Até onde pode ir a ruindade humana? ... Há vezes que estranhamos sobremaneira a indiferença, a incompetência moral e a covardia enquanto c...

Música é a resposta

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Até onde pode ir a ruindade humana? ... Há vezes que estranhamos sobremaneira a indiferença, a incompetência moral e a covardia enquanto conduta corriqueira nas relações, as mais diversas, e nos incomodamos. Mas, será que esse incômodo é suficiente para nos enxergar e criticarmo-nos até que mudanças sinceras e honestas ocorram dentro em nós? ... Será que nossas lotadas agendas, nosso sempre frenético corre-corre — mesmo em tempos pandêmicos, concedidos pela Natureza, ainda assim, não aproveitamos o tempo sabático para nos agarrar a essa lição... — para algum lugar que não sabemos qual, vale mesmo o preço de não praticarmos a verdadeira empatia? ...

Num momento em que escolas param, faculdades fecham, universidades simulam um suposto tele-ensino; num momento em que se vê, com certa frequência, surtos psicóticos em colégios nos quais um só aluno mata a tantos outros, não seria hora de revermos, todos, nossos conceitos, e verificarmos, em autoanálises, o quanto fracassamos como sociedade?...
Não só pelo contexto viral recente — já um ano desde o primeiro caso registrado —, mas também, num cenário escancarado de ineficácia escolar, o ensino doméstico (homeschooling) vem crescendo, seja em forma de discussão sobre o assunto e sua legalidade no Brasil, seja pela prática, “clandestina” ou não, em terras brasileiras e alhures.

Contudo, é preciso ter de forma clara e premente a resposta para a seguinte indagação: o que os pais hão de ensinar a seus filhos que já não deveriam ensinar em casa? E mais: a antiga e indispensável ‘educação doméstica’ já não estaria calcada nos valores centrais de respeito e tolerância, ou tais valores já haviam se esvaído das famílias há muito mais tempo? Se, então, tais princípios já não fazem parte do cerne relacional-familiar, — e se é que de fato, tais condutas já foram inerentes das famílias de modo geral — é realmente impraticável falar do fracasso escolar e mesmo dessa substituição aparentemente útil e legítima, que, no entanto, carece de reflexão mais aprofundada sobre o tema, quando visto numa perspectiva coletiva em larga escala.

A sociedade como um todo está doente, isto é uma constatação factual! E este adoecimento, não tem-se dado de um ano para o outro, sequer de uma geração para a outra; vem, pouco a pouco, sorrateiramente, germinando entre nós, porque, quer escolas, quer famílias, permitimos abdicar de certas práticas em detrimento de outras, e, a cada mudança tênue, surge sempre de pronto, as defesas (ou seriam ataques ao bom costume? ...): “qual o problema?”, “o que tem demais nisso?”, “o que é que tem?”, “deixa pra lá!”, “são os avanços do tempo!”, e por aí vai. Percebe-se que não se trata somente de verificar se políticas públicas estão sendo fomentadas, se estabelecimentos de ensino estão afinados sob certas práticas, ou se as crianças estão melhor em casa ou em escolas. É que escolas são feitas por pessoas, políticos não vêm de Marte ou Júpiter, brotam da sociedade sem dela nunca se apartar.
E como tal, os valores, ou a falta deles, são denotados em quaisquer entes sociais, quer familiares num sentido estrito, quer sob o conceito expandido de “grande família” em igrejas, colégios, agremiações esportivas, etc.

A escritora neerlandesa Carolina Sofia [Carry] Slee tem tratado desses temas tão actuais e que são urgentes de discussão reiterada, não só num determinado contexto societário, mas em todo o mundo, inclusive no oriente. A autora aborda o relacionamento humano, especialmente o infanto-juvenil, com destaque para suas instabilidades emocionais, suas imprevisibilidades, e também as fraquezas de caráter. Um de seus livros, "Regret", de 1996, trata de relações na fase da adolescência com toda a imbricação que essa idade traz: problemas com os pais, primeiras paqueras, o estudo, o papel da escola e os relacionamentos interpessoais nesse contexto. Slee parte de experiências próprias, seja com suas filhas, seja com sua mãe, portadora de deficiência mental. Isto torna sua obra bastante rica e verdadeira, o que dá ainda mais identificação com o público em geral.

Baseados no livro, Slee e os roteiristas Maria Peters e Dick van den Heuvel delinearam o texto para o filme "Spijt!" (na versão brasileira ficou-se com o título "Um Grito de Socorro", e em Portugal, sob o título mais aproximado do original, "Desculpa!"), dirigido pelo prolífico produtor e diretor Dave Schram, cuja narrativa original ganha realce pela linguagem fílmica. Muitas são as lições que se pode extrair deste filme, há diversos arquétipos sendo expostos e confrontados com nossos próprios valores, fazendo-nos inquietos diante da inércia dos personagens, e sobretudo, diante de casos muito semelhantes, que vemos diariamente bem próximos a nós, basta que olhemos com a devida atenção à nossa volta.


Schram gravou o filme em 2013 e deixou a trilha sonora a cargo do prestigiado compositor, e seu conterrâneo, Herman Witkam que soube referenciar personagens e musicar os temas de modo discreto e funcional. Enquanto os créditos iniciais se dão, há o “tema” do filme resumido na nostálgica guitarra elétrica, em reverberação, com apenas uma estrutura de dois acordes que soam vazios, sob os quais, ao fundo, se ouve o transcorrer de águas. A água, seu símbolo narrativo e seu arquétipo de remissão, sintetiza a trama quando o nome do filme surge como que boiando numa superfície aquosa. A primeira cena transcorre sob o arquétipo da escolha certa: o professor de educação física, superficial, meio bobão e imaturo, num jogo de basquete que se pretendia apenas de confraternização num acampamento da turma, lança a moeda, e a “sorte” dos jogos da vida se impõe quando as personagens dos capitães dos times, David (interpretado pelo ator Robin Boissevain) e Sanne (interpretada pela atriz Charlotte Bakker) selecionam seus parceiros de equipe.

Pelo “cara-e-coroa”, David começa a escolher primeiro e sua personagem representa a bondade, o bom mocinho que, na verdade, não sendo tão bom assim, revela-se incapaz de defender e combater pró-ativamente as injustiças que, muitas vezes, só ele percebe. No lado oposto, Sanne, a frustrada, descarrega seus dramas familiares, na difícil relação que tem de cuidadora do pai aleijado, assumindo uma postura rude, agressiva, persecutória e abertamente desprovida de moral, pelos seus feitos reprováveis, ao longo da estória. Mas, no jogo, o que se vê é uma pueril competição que antes, é marcada pelas escolhas dos colegas para cada time. A amizade, as parcerias em afinidade moral, e as habilidades físicas, são critérios para a seleção. O último, ao final, que não é escolhido, mas que, segundo “as regras” deveria participar, é Jochem (interpretado pelo ator Stefan Collier), preterido até o fim, por seu porte físico “fora de forma”.

A música, um roque eufórico e adolescente, é o ambiente psíquico para o expectador da cena do jogo que é permeado pela não tão salutar competitividade e pela falta de cortesia entre os colegas de turma: Youssef (personagem que representa os imigrantes e seus valores, interpretado pelo ator Brahim Fouradi) e Niels (o braço direito e melhor amigo de David, interpretado pelo ator Gregory Samson) repreendem Jochem de modo hostil por ele ser “lerdo” e deixar que o time rival roube-lhe a bola e pontue. David vê passivamente seus amigos destratarem Jochem, recém-chegado à escola, assim como o jogo agressivo da capitã oponente que arranca a bola de Jochem e o empurra logo após sua equipe fazer a cesta. O time de Sanne acaba ganhando a partida quando o próprio David se deixa ser tomado pelo flerte de Vera (interpretada pela atriz Dorus Witte) e ela, tomando-lhe a bola, faz o último ponto. Aí o foco da narrativa fílmica é destrinchado para o expectador que vê, na cena inicial, a possibilidade de um futuro primeiro-amor, representado pela cortesia de passar a bola para sua paquera em time contrário, ao mesmo tempo em que se vê o tratamento áspero para com um membro de um jogo que era para ser apenas de camaradagem e descontração. Segue-se a cena do vestiário e nela a autora, desde o livro, parece representar em imagens o termo bullying, e Schram enfatiza-a com requintes de detalhes; os especialistas dão a seguinte acepção:

A palavra bullying tem origem na língua inglesa e contém o radical bully, que significa valentão. O sufixo -ing (acrescido ao prefixo bully-) denota continuidade, constância, o que nos ajuda a entender com maior precisão o significado do termo referido. Tal prática é caracterizada por constantes agressões, que podem ser de ordem física, verbal e psicológica (geralmente ocorrem as três juntas), em que um indivíduo ou um grupo humilha, xinga, expõe e agride um outro indivíduo. Só podemos chamar de bullying o comportamento sistemático e constante, de modo que episódios isolados de agressão física ou verbal não são caracterizados dessa forma. O bullying acontece de diversas maneiras: pode ser expresso por apelidos vexatórios e sistematicamente utilizados, pela perseguição à vítima, pela humilhação da vítima diante de um público, pela exposição da vítima por suas características físicas ou psicológicas, chegando, em muitos casos, a agressões físicas que podem provocar lesões corporais.

Sem suas roupas, Jochem não figura na foto oficial do acampamento. Ironicamente, o professor – que nada professa senão sua própria infantilidade... – que se diz também “talentoso fotógrafo” não só faz questão de sair em evidência no retrato, como também não nota a ausência de Jochem, porquanto seus colegas lhe haviam surrupiado as roupas e pendurado numa árvore justamente atrás de onde a turma fazia pose para as fotos. Só David o enxerga ao longe, pulando a janela do vestiário, de toalha, vergosamente saindo-se escondido e pisando em pedras descalço. A sensação é de arrepios agoniantes quando nos colocamos no lugar de Jochem, mas David nada diz...


O filme segue com a intensificação do bullying e com o incômodo de David que se aproxima de Jochem e se vê, por vezes, defrontado por Sanne e seus dois seguidores idiotas, sobre a ética dessa amizade e de sua conduta silente para com o amigo por quem não luta. Trava-se aí a batalha dos valores: justamente quem não os tem, mostra o espelho da hipocrisia para os que se incomodam mas não agem. O reverendo estadunidense Martin Luther King Jr costumava falar sobre a inanição daqueles que vêem o mal mas não o combatem:


“The greatest tragedy is not the brutality of the evil people, but rather the silence of the good people”.

“O que me preocupa não é o grito dos maus, mas o silêncio dos bons”.

E a tragédia que se abate sobre a vida do pastor em 1968 é emulada nessa ficção quando Jochem comete suicídio, justamente buscando a remissão de seu sofrimento no lago um pouco afastado da cidade. Com depressão, obesidade, e desprezado por Vera a quem havia se declarado, Jochem joga uma pedra no espelho d’agua dos jardins da casa do professor Tino (ironicamente, tino era justamente o que lhe faltava! ...) — interpretado pelo ator Dave Mantel —, logo após Vera ser enfática em não corresponder aos seus afetos.
Aí a trilha do tema inicial retorna, com a guitarra tremulando como água perturbada. No momento em que mais precisou de seu amigo, Jochem se vê desconsiderado por David que o deixa à própria sorte em mãos de seus algozes.

Ao fim, conclui-se o fracasso de todos, do próprio Jochem que não teve ouvidos para ouvir a música que fazia e a que tocava a vida de David; de David e Vera que não foram capazes de manterem-se fieis|à amizade de Jochem; dos pais de Jochem que não souberam ler seu filho, compreendê-lo nesse processo de adoecimento da alma; do diretor e demais professores da escola que não foram sensíveis em perceber o permanente bullying; do professor Tino, em especial, por fingir não ver e ser condescendente com Sanne e sua trupe; e dos demais colegas de turma que “tinham mais o que fazer” ao invés de se importar com o drama vivido diariamente debaixo de seus próprios narizes.

O que andamos a estudar? De que adianta ter conhecimento se este não nos faz melhores como seres humanos? Parece então que devemos buscar, acima de tudo, e antes de qualquer coisa, adquirir uma prática sobre a geografia do coração; a matemática da vida; a história de cada um; o direito do outro; a física da empatia; a engenharia da longanimidade; a arquitetura da bondade; a medicina da justiça.

A frase que fica é a de David, após ajudar a Jochem numa chantagem que vinha sofrendo, e por ele insistir para que seu amigo não se deixasse intimidar pelos maus colegas e fosse ao churrasco organizado pelo professor Tino: “música é minha resposta para tudo!”. De fato, David chega a tomar o microfone na festa e apresentar uma canção com sua banda, que faz em lembrança ao incômodo velado dele próprio e da indiferença dos demais em relação ao bullying, mas a canção sequer é ouvida por Jochem ou não surte mais efeito por chegar muito tarde aos ouvidos dos estudantes. Só após a morte de Jochem, David se dá conta de que o aluno de sua avó que tanto era elogiado por ela todas as vezes que eles se viam, era na verdade Jochem, muito talentoso, e com uma carreira de pianista bem possível num futuro saudável.

No mundo bem real, num condomínio próximo ao meu, eis que ouço, numa festa de aniversário em fim de semana, não só um grupo em torno de uma reles banda de pagode que não sabe nada além de três desafinados acordes; mas também, o som de uma criança, ao microfone, a cantar sem nenhuma entoação a seguinte letra: "quem eu quero, não me quer, quem me quer, não vou querer; ninguém vai sofrer sozinho, todo mundo vai sofrer". E, então, o sofrimento sentido pelo personagem Jochem, numa ficção, é materializado em palavras e sons horribile dictu nessa dura e concreta realidade em que vivemos. As chances dessa criança coitada ser uma médica frustrada ou uma advogada insensível e usurária são altíssimas; o meio no qual permitimos que nossos cérebros apreendam, e a cognição de nossas crianças se desenvolva, é índice de uma sociedade cujo tabu do falar sobre o suicídio não impede que ele exista em um número assustador e crescente.

SIM, MÚSICA É RESPOSTA para o perdido, para o depressivo, para o ruim; contudo a Música que cura a alma não é qualquer uma e é imprescindível que tenhamos ouvidos para ouvi-la. Do contrário, as fortes e poderosas batidas serão apenas forma de torpor e cegueira. Que abramos nossos corações e mentes para ouvirmos a Música do logos, a Música da eternidade, a Música da paz!


Sam Cavalcanti é mestre em música, compositor, crítico e escritor

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  1. Salve Samuel Cavalcanti(Sam)..,perfeitas colocações sobre os relacionamentos dos agentes representantes do filme focado!!. suas funções e disfunções( ações/ reações).. enfim os mecanismos psico/ comportamentais dos personagens em seus enredos/protagonistas.A vida como ela é!!!! em suas nuances diversificadas .
    Parabéns pelo texto.
    Paulo Roberto Rocha

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  2. Como é prazeres a leitura de Sam Cavalcante

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  3. Após debruçar-me por alguns minutos de valiosa e prestigiosa aula sobre valores inerentes à nossa sociedade (seja ela no ambiente escolar, ou em nosso cotidiano), só posso dizer obrigado. Obrigado pelas inquietações indagadas; obrigado pelo alerta acerca dos valores; obrigado por analisar de forma tão sincera e veemente um filmes que retrata uma temática atemporal; enfim, uma leitura prodigiosa, salutar e avassaladora sobre as relações humanas.

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  4. Definitivamente, uma excelente análise fílmica. Além de nos trazer em minúcias uma interpretação apurada acerca do enredo do filme, nos faz uma instigante reflexão inerente aos tratamentos cotidianos vivenciados pelas crianças e adolescentes em ambiente escolar, e até nós mesmo, por estarmos inseridos em uma sociedade repleta de destratos para com o semelhante. Após alguns minutos debruçado em valiosa e prodigiosa leitura, a mente passa por questionamentos condizentes à nossa própria contuda como cidadão. Enfim, só tenho palavras de agradecimento diante de tamanho convite para pôr à tona as mazelas da sociedade. Um tema que perpassa as gerações, e que carece de maior relevância entre os que permeiam contextos escolares e, até mesmo, onde se tem o convívio social. Obrigado por mais uma oportunidade de fazermos uma inquietante e profícua leitura.

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