e falar; sentir e ouvir; tocar, enfim, de simplesmente estar.

Sendo clichê: “Durante nossa vida, aparecem uns cavalos selados. Tem vezes que aparece um só. Tem gente que monta e vai embora, tem gente que deixa passar, esperando outro, um melhor, quem sabe outro... E quando vê, perdeu o primeiro.”

Que hoje possamos prestar atenção aos sinais, sem deixar a chance escapar por entre nossos dedos.



Ontem, quando duas simples perguntas: “Vai para casa? Quer fazer um lanche não?”, foram ignoradas, respondidas pelo grito do silêncio, a tristeza se achegou, e com ela sentei para fazer um lanche, antes de voltar para casa.

Mesmo de cabeça baixa, olhando a tela do celular, percebi alguém chegar e sentar na mesa vizinha. Chamou minha atenção aquela pequena mala. Chegando ou partindo, a pessoa também estava só.

Eu, maldizendo o encontro perdido, nem imaginava que o universo estava derramando sua chuva no terreno arenoso da minha tristeza.

Levantei a cabeça para observar o ambiente, para minha surpresa, ali do meu lado, olhando o celular, estava alguém que há muito não via.

A fisionomia não mudou, apesar dos cabelos brancos e dos sinais avisarem que, realmente, o tempo havia passado.

Arrisquei chamá-lo pelo nome. E, para nosso espanto, as flores do reencontro desabrocharam.

Havia perdido o horário do voo. Veio de longe, para uma reunião. Resolveu prolongar a estadia para poder visitar os lugares que na juventude o encantara. Estava partindo com a tristeza de não ter encontrado as velhas companhias do frescobol, das caminhadas pela orla, das noites de luar, enfim, dias e noites que vivemos intensamente.

Então, hoje para lhes dar o bom dia, ficou impossível não lembrar da passagem dos grãos perdidos, quando a tristeza, de mais uma pergunta não respondida, e a preocupação, por ter perdido o avião, se transformaram em uma noite incrível, com riso solto, conversa maravilhosa, lembranças visitadas, o que era escuridão brotou como momento de luz.

Obrigadaaaaaaaa, universo, por conspirar ao meu favor!

Grata querido amigo, por ter conseguido secar as lágrimas de tristeza que banhavam meu espírito.

Que hoje possamos acreditar que aquilo considerado perdido se transformará em algo bem mais importante, mesmo que seja o aliviar do peso.

Essa história aconteceu no tempo do ronca. Conta-se que um mancebo sem eira nem beira propendia a namorar uma donzela de truz. Para isso u...



Essa história aconteceu no tempo do ronca. Conta-se que um mancebo sem eira nem beira propendia a namorar uma donzela de truz. Para isso usava toda a sua léria, mas o pai da moça se opunha por achar que ele era um mandrião. Não se ocupava em nada que lhe trouxesse algum tipo de estipêndio.
O moço intentava convolar de estado civil — mas como, se mais parecia um mequetrefe?
O pai então lhe lançou um repto: ele casaria com a sua filha se jungisse a tal desiderato a demonstração de que não era um soez.
— E o que devo fazer? — quis saber o rapaz.
— Deves dar-me a prova de que tens futuro.
Em meio a tão escorchante desafio, o moço foi aos poucos sentindo gorarem-se-lhe as pretensões. Não era nenhum abilolado e percebeu que o queriam apartar da contenda. Caminhou a esmo na noite até que, esfalfado, resolveu tomar um pifão. Quando a ebriedade lhe turvou o bestunto, dirigiu-se à casa da moça.
Postado em frente à alcova onde ela dormia, encetou uma elocução: ”Não tenho prebenda, mas não sou nenhum sorrelfa. Juntos, viveríamos com parcimônia, mas não à míngua. Juro-to.
A moça, já adormecida, despertou num sobressalto. Colocou furibunda o corselete, que preferia ao califom, e foi até a janela:
— Arreda-te, doidivanas. Não vês que nada ganhas com tais ululações? Além disso, tiraste-me dos braços de Morfeu.
— Morfeu?! Então tens outro… Por que não me falaste? — gorgolejou o rapaz, já pensando em cascar a marreta. Mas logo tirou da cabeça essa ideia, pois no fundo era um poltrão.
— Se não sabes quem é Morfeu, com isso apenas provas a tua estultice. E dás razão a meu pai… – observou a moça. Dito isso, fechou com estrépito a janela.
O rapaz foi embora achando-se um alarve. Ao mesmo tempo, sentia-se ditoso por haver descoberto a traição. Melhor saber-se guampudo agora do que depois.

Para Platão, sintetizando, a Justiça é procurar fazer um bem que pode ser revertido em favor da comunidade, em favor de todos, o que signif...


Para Platão, sintetizando, a Justiça é procurar fazer um bem que pode ser revertido em favor da comunidade, em favor de todos, o que significa abrir mãos de interesses individuais. Nesse aspecto, é melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la.

Através da alegoria, o mito ajuda o lógos a demonstrar o sentido do que é a Justiça, Justiça que está em nós mesmos, nas escolhas que faze-mos e, sobretudo, na responsabilidade que assumimos, com relação aos nossos atos.

Não há como procurar a Justiça fora de nós, pois ela não é algo abstrato nem se encontra no outro. Nós somos, ao mesmo tempo, sujeito e objeto dela. Como só atingimos a Justiça com a prática diária da Justiça, a partir da escolha primordial dos nossos atos, nós somos o sujeito responsável pela sua existência.

Precisamos buscar a Justiça sempre, exista ou não fiscalização sobre nós. Não se deve fazer a Justiça por medo da lei ou só quando estamos sendo observados. A Justiça deve ser praticada, sobretudo, quando não estamos sendo vigiados.

Enfim, os caminhos para encontrarmos a Justiça são: fugir da intemperança e das paixões que nos escravizam e nos tornam injustos por intermédio do difícil caminho da busca da luz do conhecimento, que deve ser difundido mesmo enfrentando outras dificuldades e assumir que as escolhas são responsabilidades nossas, sem imputar culpas a ninguém.

É difícil? Sim, por isto mesmo Platão afirmou: Khalepà tà Kalá – As coisas belas são difíceis! (Livro IV, 435c)

(excertos do ensaio "As coisas belas são difíceis" - 2015 - https://bit.ly/2MvO4V2)

A poesia de João Cabral de Melo Neto é tributária dos artistas plásticos aos quais louvou em poemas quase todos de extração metalinguística...


A poesia de João Cabral de Melo Neto é tributária dos artistas plásticos aos quais louvou em poemas quase todos de extração metalinguística, questionando não só a linguagem pictórica dos artistas como também a sua própria concepção da fenomenologia poética.

Com efeito, no ensaio sobre Jon Miró, ele não discorre apenas sobre os mecanismos de criação desse artista natural da Catalunha, mas também a propósito da elaboração dos poemas de sua própria lavra. Aliás, mais do que sobre Miró, esse ensaio trata a respeito do construto poético do autor pernambucano, do mesmo modo que, quando fala sobre a morte dos outros, fala sobre a sua própria morte. Aqui, vale registrar um episódio narrado pelo autor de "Educação pela pedra": "Levei-lhe (ao psicanalista espanhol López Ibor) o volume 'Duas águas' que ele leu e comentou dizendo: 'O que me impressiona é a sua obsessão pela morte'. Eu retorqui: A morte de que eu falo não é a rilkeana, é a morte social, do miserável na seca, no mangue, não é a minha. E ele disse-me uma coisa engraçada: 'Aí é que o senhor se engana: o senhor fala em morte social para exorcizar o seu medo da morte'", E concluiu João Cabral: "Realmente tenho muito medo da morte".

Julgando-se um poeta impessoal, antilírico por excelência, um poeta que escrevia a contrapelo, João Cabral cultivava uma poesia cujo solipsismo era atenuado, disfarçado, na medida em que, aparentemente falando sobre os outros, falava a respeito de si mesmo, Que o digam, no plano da linguagem, os poemas através dos quais dialoga com Cesário Verde, Graciiano Ramos, Quevedo, Francis Ponge, Valéry, Mondrian, Le Corbusier...

Inclusive, até mesmo no simples, prosaico, cotidiano gesto de catar feijão, Cabral estabelece um cotejo, uma analogia, com o seu modo de escrever. Também no desempenho de alguns toureiros na arena, ele encontra similitude com a sua arte poética: "(...) sim, eu vi Manoel Rodriguez,/ Monolete, o mais asceta,/ não só cultivar sua flor/ mas demonstrar aos poetas: // como domar a explosão/ com mão serena e contida./ sem deixar que se derrame/ a flor que traz escondida,// e como, então, trabalhá-la/ com mão certa, pouco e extrema: / sem perfumar sua flor,/ sem poetizar seu poema".

Ouso afirmar que, embora a crítica o considere um antilírico por natureza, ele possui, contraditoriamente, uma das características primordiais do poeta lírico: é incapaz de se "outrar", como diria Vitor Manuel de Aguiar e Silva.

Mas a prova maior da interferência do olhar, do visual, na sua dicção poética - não tivesse, ainda, o movimento Concretista se abeberado de sua poesia -, pode ser mensurada a partir daquele que muitos consideram o seu último poema, concebido quando já estava praticamente cego: "Pedem-me um poema, / um poema que seja inédito,/ poema é coisa que se faz vendo,/ como imaginar Picasso cego?// Um poema se faz vendo,/ um poema se faz para a vista,/ como fazer um poema ditado/ sem vê-lo inscrita?// Poema é composição,/ mesmo da coisa vivida,/ um poema é o que se aruma/ dentro da desarrumada vida.// Por exemplo, é como um rio,/ por exemplo o Capibaribe, / em suas margens domado/ para chegar ao Recife. // Onde com o Beberibe,/ o Tejipió, Jaboatão,/ para fazer o Atlântico,/ todos se juntam a mão. // Poema é coisa de ver,/ é coisa sobre um espaço,/ como se vê um Franz Weissman,/ como se ouve um quadro".

*Hoje, dia 09 de outubro, exatamente vinte anos da morte de João Cabral de Melo Neto"

Sempre defendi a liberdade, a democracia. Abaixo as ditaduras, sejam da direita, sejam da esquerda e viva o oxigênio da liberdade. Viva a d...


Sempre defendi a liberdade, a democracia. Abaixo as ditaduras, sejam da direita, sejam da esquerda e viva o oxigênio da liberdade. Viva a democracia, que com todos os seus erros, ainda é o regime que dignifica o homem. E está aí o muro de Berlim demolido, está aí a Cortina de Ferro destruída. Mil vezes o rosto alegre de um estadista eleito pelo povo do que a carranca de um Stalin, de um Hitler ou a barba de um Fidel.

A democracia é o regime que cultua a coisa mais importante no homem: a liberdade, a livre opção. Pode ter seus pecados, mas com o tempo a coisa vai melhorando. Votar consciente do voto é o que importa. E quem vende o voto torna essa consciência numa mercadoria.

Ah, liberdade!... Quanto me alegrou a fisionomia risonha das pessoas em Moscou e em Leningrado, quando lá estive, logo depois que seu povo recuperou a liberdade. Todo mundo alegre, livre da ditadura...

Em muitos anos eu poderia não ter votado, baseado na isenção que a Justiça me concedeu, mas achei que, não votando, eu estaria sendo antidemocrático.

Ao votar, deve-se esquecer as brigas das campanhas, das agressões à honra dos candidatos. Esquecer dos ataques pessoais, todos eles dominados pela paixão política.

O que é asqueroso é o voto vendido, material ou ideologicamente, voto prostituído, voto de cabresto. Devemos votar esquecidos das gritarias das campanhas, dos ataques mesquinhos e da chamada “lavagem de roupa.”

O negócio agora é esquecer a campanha e colaborar com os candidatos que mereceram os votos da maioria. A ordem, agora, é esquecer os ódios, respeitar a vontade popular, e não atrapalhar os planos dos eleitos pelo povo.

E viva a Democracia!

(Publicado no jonral A União em 2010)


J. A. Kaplan, compositor, maestro, pianista, professor e escritor (nosso Kaplito) era naturalizado brasileiro, como também cidadão paraiban...


J. A. Kaplan, compositor, maestro, pianista, professor e escritor (nosso Kaplito) era naturalizado brasileiro, como também cidadão paraibano, da sociedade paraibana, e sua obra obviamente reflete toda a intertextualidade entre sons latinos, nordestinos, etc, outros sons a desvendar…

Nasceu em Rosário, Argentina, mas ao se mudar para a Paraíba, aqui virou um "severino", e fez nesse lugar a sua vida, a sua família (de lá e de cá) e amizades, a sua obra, a sua carreira, a sua história.

Kaplan e minha mãe, Márcia, deixaram imenso legado. Legado esse que tenho a honra de zelar. Toda a vida e obra de Kaplan formam um tesouro fascinante, como um cubo mágico a se transformar em harmonias surreais. Uma obra de formação, sem dúvida, que transcendeu. Uma obra de intertextualidade universal, apreciada por intérpretes e ouvintes de muitos países, afora o Brasil.

A UFPB, sempre a sua paixão, pois o seu amor eram Márcia (minha mãe) e a Música. Kaplan, como você disse, se paraibanizou, completamente, e suas cinzas foram colocadas para o plantio de uma árvore no Departamento de Música da UFPB, onde plantaremos ao lado outra árvore em homenagem à minha mãe, Márcia Kaplan, sua companheira de vida e morte

* texto escrito a propósito das considerações feitas por Germano Romero, que foi aluno de Kaplan por 5 anos, no Bacharelado de Música de UFPB, sobre sua obra executada em recente recital na Sala Radegundis Feitosa, em crônica de A União, transcrita a seguir:

Por fim, uma homenagem mais que merecida e à altura do nível musical que o antecedeu veio encerrar o repertório com uma sonata de autoria do maestro argentino, José Alberto Kaplan, um dos ilustres personagens de nosso meio musical que se paraibanizou muito identificado com a cultura e os valores regionais. Foi um momento especial em que se ouviu toda a pujança de expressões de nosso folclore, magistralmente transcritas com a elegância rítmica e temática que caracteriza a obra de Kaplan. Na qual se vislumbra não somente a arte musicada mas também os clamores de um povo sofrido, que permeiam subliminarmente a tessitura estética de suas composições, algumas vezes, idem pontuadas com claras recordações de sua terra natal. Em Kaplan, o tango abraça o coco de roda com uma fraternidade muito bem construída.

Assim, em meio a frases que sugeriam berrantes ao convite da boiada, ritmados em compassos de xaxado e outras alegrias nordestinas, cantadas em dueto de técnica virtuosa, foi finalizado o concerto da memorável noite.

(Sérgio de Castro Pinto e Carlos Romero) URBANO (Sérgio de Castro Pinto) ah estes cães vira-latas que andam determinados pelas ruas...


(Sérgio de Castro Pinto e Carlos Romero)

URBANO
(Sérgio de Castro Pinto)

ah estes cães vira-latas
que andam determinados
pelas ruas da cidade
e as conhecem palmo a palmo
na palma das patas
nas antenas do faro
na ponta da língua que
dobra e desdobra
as esquinas
de cor e salteado

ah estes vira-latas tão orientados
nada sabem do meu coração
que vive aos sobressaltos
e bate na contramão
no colapso do tráfego
adernando
adernando
cargueiro encalhado



HOMENS DE NEGÓCIO
(Carlos Romero)

Foi então, que vi
caminhando à nossa frente,
num passinho miúdo e ligeiro,
um vira-lata.

E ia apressado,
como se tivesse
um compromisso urgente,
talvez uma reunião importante da classe.

Notei que ele caminhava
sem olhar para os lados,
a não ser quando encontrava
um saco de lixo.

Tenho certeza que não viu o mar
que estava uma beleza, prateado
pela lua cheia.

Também não levantou
o olhar para o firmamento,
onde o céu estava
cheio de estrelas.

O nosso companheiro
não se conscientizou
das maravilhas que o rodeavam.
Só olhava para frente.
Para frente e para baixo.

E ia com tanta pressa,
que me fez lembrar
um prosaico executivo,
desses, que não têm tempo a perder.
Que vivem com os olhos no relógio
e os ouvidos no celular.

Você já tentou abrir a tela vazia do seu computador e se determinar a escrever qualquer coisa, algo simples, coloquial, besteiras de amor, ...


Você já tentou abrir a tela vazia do seu computador e se determinar a escrever qualquer coisa, algo simples, coloquial, besteiras de amor, paixão ou olhares que lhe fugiram?

Não é tão simples assim. Você escreve, apaga, torna a escrever, apaga e nestes infinitos gestos vão-se os minutos, os segundos e acaba a primeira hora.

Você busca aqueles pensamentos que lhe assaltavam, os pensamentos que até há poucos instantes habitavam em você. Nesta hora, descobre que o vazio fez um ninho e embaraçou sua mente.

Eu só queria escrever sobre a alegria de viver, mas, hoje em dia, com tanta dor sendo disseminada, com tantos desacertos que não levam a nada, acabo pensando na loucura deste existir.

Seria tão simples escrever sobre o casal que hoje estava na fila do supermercado, os dois se sentindo sozinhos para viver a paixão que os acometia. Mesmo com a fila do caixa estando enorme e homens impacientes abrindo latas de cerveja com sofreguidão por ser tarde de sexta-feira, ainda assim os dois se embeveciam com os próprios segredos, com toques sutis para se sentirem. O mundo deveria ser habitado somente por apaixonados e tudo estaria resolvido.

A poucos centímetros de distância dos dois, finjo-me de surda e cega enquanto minha vontade era a de olhá-los e captar um pouco daquela felicidade pequena. A certa altura, ele a chama de amorzinho, assim no diminutivo e eu sorrio, impossível não participar daquele momento. Pago minhas compras, pego as sacolas e ainda me viro para vê-los uma última vez.

Só agora, enquanto escrevo, percebo que a vida ganha diversa significância quando você tem outra mão a amparar a sua, outro coração a bater junto ao seu. Só o calor do amor pode romper as peles que formam muralhas em seu corpo.

Mas, neste meu momento, o silêncio é denso, o ar condicionado gela meus pés, e só me resta ocupar o tempo tocando com delicadeza estas teclas. Me atento às palavras, com os pontos e vírgulas e com a fluidez do que aparece para escrever.

Deixo a nostalgia de lado e continuo a vida abusando das horas, reparo que é madrugada e que estou feliz nesta simplicidade cotidiana onde sou dona do meu espaço, do meu tempo, dos meus caminhos, das minhas verdades.

A paixão? Ficará aguardando outra história, outras paisagens para acontecer, sem determinar origem, extensão ou peso. Sou uma simples viajante de olhar atento, pronta para captar a realidade esplendorosa e inesperada do mundo.


Cristina Lugão Porcaro é bacharel em artes plásticas, psico-pedagoga e escritora

O céu me fez formosa, dizeis, e de tal maneira que minha formosura vos leva a me amar sem resistência, e pelo amor que me mostrais, dizeis ...


O céu me fez formosa, dizeis, e de tal maneira que minha formosura vos leva a me amar sem resistência, e pelo amor que me mostrais, dizeis e até quereis que eu seja obrigada a vos amar. Eu sei, com o natural entendimento que Deus me deu, que tudo o que é belo pode ser amado; mas não compreendo que, pela razão de ser amado, quem é amado por belo tenha obrigação de amar quem o ama.

E ainda poderia acontecer que o amante do belo fosse feio e, sendo o feio digno de ser desprezado, fica mal dizer: ‘Amo-te porque és bela: deves me amar embora eu seja feio’. Mas, mesmo que as belezas se equivalham, nem por isso haverão de ser iguais os desejos, pois nem todas as belezas apaixonam: algumas alegram a vista mas não subjugam a vontade.

Se todas as belezas apaixonassem e subjugassem, as vontades andariam desorientadas e confusas, sem saber onde iriam parar, porque, sendo infinitas as pessoas belas, infinitos haveriam de ser os desejos.

E, conforme ouvi dizer, o amor verdadeiro não se divide e deve ser voluntário, não forçado. Sendo assim, como penso que é, por que quereis que submeta minha vontade à força, apenas porque me dizeis que me amais? Se não, dizei-me: se em vez de formosa o céu me tivesse feito feia, seria justo que me queixasse de vós por não me amardes?

Eu nasci livre e, para poder viver livre, escolhi a solidão dos campos: as árvores destas montanhas são minha companhia; as águas cristalinas destes riachos, meus espelhos; às árvores e às águas comunico meus pensamentos e formosura.

Sou fogo afastado e espada distante. Aos que apaixonei com a vista desiludi com as palavras; e, se os desejos se sustentam com esperanças, não tendo eu dado nenhuma a Grisóstomo, nem a algum outro (na verdade, a nenhum deles), bem se pode dizer que antes o matou sua teimosia do que minha crueldade.

Se a Grisóstomo matou sua impaciência e desejo impetuoso, por que se deve culpar meu honesto procedimento e recato? Se eu conservo minha pureza em companhia das árvores, por que devem querer que a perca em companhia dos homens?

Como sabeis, sou rica e não cobiço as riquezas alheias; sou de temperamento livre, não gosto de me sujeitar; não amo nem odeio ninguém; não engano este nem cortejo aquele; não zombo de um nem me divirto com outro.

A conversa honesta das pastoras destas aldeias e o cuidado com minhas cabras me distraem. Meus desejos se limitam a estas montanhas e, se daqui saem, é para contemplar a formosura do céu, passos com que anda a alma para sua primeira morada.

(discurso de Marcela - excerto de Dom Quixote)