Eu posso afirmar, com certo grau de verdade, muita coisa sobre a Iracema de José de Alencar, figura de ficção, mas não posso afirmar quase nada sobre Iracema, pessoa tangível, minha vizinha.
Eu nunca falei com Iracema. Sequer a vi de perto. Nem mesmo sabia seu nome. De vez em quando, via, com gratuita simpatia, Iracema, mas apenas da janela deste apartamento, mirante eventual e sem propósito definido. Somente ontem, quando Marcos me falou que ela fora encontrada morta no quarto fechado por dentro, soube seu nome.
Sempre que a via, estava trabalhando, varrendo, lavando o chão, limpando a frente da casa, recolhendo o lixo ou participando da higienização da feira que acabara de chegar. Esta, a parte visível. Acredito que deveria cozinhar também. Como acordo cedo, durmo tarde, e via Iracema de noite e de dia, deduzo que morava na casa onde trabalhava, sem horário definido, ou seja: fazia parte dessa espécie de santas que dedicaram (ou sacrificaram) a vida delas para que os outros pudessem desfrutar de sua própria vida integralmente. Essas algumas funcionárias domésticas que continuam ao arrepio da lei e recebem mais alguns trocados para trabalhar em plantão permanente, são, antes de tudo, profundamente generosas, pois estão ofertando, sem que lhe agradeçam, todos os dias, a sua existência por inteiro à casa onde trabalham.
Similar à Iracema de Alencar, que pode ser entendida como uma metáfora da América colonizada, Iracema, minha vizinha, tão próxima e tão distante, caberia nesta metáfora.
A Iracema de Chico Buarque voou para a América e foi lavar chão. A nossa Iracema voou para o céu para pisar, distraída, num chão de estrelas que nunca precisa ser lavado.
As palavras finais de Iracema, de Alencar, dizem o seguinte:
“As jandaias cantavam ainda no olho do coqueiro; mas não repetiam já o mavioso nome de Iracema.
Tudo passa sobre a terra.”
Há um mote antigo, glosado por cantadores, que diz o seguinte:
“Tudo passa: na terra, tudo passa,
Mas nem tudo que passa a gente esquece.”
Não façamos como as jandaias: repitamos o nome generoso de Iracema.
Não façamos como as jandaias: repitamos o nome generoso de Iracema.