No Bairro dos Ipês, em Mandacaru e adjacências existe um senhor de idade avançada que cata resíduos pelas ruas, quase todos os dias, usando...

O assobio e outras lembranças

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No Bairro dos Ipês, em Mandacaru e adjacências existe um senhor de idade avançada que cata resíduos pelas ruas, quase todos os dias, usando um sinal inusitado de anunciar sua aproximação. Chapéu de palha na cabeça e empurrando um carrinho de mão, ao longe se ouve o assobio dele. Um som fino e prolongado, por vezes imitando pássaros, sempre alegre. Escutando, sabe-se que é hora da colocar na calçada o lixo domiciliar reciclado.

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Quando eu lia a crônica do poeta Antônio Morais de Carvalho, publicada neste “Ambiente de Leitura”, me lembrei deste senhor que “passeia” pelas ruas do bairro onde resido e pela redondeza, utilizando o assobio como sua marca registrada para anunciar a presença dele. Suponho que é também uma forma de expor sua alegria, porque assobiar remedia a nossa ansiedade em busca da paz.

Recorri a José Américo de Almeida para reler uma passagem antológica do romance “A Bagaceira”, quando ele descreve que numa tarde os ares do Engenho Marzagão estavam sendo cortados por um silvo, lembrando as cigarras num sibilo único. Os moleques da bagaceira, com dois dedos na boca, numa expressão de vadiagem, faziam: “fi-iii-iú-iú-iii...”

A galhofa era porque um retirante levava a mãe inválida escanchada no pescoço. Era o meio encontrado para carregá-la, de modo a recompor as forças. Diante da saraivada de assobios, tonto, tentando safar-se da avacalhação, desequilibrou-se e ambos, mãe e filho, esparramando-se por terra, rolaram pelo chão, ficando empoeirados. Aumentando, assim, a risada com mais silvos. A cabroeira divertia-se dos tropeços alheios, sem ser uma maneira de menosprezar.

Quando saímos ao campo, em Tapuio, sítio onde nasci, fosse a fim de cuidar das plantações ou cortar capim para alimentar o gado, muitas vezes ouvíamos nos roçados trabalhadores executando sinfonia de assovios. Ainda hoje anda comigo a música deles que compõem a minha paisagem humana e seus arredores sentimentais.

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Há uma passagem bíblica, que costumo lembrar, dando conta de as ovelhas escutando a voz do pastor, o segue. Como na antiguidade, escutemos, pois, agora, o som dos assobios dos nossos pastores. Minhas ovelhas que ouvem a minha voz, eu as conheço, e elas me seguem (João, 10:27), é o que afirma Jesus quando se dirigia aos seus ouvintes.

Lá em Tapuio e outros lugares por onde andei, quando limpava mato, no preparo do leirão ou cambitando cana, o sujeito assobiava. Alguns assoviam para chamar o cachorro ou para debicar de alguém.

Tive um amigo que, numa festa, se perdeu da mulher. Assobiou repetidas vezes. Conhecendo o sinal, logo ela chegou até o lugar onde estava o marido.

O poeta Antônio Morais fez lembrar essa época, de quando morava em Serraria ou em Arara, para mim reveladora de caminhos que ajudaram a construir um novo tempo na idade sexagenária. Uma paisagem também lembrada ao escutar esse senhor que percorre as ruas, levando-me ao tempo de minha infância em Tapuio, pois é um período de lembranças renitentes em apagar-se, acomodadas na memória desde o tempo quando era pichititinho.


José Nunes é poeta, escritor e membro do IHGP



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