A poesia de João Cabral de Melo Neto é tributária dos artistas plásticos aos quais louvou em poemas quase todos de extração metalinguística...

Vinte anos sem e com João Cabral


A poesia de João Cabral de Melo Neto é tributária dos artistas plásticos aos quais louvou em poemas quase todos de extração metalinguística, questionando não só a linguagem pictórica dos artistas como também a sua própria concepção da fenomenologia poética.

Com efeito, no ensaio sobre Jon Miró, ele não discorre apenas sobre os mecanismos de criação desse artista natural da Catalunha, mas também a propósito da elaboração dos poemas de sua própria lavra. Aliás, mais do que sobre Miró, esse ensaio trata a respeito do construto poético do autor pernambucano, do mesmo modo que, quando fala sobre a morte dos outros, fala sobre a sua própria morte. Aqui, vale registrar um episódio narrado pelo autor de "Educação pela pedra": "Levei-lhe (ao psicanalista espanhol López Ibor) o volume 'Duas águas' que ele leu e comentou dizendo: 'O que me impressiona é a sua obsessão pela morte'. Eu retorqui: A morte de que eu falo não é a rilkeana, é a morte social, do miserável na seca, no mangue, não é a minha. E ele disse-me uma coisa engraçada: 'Aí é que o senhor se engana: o senhor fala em morte social para exorcizar o seu medo da morte'", E concluiu João Cabral: "Realmente tenho muito medo da morte".

Julgando-se um poeta impessoal, antilírico por excelência, um poeta que escrevia a contrapelo, João Cabral cultivava uma poesia cujo solipsismo era atenuado, disfarçado, na medida em que, aparentemente falando sobre os outros, falava a respeito de si mesmo, Que o digam, no plano da linguagem, os poemas através dos quais dialoga com Cesário Verde, Graciiano Ramos, Quevedo, Francis Ponge, Valéry, Mondrian, Le Corbusier...

Inclusive, até mesmo no simples, prosaico, cotidiano gesto de catar feijão, Cabral estabelece um cotejo, uma analogia, com o seu modo de escrever. Também no desempenho de alguns toureiros na arena, ele encontra similitude com a sua arte poética: "(...) sim, eu vi Manoel Rodriguez,/ Monolete, o mais asceta,/ não só cultivar sua flor/ mas demonstrar aos poetas: // como domar a explosão/ com mão serena e contida./ sem deixar que se derrame/ a flor que traz escondida,// e como, então, trabalhá-la/ com mão certa, pouco e extrema: / sem perfumar sua flor,/ sem poetizar seu poema".

Ouso afirmar que, embora a crítica o considere um antilírico por natureza, ele possui, contraditoriamente, uma das características primordiais do poeta lírico: é incapaz de se "outrar", como diria Vitor Manuel de Aguiar e Silva.

Mas a prova maior da interferência do olhar, do visual, na sua dicção poética - não tivesse, ainda, o movimento Concretista se abeberado de sua poesia -, pode ser mensurada a partir daquele que muitos consideram o seu último poema, concebido quando já estava praticamente cego: "Pedem-me um poema, / um poema que seja inédito,/ poema é coisa que se faz vendo,/ como imaginar Picasso cego?// Um poema se faz vendo,/ um poema se faz para a vista,/ como fazer um poema ditado/ sem vê-lo inscrita?// Poema é composição,/ mesmo da coisa vivida,/ um poema é o que se aruma/ dentro da desarrumada vida.// Por exemplo, é como um rio,/ por exemplo o Capibaribe, / em suas margens domado/ para chegar ao Recife. // Onde com o Beberibe,/ o Tejipió, Jaboatão,/ para fazer o Atlântico,/ todos se juntam a mão. // Poema é coisa de ver,/ é coisa sobre um espaço,/ como se vê um Franz Weissman,/ como se ouve um quadro".

*Hoje, dia 09 de outubro, exatamente vinte anos da morte de João Cabral de Melo Neto"


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