A definição é de Wilson Marinho: Wills Leal foi um homem em movimento. E mais certo Wilson não poderia estar. Com efeito, Wills, que agora ...


A definição é de Wilson Marinho: Wills Leal foi um homem em movimento. E mais certo Wilson não poderia estar. Com efeito, Wills, que agora nos deixou, foi mesmo alguém em eterno movimento, no bom sentido de permanentemente inquieto, permanentemente criativo, permanentemente se deslocando, até sem sair do lugar, apenas com o pensamento em constante ebulição, sempre a serviço da cultura paraibana, em várias de suas expressões. O professor Damião, em bela crônica de “A União” chamou-o corretamente de “o imortal caminhante”, ressaltando, como Wilson, o homem que não podia parar, como de fato não parou até o finzinho da caminhada, quando o isolamento imposto pelo vírus reteve-o solitariamente entre os livros e filmes amados, os quais, por problemas na visão, já não acessava facilmente.

Li que uma flor nasceu na estação Estação Espacial Internacional, em maio de 2016. Uma flor do gênero das zínias e constituiu o primeiro es...


Li que uma flor nasceu na estação Estação Espacial Internacional, em maio de 2016. Uma flor do gênero das zínias e constituiu o primeiro espécime vegetal a nascer fora da Terra. Em 1982 os russos cultivaram na estação Salyut 7 alguns arabidopsis, mas o feito que o astronauta Scott Kelly acaba de conseguir parece mais expressivo, pois as zínias completaram seu ciclo de desenvolvimento até florescer. Os cientistas da Nasa estão eufóricos, e não é para menos.

Te espero como a manhã o sol como o brilho o cristal


Te espero

como a manhã o sol
como o brilho o cristal

Que tela mais singela, viva e verdadeira que não seja a própria terra, ou um canto de calçada, um pedaço de tábua? E que pincel ou lápis ma...


Que tela mais singela, viva e verdadeira que não seja a própria terra, ou um canto de calçada, um pedaço de tábua? E que pincel ou lápis mais intenso, talvez mais insano, e, ao mesmo tempo, tão emotivo que um caco de telha, uma ponta de pedra, um graveto, até mesmo o próprio dedo?

O Dr. Giovanni Londres da Nóbrega era mesmo uma figura. Médico com doutorado em São José do Rio Preto, mal chegou a João Pessoa e já possuí...


O Dr. Giovanni Londres da Nóbrega era mesmo uma figura. Médico com doutorado em São José do Rio Preto, mal chegou a João Pessoa e já possuía grande clientela. E olha que nem convênios tinha.

Homem de muitos amigos, havia aqueles da caminhada matinal. Tinha os colegas do Sindicato. E os da roda cativa, no MAG Shopping (que insistem em chamar mégui).

Solteirão convicto (foi sócio-atleta no antigo Clube Maravalha!), logo se tornou partidão na nossa cidade.

Homem refinado, gourmet, bom garfo e bom copo, às vezes até pantagruélico, não perdia uma boca-livre. Tinha apetite para tudo.

Sentiu de repente vindo das profundezas, do mais íntimo do seu ser...
A clientela cresceu e agranfinou-se. Passou a freqüentar as colunas sociais. Daí foi um passo para ver que seu consultório precisava de uma boa reforma, que o tornasse moderno por dentro mantendo a fachada tombada. Para isso contratou uma arquiteta.

Projeto grã-fino exige refrigeração moderna. Por isto, por recomendação da arquiteta, decidiu adquirir um split, aparelho de ar-condicionado com o qual vinha namorando na internet há já algum tempo.

Uma segunda-feira, de ressaca, estava a desfrutar das maravilhas do split: frio polar, bem distribuído por todo o ambiente, tornando o ar homogêneo. Às vésperas havia abusado da muqueca do Badionaldo. E logo acompanhado de rum Montilla! À noite jantou buchada com batatas doces. Completou com pastéis-de-nata de dona Nisa. Não bastasse essa verdadeira bomba prestes a explodir, ao chegar ao consultório tomou um café Nespresso de intensidade 12. E foi se refrescar no consultório.

O interfone o tira do cochilo: a atendente anunciou a entrada de um jovem paciente, acompanhado de sua mãe. Após uma anamnese demorada, muito bem feita como lhe era peculiar, examinou escrupulosamente o menino, voltando para o seu birô para elaborar a conduta.

Quando estava orientando a mãe sobre os achados clínicos, os exames a serem realizados, e a conduta a ser adotada, sentiu de repente vindo das profundezas, do mais íntimo do seu ser, do âmago, aquela manifestação tão conhecida, que sempre antecipava explosões ruidosas. E dos quentes, ainda por cima! Sentiu-se momentaneamente perdido.

Súbito, teve então uma idéia salvadora. Segurou-se como pôde, e disse para a mãe:

“Eu tenho umas amostras do remédio dele no meu armário. Vou buscar já.”

E dirigiu-se rapidamente ao outro lado do consultório, mais distante do birô, onde havia um biombo salvador. Aliviou-se o mais silenciosamente possível: Ahhhh! De novo: Ahhhh!

De repente, ouviu um grito vindo do outro lado:
“Ai, mãe! Num fui eu não!”

E a mãe:
“Quando chegar em casa você me paga, seu cabrito!”

Dr. Giovanni amarelou, gelado: o split!!


José Mário Espínola é médico e escritor

A surpresa é um ótimo tempero da emoção. Tem sabor diferente daquela que buscamos sob o afã da boa saudade, digamos, de uma emoção desejada...


A surpresa é um ótimo tempero da emoção. Tem sabor diferente daquela que buscamos sob o afã da boa saudade, digamos, de uma emoção desejada, planejada. A que vem subitamente, imprevisível, e nos arrebata ao sentimento inebriante, é mais intensa.

Ainda garoto, entre 10 e 12 anos de idade, percebi uma grande empatia com a música de Chopin. Sobretudo dos prelúdios e noturnos para piano vinha-me uma nostalgia longínqua, sentida como um déjà-vu de antigas experiências encarnatórias. Na coleção completa da Abril Cultural, os discos chegavam encartados em álbuns muito bem redigidos e ilustrados num contexto biográfico, cenográfico e musical da vida e obra do compositor. Imergia-me por inteiro naqueles álbuns, vendo-os e ouvindo-os.

jose alberto kaplan
Maestro J. A. Kaplan
Penso que foi daí que nasceu o estímulo para estudar piano e desfrutar dos doces anos de pré-adolescência na melodiosa convivência do Conservatório Paraibano de Música, Escola Anthenor Navarro e posterior Instituto Superior de Educação Artística. Experiência que, anos mais tarde, me arrebataria de volta ao ambiente acadêmico, já arquiteto, para uma inesquecível comunhão com um aprendizado mais apurado, durante cinco anos consecutivos, sob a classe do professor e maestro José Alberto Kaplan. Ainda hoje sinto saudades da atmosfera mágica que exalava dos corredores do Departamento de Música da UFPB, pelas frestas das portas, em fragmentos melódicos, escalas e arpejos dos vários instrumentos ali estudados. Como se estivessem eternamente ensaiando e se afinando para um grande concerto…

Quando entramos na sala onde estava o piano, não consegui controlar o choro quase soluçado
Graças à intimidade com a Música, desde a tenra infância, tendo como pai e mãe grandes apaixonados pela divina arte, e, talvez, também a traços avocados de outras encarnações, foi com natural espontaneidade que sintonizei com as grandes obras, ainda criança.

Com Chopin, havia algo diferente. Um sentimento que me rebuscava a memória inconsciente, de onde surgia com absoluta clarividência o que sua música queria dizer à “minha”. Parecia cristalina a nitidez que havia naquelas peças cheias de sutilezas, de melodias que dialogavam e se permutavam em variados registros, uma dentro da outra, do plano mais agudo ao mais grave, compondo um tecido estupendamente bem lapidado com a mais perfeita harmonia. Era definitivamente um compositor que me dizia coisas muito particulares.

Chopin por Delacroix
Chopin por Delacroix
Anos mais tarde, em uma viagem à Polônia, assim que entramos no saguão do hotel Mercure Frederyk Chopin, em Varsóvia, lá estava ele. Enorme, num painel que varava a altura do piso a teto, em uma reprodução ampliada da célebre tela de Delacroix. Começaram aí as surpresas polonesas.

Nos dias seguintes, ao perceber que o compositor pulverizava sua imagem em vários recantos da cidade, desde o aeroporto internacional, que também leva o seu nome, aos postais de bancas de revista, descobrimos que a sua cidade natal, com o inusitado nome de Żelazowa Wola, ficava a apenas uma hora da bela capital. E para lá rumamos, na manhã seguinte, de olho no mapa de papel, pois não havia GPS. Eu, Deives, papai e a amada boadrasta, Alaurinda. Já da estrada efervesciam-me os princípios da emoção que nos aguardava, só em pensar que Chopin, um dia, pusera os olhos naquelas paragens ora vistas do carro, ao som de sua música.

frederic chopin
Casa onde nasceu Chopin
Numa esquina de um bairro muito arborizado, à sombra de belas copas verde-oliva, ei-la: A casa onde ele nascera. Em silêncio introspectiva e naturalmente estabelecido, descemos. Após resolvidos os protocolos de acesso, adentramos o lindo recinto, muito bem conservado, com uma arquitetura nobre de paredes e janelas de molduras brancas, telhados escuros, bem no meio de um bosque.

Lá dentro, a sonorização do ambiente com suas obras dava alma àquela casa, aos móveis, a tudo. Quando entramos na sala onde estava o piano, não consegui controlar o choro quase soluçado, broto de profunda emoção. Ao perceberem-me às lágrimas, meus queridos familiares me envolveram em um dos mais significativos abraços, inebriado por um dos noturnos preferidos do grande Frédéric.

Depois, no bosque atrás da casa, à frente de um riacho que corria por dentro da relva ondulada, igualmente sonorizado, pude, em prece, agradecer-lhe pela obra imortalizada, que até hoje encanta o inesgotável mundo das artes.


Germano Romero é arquiteto e bacharel em música

A Escola rudimentar mista de Confusão foi criada no Governo de Oswaldo Trigueiro, por iniciativa do vice-governador José Targino, em 1947. ...


A Escola rudimentar mista de Confusão foi criada no Governo de Oswaldo Trigueiro, por iniciativa do vice-governador José Targino, em 1947. Tornou-se possível porque minha mãe, Miriam Bezerra de Oliveira Castro, tendo concluído o Curso Ginasial (5 anos), residia na Fazenda Confusão, que pertencia ao meu avô, José Leão Carneiro da Cunha. Esta circunstância favoreceu à criação da Escola, pois seria impraticável a outra professora qualificada deslocar-se para a serra, tão difícil era o acesso, tão inóspita era vida rural e tão insignificante o salário.

As instalações foram cedidas pelo meu avô: um salão, na casa anexa à nossa residência. O mobiliário era constituído de duas mesas compridas, bancos laterais e tamboretes, tudo de uma simplicidade franciscana.

Além da mobília rústica havia um pequeno quadro que minha mãe chamava de lousa. Era o único recurso disponível, com o giz adquirido pela professora.

Um trabalho de conscientização junto aos moradores da sede e das propriedades adjacentes garantiu a significativa frequência, mesmo nos períodos de safra.

Do primeiro ao quarto ano primário fui aluna desta escola que influenciou decisivamente a minha visão de mundo e mudou o destino de muitos filhos de trabalhadores rurais , moradores de meu avô e de outros proprietários vizinhos, como Abelardo Targino da Fonseca (seu Fonsequinha).

nem mesmo os grandes homens podem conter o sistema apodrecido
O idealismo da professora compensava o que pudesse ser precariedade. O ensino mantinha o nível de conteúdo orientado pela Secretaria de Educação do Estado. Todos os anos minha mãe viajava à Capital para receber os programas e livros correspondentes às diversas séries. E desenvolvia integralmente com os alunos estes conteúdos, atendendo, no mesmo horário, diferentes séries.

Mas a escola não se limitava às aulas. Havia toda uma programação de atividades que complementavam o profundo sentido de educação.

As datas cívicas eram comemoradas com verdadeiro ardor. Marchávamos ao redor do terreiro, entoando o Hino Nacional, bem como da Independência e da Bandeira, de acordo com a data. Esses hinos vinham impressos em nossos cadernos e decorávamos, com consciência, porque todos eram interpretados na Escola. E não me lembro de outra fase da vida em que meu coração batesse tão forte pelo meu País.

araruna
Paróquia de Araruna
Os domingos eram dedicados à catequese. Sendo filha de Maria, desde o internato Nossa Senhora das Neves, a professora Miriam Bezerra de Oliveira Castro organizava, anualmente, a festa da primeira comunhão dos seus alunos. Contava com o incentivo e decisiva colaboração do Monsenhor Severino Cavalcanti de Miranda, da Paróquia de Araruna, que se deslocava para a Fazenda Confusão, onde celebrava a santa missa, batizados, casamentos e a festiva primeira comunhão.

Toda a vestimenta das crianças era confeccionada pela professora que também angariava doações para este fim.

Após a missa, cantada pelos alunos, havia a confraternização em torno de uma farta mesa de café servida aos presentes. Vivenciávamos, verdadeiramente, o estado de graça.

Sem aviso prévio, a Escola recebia, anualmente, a visita do inspetor de ensino João Freire Nóbrega que deixava escrita sua avaliação. Eram sempre palavras de justo elogio à dedicação extrema com que a professora conduzia seu trabalho. Em agosto de 1948, ele registrou no livro de atas:

Araruna
Prof. Miriam Bezerra de Castro
“Visitei, nesta data, a presente escola regida pela professora Miriam Bezerra de Oliveira Castro. Verifiquei a marcha dos trabalhos, aproveitamento dos alunos, etc., colhendo de tudo a melhor impressão possível. É extraordinário o aproveitamento dos alunos, asseio e ordem nos trabalhos, merecendo assim, a professora todo elogio. A matrícula geral é de trinta e nove alunos e estavam presentes trinta e quatro. Confusão, agosto de 1948. João Freire Nóbrega – Inspetor de Ensino”.

Ter sido aluna desta escola durante os quatro anos do curso primário representa, sem dúvida, uma das mais ricas experiências de minha vida. Sentar ao lado dos moradores de meu avô, tê-los como colegas de estudo e de brincadeiras foi a maior de todas as lições, pois me incutiu o respeito pelas pessoas, independente da classe social a que pertencem. Vejo também que esta Escola simples e eficiente plasmou o meu conceito sobre educação e sobre os valores essenciais que determinam o processo ensino-aprendizagem.

araruna
Pedra da Boca
Em minha experiência como Secretária Adjunta de Educação do Estado, quanto me doía a obrigação de atender às exigências do BIRD (Banco Interamericano de Desenvolvimento), construindo escolas enormes e suntuosas. Quando eu sabia, com a mais absoluta convicção, que a “alma” nas escolas é tudo. Que somente professoras competentes e motivadas podem realizar o milagre da educação.

Saí da “Escola rudimentar mista de Confusão” para prestar exame de admissão em Olinda, no Colégio Santa Gertrudes, de orientação alemã e grande tradição pedagógica. Obtive o “segundo lugar”, na classificação geral, comprovação de que minha escola rural nada ficava a dever ao prestigioso educandário pernambucano.

Em agosto de 1951, a visita de um novo Inspetor de Ensino. Os mesmos elogios no livro de Atas. E, logo a seguir, a transferência insólita da professora para a propriedade Tanques, no município de Bananeiras. Fora exigência de um cabo eleitoral.

É evidente que as condições materiais não permitiam que a professora assumisse o novo lugar, ainda mais porque, na propriedade Tanques não havia escola.

Este desfecho é o exemplo emblemático do tratmento que os políticos dispensam à educação. Era o governo de José Américo de Almeida, mas nem mesmo os grandes homens podem conter o sistema apodrecido onde predomina a politicagem.

Não são diferentes os tempos de hoje, mais de meio século depois.

(No livro “As Raízes do Ensino em Araruna”, Humberto Fonsêca de Lucena, páginas 84 a 87, e 89. Edições FCJA, João Pessoa, 2004)


Ângela Bezerra de Castro é professora e crítica literária

O fanatismo se assemelha à burrice. Forte a expressão? Claro que não, é a pura verdade. O fanático age na irracionalidade, é prisioneiro de...

fanatismo

O fanatismo se assemelha à burrice. Forte a expressão? Claro que não, é a pura verdade. O fanático age na irracionalidade, é prisioneiro de obsessões provocadas pela falta de discernimento, não mede as consequências no que faz e no que diz.

Essa manifestação de comportamento é muito comum por motivações de ordem religiosa, política, esportiva, artística, etc. O fervor excessivo na defesa de uma ideia, de uma opinião, de uma causa, ou por qualquer coisa de forma insistente, revela-se um radicalismo. Essa posição extremada de atitude leva o fanático a ausência de ponderação quando se faz necessária, a falta de respeito para com pessoas do seu convívio no dia a dia e o desprezo até do amor próprio.

Os fanáticos teimam em não querer pensar
O problema é que resistimos a fazer uma autoanálise quando nossos procedimentos assumem a característica do fanatismo. A paixão cega pelo que defendemos e acreditamos nos impede de encontrar a humildade para admitirmos as divergências, o contraditório, os pontos de vista discordantes. Alcançamos um estágio de exaltação exagerada em que nos achamos donos da verdade, senhores da razão.

O fanatismo é responsável, muitas vezes, pelo cometimento de atos insanos, transtornos mentais, desvio de personalidade. Ter a consciência dos seus sintomas ajuda a frear os ímpetos da intolerância, os impulsos da intransigência, a resistência em aceitar o pensamento contrário. Uma coisa é defender uma ideia, uma causa, com entusiasmo, com perfeito conhecimento do que faz, com convicção; outra coisa é deixar que a paixão se sobreponha à razão e cause cegueira na visão do mundo, numa ótica maniqueísta de que a verdade está no seu pensamento.

Há quem veja esse estado psicológico como uma manifestação de necessidade das pessoas inseguras se sentirem fortalecidas, buscando uma compensação por sentimentos de inferioridade. Porém revela-se um distúrbio que, geralmente, traz prejuízos à sociedade, quando as crenças se tornam mais importantes para a sobrevivência do que a razão. Os fanáticos teimam em não querer pensar, assumindo deliberadamente posições próprias da alienação. Por isso mesmo é que devemos ter sempre a consciência de que precisamos policiar nossas emoções, de forma a que não nos deixemos ser influenciados pelas paixões irrefletidas.


Rui Leitão é jornalista e escritor

Foi numa chuvosa quarta-feira de Cinzas. Tragado por toda sorte de sentimentos reflexivos, fui com meu pai (seu Paulo Roberto) para uma mis...

igreja da guia paraiba

Foi numa chuvosa quarta-feira de Cinzas. Tragado por toda sorte de sentimentos reflexivos, fui com meu pai (seu Paulo Roberto) para uma missa às 19h30min na Igreja de Nossa Senhora da Guia, em Lucena. Um motivo muito forte que suscitou a ida àquele santuário foi o de encomendar missa de sétimo dia para minha tia Nevinha (tia de meu pai, mas tão presente como se tia primeira fosse), pessoa extraordinária que morava no Recife (PE) de onde partiu, na quinta-feira anterior, aos 71 anos.

igreja da guia
Igreja da Guia (PB)
A Igreja está localizada estrategicamente sobre um platô próximo ao distrito de Costinha com uma visão privilegiada de toda a foz do Rio Paraíba (e da Fortaleza lá no Cabedelo). Construída em 1591, sendo uma das primeiras construções destas terras coloniais, fazia parte do aporte de segurança da Capitania da Parahyba. É uma belíssima construção em pedra e cal. E sua arquitetura em estilo ‘Barroco tropical’ resiste ao tempo com toda sua riqueza e imponência.

A missa começou alguns minutos após o combinado, acompanhada de fina garoa que cedeu lugar para chuva torrencial. Postado na nave, ao lado de uma porta lateral, daquele ponto avistava ao longe as luzes de Cabedelo e os pingos de chuva não me incomodavam, pois faziam parte daquele momento reflexivo, um elo com o sobrenatural. Observava atento as colunas, coroas, anjos, folhagens, capitéis, o arco do altar-mor, o próprio altar... tudo muito bem talhado, todos os detalhes. Olhei para o arco e vi a pedra angular balanceando as forças ali concorrentes, de imediato vi Jesus, na cruz, a pedra fundamental da Igreja em sofrimento. De imediato me veio à mente a Semana Santa que se iniciaria e todos aqueles santos cobertos de roxo simbolizando a tristeza, dor e a penitência da Quaresma.

uma rainha que desconhecia rancor, ódio e também ingratidão
Chega o Padre, inicia-se a missa, a chuva aumenta e as luzes se apagam. A partir de então, só havia luz em alguns postes fora da igreja. Pela porta principal entrava um pouco de claridade que flertava com a sinuosidade dos detalhes entalhados, o altar iluminado por três velas e a celebração continuou ainda mais bela. O lume dos círios ia alcançando as porções mais altas do altar, teto e janelas, devagar, em gradual cadência. Mais acima, os últimos frisos só podiam ser imaginados (não vistos!), ao mesmo tempo que a voz do Padre (sem microfone) e os cânticos eram entoados majestosamente, em coro, sem instrumentos, a sensação era de estar mergulhado no período colonial, séculos atrás, com tantos detalhes aludindo ao passado, aguçando ainda mais a minha reflexão e homenagem. E comecei a pensar nela.

Pelo carinho e elo de sangue, é bastante comum elogiar parentes. Os nossos são sempre bons, mas essa minha tia, Maria das Neves Oliveira, saiu da Mumbuca, da Serra do Maracajá, zona rural de Campina Grande, e foi para Recife lutar por um sustento para a família, isso nos idos da década de 1960. Abraçou e encaminhou todos os seus irmãos em profissões; de representante comercial se tornou uma grande empresária em Recife, foi premiada na China e na Coréia do Sul; deu casa, emprego e "vara para pescar" a todos os familiares, dos mais próximos aos mais distantes, um manto que cobria do frio todos os Oliveira.

De uma generosidade e amor sem limites foi esteio de nossa família e sempre contagiava todo mundo com uma energia e alegria de viver realmente grandiosa, uma rainha que desconhecia rancor, ódio e também ingratidão. Em 2006 quando soube que eu estava escrevendo um livro, procurou-me para saber dos detalhes e fez questão de "bancar" a publicação. Um exemplo de ser humano que soube se superar pelo amor. A dor de sua ausência é grande, não tem tamanho. Seu processo de doença (agravado pelo diabetes) não durou muito, é como aquele adágio popular que diz que as pessoas muito boas não devem sofrer... E como diz a música "Dona Cila", que a cantora Maria Gadú fez para sua avó: "Ó meu pai do céu, limpe tudo aí / Vai chegar a rainha / Precisando dormir/ Quando ela chegar / Tu me faça um favor / Dê um manto a ela, que ela me benze aonde eu for"... Nevinha, se buscamos a todo o tempo sermos boas pessoas, pessoas melhores, é porque tínhamos um grande exemplo a seguir; o seu. Desde muito pequeno que seus atos são sempre exemplos pedagógicos de Papai, sinônimos do bem, daquilo que é melhor.

Foi fazendo essa reflexão que eu entendi o porquê daquela missa estar sendo tão mística, diferente, especial. No fim ainda recebi, na testa, as cinzas que foram ofertadas a quem não pode estar no dia anterior pela forte chuva que banhou Lucena. Que Deus dê o céu a tia Nevinha, exemplo de cristandade e amor ao próximo.


Thomas Bruno Oliveira é mestre em história e jornalista

Admiro-me com a reação exacerbada das pessoas diante da morte, como se ela não fosse parte da vida. Não deveríamos nos surpreender com a “I...

preparacao para morte

Admiro-me com a reação exacerbada das pessoas diante da morte, como se ela não fosse parte da vida. Não deveríamos nos surpreender com a “Indesejada das Gentes” ou a “Iniludível”, como a chamou Manuel Bandeira, fazendo jus a sua característica maior.

Para quem acredita que só há uma vida, a da materialidade, o normal seria que a pessoa se preparasse para morrer, gozando o máximo possível da sua efêmera existência e fazendo de tudo para estendê-la até o seu limite. Para os que acreditam na imortalidade do espírito, há pelo menos duas possibilidades de lidar com a morte. A primeira é que só morremos uma vez e teremos uma vida depois de consumada a nossa pequena permanência na terra. A segunda é a de que morreremos muitas vezes, porque viveremos tantas vidas quantas forem necessárias para aprendermos o caminho para a espiritualidade maior, que consiste na iluminação. Em suma, devemos nos preparar para a morte, não importa qual seja a nossa concepção de vida.

O suicida não tem a mínima ideia das dores que vai encontrar
Em qualquer das possibilidades apresentadas, a morte será sempre uma passagem: para o aniquilamento, para uma vida posterior ou para novas vidas de aprendizagem. Nesse último caso, uma aprendizagem que terá como Mestre, no mais das vezes, a dor, que deverá nos preparar para as outras vidas que teremos. Se formos bons alunos, aprenderemos depressa e diminuiremos a nossa frequência de vidas e de mortes. Se formos maus alunos, nos atrasaremos e aumentaremos os nossos encargos, cujas responsabilidades negligenciaremos, além de acusarmos os outros por escolhas que são nossas.

Não é que não possamos nos lamentar diante da morte, principalmente, de um ente querido, mas devemos ter a consciência de que ela é apenas um estágio para o nada, e não há o que temer ou lamentar, se a vida tiver sido bem aproveitada; para a espiritualidade, o que significa, no mínimo, uma nova chance de aprender, de mudar e de seguir adiante, em direção à iluminação.

Lamento mesmo, deveríamos expressar não por alguém que morreu, mas por alguém que se matou. Se em nada acreditava, o suicida trouxe dor para a família, crendo libertar-se do sofrimento de viver; se acreditava em uma vida espiritual, ele não tem a mínima ideia das dores que vai encontrar até que lhe seja dada a oportunidade de viver nova existência material. 

De qualquer forma, a julgar pelo que venho acompanhando nas redes sociais, quando morre alguém, constato que não é que as pessoas não estejam se preparando para a morte, elas não estão preparadas é para a vida.


Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor e escritor

Não tinha amigo algum, no entanto, ia ser visto, anos depois Como um dos pouquíssimos rebentos finais daquela casta condenada Que um dia ...


Não tinha amigo algum, no entanto, ia ser visto, anos depois
Como um dos pouquíssimos rebentos finais daquela casta condenada
Que um dia possuíra o mundo sem que necessário fosse
Sequer abrir seus braços

Achava que uma poesia me cruzaria os passos, quando
Atravessasse tal beco e fosse caminhando
Cabisbaixo e observado por aquela lua,
e logo minha sombra, ou algum meteoro caído
Havia de colocar em minha boca
Aquelas tantas palavras que eu
Absolutamente não as tinha

poesia albeto lacet
Nem me lembro ao certo se retornando sozinho
Com o peito frágil e exposto na noite lôbrega
Ou se apenas marca-me um intenso transcurso
Através da alta noite de ventania e presságios
mas sempre nas muitas e diferentes noites
Haverei de estar sempre retornando
Numa lembrança sem qualquer resquício
De anterior destino ou da mera
Alegria por estar de volta

Descendo os entrecortados batentes do vale
Enegrecido pelo fumo dos tempos, e imerso já
Naquela solidão a que inexplicavelmente fora proscrito
Carregando de mim, no entanto, imagem talvez medonha
De pária infante cuidadosamente envolto em manto
A um só tempo de proteção e inefável abandono

Mas certamente será desnecessário que a caudalosa
Introspecção de um rio venha a colar-se na paisagem
Ou que um panejado de asas feche o céu como num circo
Enquanto a multidão de palavras voa da alma para o texto
Para que tudo continue a soar como numa música ardente


Alberto Lacet é artista plástico e escritor

Nestes tempos de quarentena, além das dores, a espontânea expressão musical vem unindo o globo em torno do malfadado vírus. Em diversas for...

sandra trombetta musica na psicanalise

Nestes tempos de quarentena, além das dores, a espontânea expressão musical vem unindo o globo em torno do malfadado vírus. Em diversas formas e espaços, a nobre arte tornou-se fiel companheira na épica experiência que vivemos. Em seu conjunto, doença e música poderiam compor um filme de Quentin Tarantino, qual Django Livre, em que o conhecido diretor une cenas de atônito terror a belas e inusitadas melodias – retrato exato da pluralidade de sentimentos que nos assola.

A música daquele domingo... arrancou-me para o mundo do sonho
No pedaço do mundo onde habito não tem sido diferente. A partir das apresentações de um talentoso vizinho, que nos presenteou com o som de seu violino, a pracinha em frente ao meu edifício virou palco de generosas apresentações. Um palco estranho, é bem verdade, já que os ouvintes continuam entocados em suas varandas, dando a falsa impressão de que não existe plateia.

Em um domingo de abril foi a vez de uma cantora lírica, que, entre populares e clássicas, fez entoar Puccini através de sua melodiosa voz. Fui dormir adolescente, cantarolando Nessum Dorma em minha mente, e naquela noite não quis saber de notícias tristes ou estatísticas assustadoras. Acordei na madrugada ainda com um recanto de sossego dentro de mim, e lembrei que a música costuma ser definida como dois sons entre um silêncio. Um som contínuo, sem o intervalo do silêncio, será qualquer coisa como um barulho; mas não será música. E somente então percebi o quanto eu estivera mergulhada na busca incessante da informação, ou da compreensão, sem me permitir o precioso intervalo do sonhar e do silêncio.

A psicanálise nos ensina que o sonhar, aquele que produzimos quando estamos dormindo, mas também aquele que nos permitimos ao mergulhar numa bela canção ou num pequeno devaneio, é condição para que possamos mentalmente assimilar a realidade, modificando-a no que for possível, aceitando-a no que tiver de inexorável. Assim como na arte da música, o nosso pensamento produtivo precisa do intervalo do sonhar para acontecer. A realidade sem este intervalo também é apenas barulho, ficamos cegos de tanto vê-la, e por mais que a informação se acumule dentro de nós ela não se transformará em matéria para o aprendizado, para as decisões e escolhas que a vida nos impõem, para o crescimento.

A música daquele domingo, por sua beleza e inusitada inserção, ao modo de Tarantino, arrancou-me para o mundo do sonho amenizando-me o peso do vivido, restituindo-me o espaço do pensamento e permitindo, inclusive, que me debruçasse sobre o papel do computador para escrever estas linhas.

*Variações de uma psicanalista sobre a quarentena


Sandra Trombetta é psicanalista, membro da Sociedade Psicanalítica do Recife

De repente o caos. O som do impacto silencioso reverberou pelo mundo. Fugimos para os lares com a pergunta: E agora? Muitos, atordoados, ...


De repente o caos. O som do impacto silencioso reverberou pelo mundo. Fugimos para os lares com a pergunta: E agora?

Muitos, atordoados, estão há semanas inertes. Quando recolhidos evitam o vírus, mas não a si mesmos. A cura virá pela ciência, o pão pelo estado se preciso, mas quem alimentará nossos sonhos? Quem fará valer a pena o fôlego de um pulmão sadio?

Não existe máscara para evitar a pandemia de desespero
As ruas vazias podem deixar equivocados e desavisados com a sensação que tudo está parado. Mas o mundo gira, em torno de si e do sol, não em torno de nós. Há guerra.

Quem não tinha propósitos antes, tem ainda mais dificuldade agora. Estatísticas não dizem quantos sobreviverão, não do vírus, mas do silencioso processo seletivo onde prevalece o engajamento individual.

É tempo de planejar, estudar e executar.

O mundo não acabou, ele apenas mudou. Os recursos estão mais escassos, mas a nossa energia ainda é a mesma, e o que faremos com ela para fazer parte dessa nova sociedade?

Não existe máscara para evitar a pandemia de desespero que se alastra nos corações. Não há higienização para mão que colocada no arado olha para o que já foi.

Faremos parte da transformação e não apenas veremos pela janela a construção do novo mundo.


Carlos Rolim é engenheiro civil

Mesmo que eu fale contigo todos os dias, os silêncios pesam porque tu não estás No alucinar das horas e de meu próprio discurso, vag...


Mesmo que eu fale contigo todos os dias,
os silêncios pesam porque tu não estás

No alucinar das horas e de meu próprio discurso,
vagueio falando sozinho

Busco a tua voz,
nada soa, a solidão me encerra,
devora, apavora,
une e confunde

Quero o ressurgimento
do gota a gota do amor diário
inconcluso sempre, ininterrupto

Ah...meu diálogo é um o sole mio piegas
de devaneios obscuros, enquanto obscenos
os assovios de um pássaro mecânico


Ana Elvira Steinbach Torres é doutora em ciências humanas e professora

Após o mundo controlar a pandemia, o que restará de bom? Se voltarmos na história do mundo recente e moderno, constataremos que já houve ...


Após o mundo controlar a pandemia, o que restará de bom?

Se voltarmos na história do mundo recente e moderno, constataremos que já houve problemas similares com certa regularidade; a cada século. 1720, a grande praga de Marselha; 1820, pandemia do cólera; 1920 a gripe espanhola; 2020, o corona. Algumas, como a de 1920, com consequências muito mais devastadoras do que temos até agora com a covid-19. E quem foram as vítimas? Provavelmente muitos de nós, também, em encarnações anteriores.

Não vai ser um viruzinho como o corona que vai conseguir educar-nos ou sensibilizar-nos
Quando analisamos a evolução tecnológica, contrastando, e muito, com seu progresso moral, somos forçados a admitir que as dores não são argumentos suficientes para melhorar o homem. Certamente, surgirão movimentos que enaltecem o ser humano, quando comunidades se reúnem para socorrer os mais sofridos nestas horas de angústia. Mas são ainda uma minoria com propensão para o bem, sempre com a tradicional omissão dos mais poderosos política e financeiramente. E quando dizem presente é para auto enaltecer-se e colher dividendos políticos e financeiros. Geralmente é o pobre que socorre o pobre.

Nossa afirmação se baseia na constatação de que, apesar das dificuldades por que passa a sociedade, os oportunistas continuam presentes e tentam se beneficiar do sofrimento alheio para proveito próprio. Alimentos com preços abusivamente aumentados, o mesmo acontecendo com remédios, equipamentos e produtos de proteção contra a pandemia. Por que isso acontece? De quem é a culpa?

Certamente que a maior razão é que ainda estamos como mundo de provas e expiações onde o atraso prevalece com destaque para o exacerbado egoísmo dos homens que procuram estar bem, mesmo à custa da miséria alheia. Afinal, dizem, "a vida é uma só e temos de aproveitar. Daqui a pouco morremos e fica tudo aí".

concilio de constantinopla
Concílio de Constantinopla
Nesta hora, vem-nos à mente o mal que a igreja católica fez à humanidade quando excluiu de seus dogmas a reencarnação, no Concílio de Constantinopla em 553 d.C. Certamente não é a única razão para a conduta irresponsável dos homens, mas é uma das mais importantes. Acreditássemos já há quinze séculos que a lei de causa e efeito nos cobra pelos atos realizados e que não sairemos da inferioridade antes de pagar até o último centavo, é provável que nossa conduta fosse diferente. Saberíamos que tudo o que semearmos teremos que colher. Um motivo a mais para sermos, usando a linguagem eclesiástica, “tementes a Deus”.

Por isso sou pessimista quando à capacidade desta praga melhorar a humanidade quando o mal terminar. Uns ou outros, já meio propensos ao bem, alçarão voos mais altos. Mas a maioria desonesta, que vive na criminalidade dos mais diferentes jaezes, quer descamisada quer de colarinho branco, não subirá um degrau na sua escalada espiritual. Para eles não há um futuro que valha o investimento, já que a morte é o fim. Comemorarão a sobrevivência e pronto! Por isso é que os cristãos brasileiros, católicos ou protestantes, sorriem e fazem pouco dos espíritas quando estes falam de outras vidas por sucessivas encarnações.

Não tenhamos exageradas ilusões imaginando que depois da tempestade possa vir grande bonança. Um planeta que tem 95% da sua riqueza nas mãos de 5% da sua população, onde os miseráveis da África, Ásia e América Latina não têm acesso à rede de esgotos, água potável, escolas e hospitais, não pode ser um mundo feliz. A corrigenda do ser humano demanda ações radicais muito mais rigorosas do que uma pandemia por um vírus que morre com cinco minutos de sol ou lavando a mão com água e sabão ou bloqueando a nossa saliva com máscara para que não atinja o próximo. Ele nos mata menos pela sua força e mais pela nossa imunodeficiência, devido aos pensamentos inferiores negativos e alimentação inadequada, tão comum nesta geração “fast food” em que predominam os enlatados com conservantes que nos envenenam.

Podem me chamar de pessimista, mas perto dos 86 anos de idade já passei da fase de sonhador irracional. Mesmo a distância, vivi os efeitos da segunda grande guerra quando faltava tudo e o pouco que havia era racionado. Vivi os percalços do governo militar e inflação de 80% ao mês! Também o confisco de nossas economias nos deixando, cada um, com R$ 50,00. E de lá para cá o mundo moral só piorou; o tráfico cresceu, a criminalidade aumentou e as desigualdades explodiram. Não vai ser um viruzinho como o corona que vai conseguir educar-nos ou sensibilizar-nos. Aguardem e verão se alguma mudança será percebida na humanidade.

Ah!, como eu gostaria de estar errado!


Octávio Caúmo é jornalista, educador e poeta

Anos atrás, ao dar uma palestra pra psicanalistas, no “Espaço do Ser”, João Pessoa, pareceu-me que os surpreendi quando lhes assegurei que ...


Anos atrás, ao dar uma palestra pra psicanalistas, no “Espaço do Ser”, João Pessoa, pareceu-me que os surpreendi quando lhes assegurei que com o ator ocorre o mesmo que a um médium num centro espírita, ou pai de santo num terreiro: ele recebe “o espírito” do personagem.

- O fenômeno é tão fantástico - garanti - que o CORPO do intérprete ACREDITA na cena que interpreta. Claro, pois não há como enrubescer, chorar ou empalidecer, se não for assim.

Marcus vilar
Marcus Vilar
Quando revejo “A Canga” do Marcus Vilar, parece-me surreal não ver na tela os quarenta técnicos que se esfalfavam em torno de Zezita Matos, do Everaldo Pontes, de Servílio de Holanda, da Verônica Cavalcante e de mim, durante as filmagens. Nós – entre cada grito de “Ação!” e “Corta!”- estávamos absolutamente sós com nossa tragédia, no meio da caatinga. O mesmo se deu quando eu e Hermila fazíamos pai e filha em “Era uma vez eu, Verônica”, do Marcelo Gomes, num apartamento modesto da Conselheiro Aguiar, Boa Viagem. Lá fora, a zoada do trânsito intenso. Ao nosso redor, a equipe técnica em torno da câmera, dos refletores, da parafernália dos sons existia até que a assistente de direção ligava pro guarda de trânsito e a avenida parava, nós ouvíamos “Ação!” – e ficávamos sozinhos, eu ouvindo a filha cantar o melancólico “Frevo da Saudade”, do velho Nelson Ferreira. E chovia na quinta-feira santa, acho que 2003, quando, no “Auto de Deus”, apresentado ao ar livre diante do Santa Roza, na mesma João Pessoa, vi Horiébir – no papel de Cristo – ser atirado ao chão por dois legionários romanos. Desci os dezesseis degraus da escadaria sobre o tapete vermelho encharcado, gritando ao prisioneiro, sob o aguaceiro: “Vós sois o rei dos judeus?”, e me impressionei com o nazareno que se levantava com dificuldade, de costas para mim, pois as carnes de suas espáduas (que o público não via!) ... tremiam, ele em estado de choque pelo flagelo de que “acabara de ser vítima”!”

"eu quase ia morrendo
com o velho personagem"
Quando ensaiávamos meu texto “O Vermelho e o Branco”, em Pombal, sertão paraibano, 1968, Ariosvaldo Coqueijo – que, além de dirigir o espetáculo contracenava comigo – jamais conseguia dizer seu monólogo inicial por inteiro, nos ensaios, pois chorava desesperadamente antes do parágrafo final. Na leitura de mesa de “Antígona”, uma adaptação minha do clássico de Sófocles, Emilson Formiga, que iria fazer o papel de um arcebispo, não “entrava” em seu personagem até que o fiz repetir o texto umas quinze vezes, sempre corrigindo o rumo de sua emoção. Aí, de repente, arrepiei-me sentindo que o “espírito” do sacerdote “baixara nele” e, extasiado, vi Emilson escalando a enorme montanha de sua dor, até que... deu um berro levantando-se, saiu correndo, chorando, e trancou-se no banheiro, insultando-me com palavrões.

Marcus Vilar
Liv Ullmann
Posso imaginar a força do fenômeno em figuras de grande peso, como Liv Ullman num “Gritos e Sussurros” ou “Sonata de Outono”. Mas... sim: tivemos Servílio de Holanda (meu filho doido em “A Canga”) fazendo um cachorro, no “Vau da Sarapalha”, aplaudido de pé no Barbican Pit Theatre, de Londres! Disse-me o Luiz Carlos Vasconcelos que os dois tinham ido várias vezes ao mercado municipal pra ver o comportamento de um vira-lata que havia lá.

Quando terminamos – em “A Canga” - o take em que percebo que meu filho pode me matar e rezo a oração do corpo fechado, fui amparado pelo diretor Marcus Vilar e por Walter Carvalho, encarregado da fotografia, pois ia desmaiando. Fui socorrido por Dira Paes e Rosemberg Cariry, atriz e diretor de “Lua Cambará”, numa sequência em que, mesmo num desempenho horrível, quase ia morrendo com o velho personagem agonizante. Quando fui fuzilado (numa cena que sequer foi aproveitada) em “Eu sou o Servo”, de Eliézer Rolim, tive uma crise de choro na frente de todo mundo, logo eu, que jamais fui disso, o que, infelizmente, não acontecia com meu personagem.

Foi incrível, por isso tudo, compartilhar o aquecimento com Irandhir Santos em "O Som ao Redor”: ele age exatamente como um pai de santo, todo fungados e gritos, perdendo de tal modo o controle que tem de ouvir várias vezes “Atenção, silêncio: vamos rodar!”, o que evidencia o fato de que – mesmo com técnicas diferentes – todos nós, atores, vivemos como que em terreiros de umbanda.


W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta