HIMALAIA
Por vezes, sinto no corpo
E na alma,
A lassidão do Himalaia.
Sinto-me incapaz de
Mover-me, pensar, respirar.
Por vezes, tudo o que eu desejo
É o silêncio profundo
Daquelas montanhas.
E que um sentimento de quase-morte
Invadisse-me o âmago
E eu me entregasse sem culpa
A tal profundo repouso.
O poeta grego Teócrito (310-250 a. C.) fez um poema, cujos versos representam graficamente uma flauta; o latino Virgílio (70-19 a. C.), seu seguidor, mostrou o pastor Córidon ardendo de amores pelo belo Alexis, idealizando vê-lo, em sua companhia, imitar o deus Pã, cantando as suas canções (mecum una in siluis imitabere Pana canendo, II, v. 31); Pã, o primeiro a unir com cera vários caniços (Pan primus calamos cera coniungere pluris/ instituit, II, v. 32-33). Já o poeta Ovídio (43 a. C. – 17/18 d. C.)
Pã aborda Siringe na margem do lagoJF Troy, 1720 ▪ Museu de Arte de Cleveland
nos legou a origem da flauta, na narrativa de Mercúrio a Argos (Metamorfoses, I, v. 682-712), quando o vigilante da desventurada Io pergunta ao deus como fora inventado o instrumento: Pã, apaixonado pela beleza da náiade Siringe (Σῦριγξ), não contava com a sua transformação em junco, operada pelas hamadríades, que a tinham como irmã. Em sua perseguição, Pã agarra o mais novo cálamo do rio Ládon, pensando ter agarrado a ninfa. De seu suspiro, que vibrou dentro do caniço, originou-se um frágil som, semelhando um lamento. O deus, então, juntou vários cálamos de tamanhos diferentes e uniu-os com cera, concedendo ao instrumento musical recém-inventado o nome da ninfa: Siringe. Estava inventada a flauta: a grácil avena, de Virgílio; a frauta ruda, de Camões.
Pã toca sua flauta, feita de cálamos unidos com cera (siringe) ▪ GD'Art
Ao pé do divino monte Hélicon, o pastor é tornado poeta, conforme nos narra Hesíodo (Teogonia, v. 22-34). As Musas, habitantes daquela região, sopraram na boca dos pastores e inspiraram a poesia; substituíram o cajado pelo ramo virente de um loureiro e concederam-lhe o dom do conhecimento, assim como elas, do passado, do presente e do futuro. Ao som da flauta, juntaram-se as palavras, nascendo o poeta, sob os auspícios das divindades – Pã, pela flauta; a inspiração, pelas Musas; a poesia do vate, o poeta-profeta, pelo ramo do loureiro de Apolo. O poeta, como sempre, indo mais além, juntou o poema ao bailado, criando as belíssimas circunvoluções do Coro da tragédia grega.
Competição musical entre Apolo e PãA. Janssens ▪ Galeria Nacional da Eslovênia
A relação entre música e poesia, ambas em essência na natureza, remonta aos tempos imemoriais. Os instrumentos musicais que os seres míticos inventaram e puseram à disposição do pastor são a transformação do natural, recriando, num processo de mímesis, a música para o contentamento dos homens, na hora em que dela precisassem, como alimento do espírito, não do estômago.
Em breve itinerário, vimos como o poema nasce de uma relação indissociável com a música, o que nos autoriza a reafirmar que ele foi feito para os ouvidos, não para os olhos. Como este grandioso evento, o VIII Festival Internacional de Música de Câmara PPGM-UFPB, cuja abertura tenho a honra de realizar, decidiu, sob a coordenação do Professor Doutor Felipe Aquino, homenagear o poeta Augusto dos Anjos, epitetando-o Um Festival para Augusto, considero a mais feliz das associações, tendo em vista a riqueza musical, rítmica e harmônica que existe nos versos deste que é, não apenas o maior dos poetas paraibanos, mas um dos maiores da Língua Portuguesa. Assim, é com grande satisfação que vemos neste momento de homenagem ao poeta do Eu, a reconstrução do que se perdeu com o tempo: em lugar da poesia lida na solidão de um espaço qualquer, a poesia para ser escutada melodiosamente, para muitos ouvidos, não só o do poeta.
O que me dizem, por exemplo, da estrofe inicial do poema Noite de um Visionário (v. 1-4), que nos põe, num crescendo magistral, lado a lado com o silêncio, com o lento modular da música que segue e finaliza com o tutti de uma orquestra sinfônica, no despertar da harmonia do seu conjunto?
Número cento e três. Rua Direita.
Eu tinha a sensação de quem se esfola.
E inopinadamente o corpo atola
Numa poça de carne liquefeita.
Ou a beleza da plasticidade da rima, na estrofe 14 de Monólogo de uma Sombra (v. 79-84), em que, na descrição do corpo em decomposição, vê-se a sinuosidade do verme necrófago, em movimento, reivindicando a parte que lhe cabe na “bacteriologia inventariante”?
É uma trágica festa emocionante!
A bacteriologia inventariante
Toma conta do corpo que apodrece...
E até os membros da família engulham,
Vendo as larvas malignas que se embrulham
No cadáver malsão, fazendo um s.
Vou um pouco mais longe e imagino, neste instante, ver e ouvir o artista musical procurando expressar esse movimento visual e sibilação da rima em “esse”, na sonoridade de seu instrumento.
'Engenho Pau d'Arco', em Sapé, na Zona da Mata do estado da Paraíba ▪ Fonte: IPHAN
Este é o poeta Augusto dos Anjos. Como todo grande artista, buscando a criação, que o gratifica, para não se sentir um deslocado diante da “aspereza orográfica do mundo!” (Monólogo de uma Sombra, estrofe 26, v. 156). É o poeta nascido no bucólico engenho Pau d'Arco, há poucos quilômetros de nossa João Pessoa, que nesta cidade morou por dois anos, entre 1908 e 1910, quando ainda se chamava, não menos bucolicamente, Parahyba; poeta que, apesar do entorno acanhado, não se desligou do mundo sempre em profundas transformações, políticas, sociais, científicas, espirituais – Marx, Darwin, Kardec, Haeckel, Freud e “a passagem dos séculos”, esse “cavalo de eletricidade”, que tanto assombrava o mundo (Poema Negro, estrofe 2, v. 1 e 3)...
Augusto dos Anjos é daquela raríssima casta de poetas que encanta o homem erudito e o homem popular, por todos os aspectos de sua poesia: do vocabulário único à musicalidade de seus versos; da criação de uma atmosfera da mais sombria degradação à busca do renascimento espiritual; pelo lirismo de tensão e pelo lirismo da ternura,
Augusto dos Anjos (1884—1914), professor e poeta paraibano.
como se pode ver nos sonetos ao pai, um tríptico-síntese da sua criação literária.
Diante de tantas transformações finisseculares, afetando o comportamento de todos, Augusto dos Anjos poderia ter escolhido o caminho da rebeldia, ciente da degradação que saltava aos olhos. Preferiu, no entanto, acreditar que se a revolução científica, operada por Darwin, com a teoria da evolução da espécie, que ele, Augusto, através da leitura de Ernst Haeckel, transfigurou belissimamente em pura poesia, expunha a vida como uma luta constante e nos jogava na cara a degradação da matéria e, por extensão, da sociedade, a evolução revelava também que a vida não para, que suas transformações constantes nos oferecem a imortalidade. Se essa continuidade acontece com a matéria bruta, não poderia ser diferente com a alma, com o espírito (Os Doentes, estrofes 105-110, v. 415-438):
Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos,
Descompondo-se desde os alicerces!
A doença era geral, tudo a extenuar-se
Estava. O Espaço abstrato que não morre
Cansara... O ar que, em colônias fluidas, corre,
Parecia também desagregar-se!
Os pródromos de um tétano medonho
Repuxavam-me o rosto... Hirto de espanto,
Eu sentia nascer-me n’alma, entanto,
O começo magnífico de um sonho!
Entre as formas decrépitas do povo,
Já batiam por cima dos estragos
A sensação e os movimentos vagos
Da célula inicial de um Cosmos novo!
O letargo larvário da cidade
Crescia. Igual a um parto, numa furna,
Vinha da original treva noturna
O vagido de uma outra Humanidade!
E eu, com os pés atolados no Nirvana,
Acompanhava, com um prazer secreto,
A gestação daquele grande feto,
Que vinha substituir a Espécie Humana!
A degradação que nos encaminha para a morte, essa “alfândega, onde toda a vida orgânica/Há de pagar um dia o último imposto!” (Os Doentes, estrofe 30, parte III, v. 117-118), são os passos necessários para uma nova vida. Em lugar da transformação, portanto, pelo ativismo político, preferiu o poeta a transformação pela poesia, com a consciência de que a matéria é só um estágio no desenvolvimento da alma, sendo a degradação o passo decisivo, a “célula inicial de um Cosmos novo!”, para a gestação, que traz “O vagido de uma outra Humanidade.”
Pã na Floresta ▪ GD'Art
Poeta da morte? Nunca! Poeta da vida, porque a vida não para. É a lei do Universo. Lei cósmica que promove o equilíbrio do espírito, pois se “a carne é que é humana! A alma é divina” (Gemidos de Arte, estrofe 9, parte I, v. 33). Nessa compreensão, Jesus “Resume/A espiritualidade da matéria” (Poema Negro, estrofe 16, v. 93-94). Augusto dos Anjos poeta-vate, poeta-profeta, cuja Sombra, “pairando acima dos mundanos tetos” (Monólogo de uma Sombra, estrofe 3, v. 13), “abraçada com a própria eternidade”, sempre esteve e sempre haverá de estar aqui (Debaixo do Tamarindo, v. 13-14).
Por uma dessas maravilhosas coincidências da vida, reencontrei, no supermercado aqui em João Pessoa, um maître que conheci ainda garçom no Rio de Janeiro. Sempre alegre e falante, imediatamente reencetamos (eu estava doido para usar essa palavra) as lembranças de uma época maravilhosa — principalmente dos restaurantes Antiquarius e Satyricon, onde ele trabalhou.
Inspirado pelo idealismo poético de Imagine, de John Lennon, Ray da Torre constrói em Vithalis uma ficção científica que vai além do entretenimento: é uma provocação filosófica. O autor nos conduz a um planeta utópico, onde as fronteiras, sejam elas geográficas, culturais ou emocionais, simplesmente não existem, e a harmonia é o eixo que sustenta a vida.
Ao longo de mais de uma década trabalhando na Fundação Casa de José Américo, venho ampliando minha admiração pelo patrono. Na adolescência, sabia apenas que era um renomado escritor regionalista, autor da destacada obra A Bagaceira; um político polivalente... Enfim, informações panorâmicas. Longe de imaginar que, um dia, diariamente, iria pisar no mesmo chão. Agora, no convívio diário com o mundo “americista”, acrescento minha admiração pelo seu caráter humanista.
Vou tratá-la assim, por nome muito diferente daquele com o qual o pai, a mãe e os padrinhos a levaram à pia batismal. Não quero confusão com possíveis parentes, embora eu não saiba, na idade em que hoje me encontro, da existência de ascendentes nem descendentes da moça vinda ao mundo para o desgosto dos seus e de si mesma. O filho único, fruto da terceira união mais estável, não resistiu à leucemia que o abateu em tenra idade.
A mais bela tarefa confiada à boca, pelo Senhor Nosso Deus, foi sorrir. Não menos importante: falar. E beijar. E mamar. E comer. Talvez nenhuma estrutura anatômica tenha recebido tantas tarefas nobres quanto a boca.
Em tempos de incerteza e polarização, a busca pela humanidade ressoa como uma necessidade premente, uma convocação para que cada indivíduo reconheça seu papel na sociedade. O mundo atual, repleto de contrastes e desafios, demanda uma reflexão profunda sobre como nos relacionamos com o próximo. A convivência entre pessoas de diferentes origens, culturas e crenças deveria ser uma rica tapeçaria de experiências e aprendizados,
Tenho por hábito fazer alguns exercícios de memória. Costumo buscar, nos escondidos do tempo, passagens de minha primeira infância lá nos espinhaços da Mantiqueira. Tudo começou em Campos do Jordão, bem nos altos de Jaguaribe (olhem a coincidência), bairro que fica entre Abernéssia e Capivari. Casa de madeira, como a maioria delas por lá naqueles anos distantes. Ainda na memória, lembro-me de que, em frente à minha casa, era a morada de Dona Gabriela, de Seu Juca; um pouco abaixo, a de Seu Zequinha, que tinha banca de frutas no Mercado Municipal.
Técnica machadiana e controle das percepções nas Big Techs
É um verdadeiro lugar comum da crítica machadiana considerar que o quadro literário legado por Machado de Assis espelha a paisagem das relações humanas por meio de uma técnica artística cuja análise não se restringe a uma abordagem local ou regional – é dizer, o microcosmo carioca de suas experiências. Pelo contrário, os traços de nosso maior escritor compõem figuras e enredos a partir dos quais
Depois que os produtos industrializados começaram a estampar ‘alto em sódio’, ‘alto em açúcar adicionado’, comecei a me perguntar como seria se os humanos também viessem com embalagens rotuladas. Imagine encontrar alguém e, antes de dizer “bom dia”, deparar-se com um selo: “Contém traumas não resolvidos”. Ou aquele vizinho sorridente, rotulado com “ressentimento elevado”.
A psicopatia tem despertado interesse crescente nas análises acadêmicas das ciências sociais, da psicologia, da psicanálise, da filosofia e da ciência política. A imagem simbólica do líder carismático — frequentemente com traços messiânicos e guiado por interesses próprios — levanta questionamentos sobre os perfis de personalidade que favorecem a ascensão ao poder, frequentemente marcada pela brutalidade, em diferentes regimes políticos. Nesse contexto, marcado por dinâmicas de ódio, a psicopatia — compreendida como um transtorno de personalidade caracterizado pela ausência de culpa, comportamento antissocial e egocentrismo — emerge como uma patologia que pode assumir dimensões tanto individuais quanto coletivas nas reflexões sobre liderança e governança.
Contrariando Nathanael Alves, que, na maioria das vezes, sugeria a leitura do livro para depois voltar ao prefácio ou à introdução da obra, em relação ao exemplar de Viagem no tempo e outros escritos, da professora Maria das Graças Santiago, imortal da Academia Paraibana de Letras, primeiro percorri as páginas iniciais para sentir as impressões dos mestres Hildeberto Barbosa Filho e José Mário da Silva, igualmente acadêmicos, com elevados conhecimentos da arte de escrever e estudiosos da literatura, que deram relevantes insinuações sobre o trabalho da nossa confreira.
Há quem pense que filosofia é coisa para grandes salões, debates intermináveis sobre a existência ou livros poeirentos escritos por homens de barbas impressionantes. Mas eu acho que a melhor filosofia cabe numa xícara de café, de preferência, acompanhada de um biscoito.