Pois se já não brilham os olhos, brilham os cristais de poeira. Jorge Elias Neto Pai No chão lavrado se faz premen...

De pai e mãe

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Pois se já não brilham os olhos, brilham os cristais de poeira. Jorge Elias Neto
Pai
No chão lavrado se faz premente o fruto.   Se o em torno repele, formam-se na pele sulcos dilatados donde escorrem incertezas.   No vão arado se faz presente o bruto.   A lida cobra. Paga-se pelo sonho que se tece, pelo brilho que se derrama.   No pião lançado se faz latente o grito.   É torpe cada lance que se desgasta. Auroras resgatadas não dão sentido ao farfalhar das sombras.   No dom caçado se faz urgente o luto.   Muitas coisas resumidas, distorcidas, não cabem no bolso sem fundo, na profundeza do engasgo.
Mãe
Que espanto este corte, a encruzilhada da despedida, onde seu nome virou reminiscência, e a dor, negociada, é outra dor, já não tragédia,  mas um acidente previsto, um sussurro de morte, uma saudade e um relance  de saber-se amado.
Eu te batizo Eu
O nome chega depois. É dado em algum momento entre uma trepada e uma palmada. Vive em cumplicidade com a mentira devorando o homem.
Big bang
A noite que me pariu tinha a boca negra . Inspirou profundo seus horrores, soprou os filhos nessa nau clandestina. Venho das coxas quentes, nasci resfolegando. Pequeno, segurei os pés da morte quando fora se jogar do nono andar. Mais velho, tentei tirá-la da cabeça de meu pai (“Filho, segura a cabeça do papaizinho.”) Queria poder dizer: Venho de um corpo transluzente. Mas desarranjaria o poema e seria uma grande mentira.
Fórceps
De onde chega traz como souvenir ambiguidades. Na vagina da mãe a rasura do ser contorcido. Não se desprendeu jamais da incerteza de ter valido a pena. Envelhecido, quebrou costelas – destroços –, pariu a matriarca perdida ... E enfim se chega o determinado instante em que os dois se olham... Sabem-se diante do que lhes cabe como definitivo. É quando o silêncio resvala na hipocrisia.
Preto e branco
Para Lourdes No tempo de meu eu-menino (um dentre os vários eus que se vêem acumulando nessa agenda de horas incompreendidas), me perguntaram se eu achava minha mãe bonita. Eu a fitei de longe (com aqueles olhos que ficaram no ontem), e respondi, com a convicção de minha maior verdade: – Minha mãe é linda!
78 rotações
São tantos os velhos com ranhuras definitivas no disco da memória... Eles têm aquela voz empastada pelo vício de palavras tantas vezes repetidas.
Polos
Para Gabriel Meu pai vestia uma pele de sonhos amarrotados. Tardava horas campeando pequenos nadas. Grande colecionador de figurinhas, trazia colada nos olhos sua fortuna de desejos.
A dor do corte
Violei o túmulo de minha mãe antes da sua morte. Dilapidei o que já eram escombros. Cobrei dela as palavras com que me lavava os cabelos. A palavra “verdade” – por exemplo.
Cristo de pão
Herdei de meu pai esse Cristo forjado em miolo de pão. Esse crucifixo que, pacientemente, foi moldado no almoço de domingo; em seus dedos, amassado, em seus lábios umedecido. Um Deus criado pelo provedor de minha casa durante o eterno silêncio comigo repartido. E eu aprendi que da bolinha de massa se forja um ídolo. Ao final da refeição, meu pai me estendeu o Cristo na cruz. Eu o peguei e ele se partiu. Foi duro para mim ver Deus quebrar-se em minhas mãos.
Portal do anjos
Anjos, dou-lhes de presente a minha sanidade. Sei o que me custará rolar a cabeça no acaso ... Anjos de poeta não implodem, esvaem-se da cabeceira da cama do menino, retornam para a dimensão do sonho que se teve e se dispersou com a razão. Retribuo com o poema a vigília e peço que devolvam a Paulo o Patibulum e a culpa.
Ao sal
O último passo – o de ida. E assim devia ser para todo o sempre. As amarras permaneceram tensas, como se desconhecessem sua inutilidade. O último espaço ficou suspenso. Num retalho de tempo, a dúvida da volta. E então passou o prazo, e tombou o píer, de joelhos, sobre o velho mar.
Penhor
Para Gabriel Dezessete anos... Essa distância não se mede pelo quanto de terra que cobre teus restos, teus sonhos... Tua sombra não tem o gosto que meu paladar deseja. Não lambi o granito preto de teu túmulo, mas sinto o gosto de cera, que não me satisfaz – pois não é teu gosto. Por isso não te visito. Meus filhos não te visitam. Se eu morresse hoje e decidisse pelas cinzas, ficarias perdido na última alameda, à esquerda da figueira. Nem teu relógio de ouro me serve. Fosse de couro a pulseira, eu a lamberia e ficaria refestelado com o sal de teu suor.

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