Lembrar professor Juarez é uma necessidade da Paraíba, por tudo que ele significa na edificação da história de instituições como a Univer...

Erudição e ousadia no Ensaio Literário

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Lembrar professor Juarez é uma necessidade da Paraíba, por tudo que ele significa na edificação da história de instituições como a Universidade Federal da Paraíba, A União, a Fundação Casa de José Américo, o Conselho Estadual de Cultura e a Academia Paraibana de Letras.

Juarez da Gama Batista iniciou sua vida pública como Diretor do Jornal A União, no período de 1951 a 1956. Muito jovem, já não era um desconhecido. Publicara um livro de crônicas, 31 Histórias do Arco-da-velha, reunindo sua colaboração diária em O Norte e na Folha da Manhã, do Recife. Também já era autor do ensaio sociológico Caminhos, Sombras e Ladeiras, de nítida influência gilbertiana.
Sobre este início promissor, vale relembrar o depoimento de José Américo de Almeida: "Eu o achei e foi um achado. (...) Fiz de um menino, quase menino, um chefe de serviço e ele deu conta do recado”.

Em 1961, assume, como fundador, a cadeira de Literatura Brasileira na UFPB. Não tinha formação acadêmica nesta área. Professor Juarez era um bacharel autodidata, de notório saber que, durante vinte anos, até sua morte em 1981, encantou os alunos com seu estilo e sua erudição. Deixou uma produção acadêmica vasta e vária, dificilmente superada, mesmo com os incentivos de pesquisa e pós-graduação que passaram a vigorar na Universidade.

O ensaio foi o seu instrumento de apreciação da literatura. Instrumento eleito, conscientemente, em função das três idéias básicas que caracterizam este gênero, na conceituação moderna: o auto-exercício das faculdades, a liberdade pessoal e o esforço constante pelo pensar original - Ensaio para ele era descoberta. Crítica com letra maiúscula. Criação. Assim, imprimiu ao gênero sua marca pessoal inconfundível: a construção do estilo e a erudição. A ordem valorativa, que a preferência por tal gênero implicava, transparece em sua constante reafirmação "não sou um crítico, no sentido convencional da palavra. Sou um ensaísta".

Ao bem escrever, que se apóia em vasto e vário conhecimento, gostaria de acrescentar, ainda, a ousadia. Essa característica comum a todo criador - atitude sem a qual deixariam de existir o novo e o original foi a marca dominante no seu trato com o texto literário. Possivelmente a que carreia para seus ensaios o maior nível de resistência. Pois neles o mestre Juarez: não tinha medo de ousar.
Descobrindo roteiros impressentidos. Desenvolvendo aspectos, os mais inesperados. Estabelecendo ligações entre pólos infinitamente distanciados.

A erudição propiciava-lhe as condições da ousadia, fazendo-se a autenticidade do estilo sua vigorosa expressão. Forma de uma percepção aguda e original.

Conhecia a força da palavra. Sabia o peso de um período barroco, cheio de travessões, transbordante de elementos. De um período que ocupasse quase uma página inteira. Com igual habilidade explorava os efeitos da pontuação impressionista. Da frase curta e incisiva, do período fragmentário. Por isso é que escrevia e reescrevia seus textos inúmeras vezes. Perseguindo a forma que fosse a expressão do conteúdo. Ou o conteúdo que fosse a expressão da forma. Escrevia como um poeta. Lutando com as palavras.

Deixou mais de 40 títulos publicados, entre crônicas, ensaios, discursos, conferências e prefácios. Com seus ensaios literários, conquistou sete importantes prêmios de 1966 a 1976. Destacando-se, entre eles, o prêmio "José Américo - 1967", da UFPB; o "Olívio Montenegro - 1968", da UFPE; O "Geraldo de Andrade 1973", da Academia Pernambucana de Letras e o "José Veríssimo", da Academia Brasileira de Letras, também em 1973.

Desde que ele se foi para sempre, há quase 40 anos, não se pode afirmar que tenha havido apenas silêncio e descaso em relação a sua memória. Podemos registrar iniciativas que simbolizam outra forma de presença do professor Juarez entre nós.
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Muitas vezes iniciativas individuais, mas também apoiadas por órgãos de cultura.

A FUNESC tomou possível a publicação do esboço bibliográfico Juarez da Gama Batista, (sua vida, seus mistérios, sua obra) de autoria da ex-aluna, Mariana Soares, e deu o nome de Juarez da Gama Batista à Biblioteca do Espaço Cultural José Lins do Rego.

O historiador Wellington Aguiar, através da FUNCEP e buscando o apoio do grupo Klabin, reeditou Caminhos, Sombras e Ladeiras.

O Conselho Estadual de Cultura, por iniciativa de Gonzaga Rodrigues, o incluiu na coleção Biblioteca Paraibana e editou As Fontes da Solidão, ensaios que tive a honra de escolher, organizar e prefaciar.

Em 1995, realizamos (UFPB, API, CEC) um painel em sua memória. Dele participaram os professores Neroaldo Pontes, Chico Viana, Milton Marques, ao lado dos jornalistas Gonzaga Rodrigues e Juarez Macedo, este último apresentando uma bela e emocionada evocação de sua convivivência e aprendizagem com o homenageado.

Na Coletânea de Autores Paraibanos, professor Juarez está presente com o texto antológico O Retrato, selecionado de José Américo: Retratos e Perfis. Fiz constar na Fortuna Crítica de José Lins do Rego, publicada pela Civilização Brasileira, o texto O Mistério, também retirado de José Américo: Retratos e Perfis.

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Outra contribuição que vale ressaltar, nesta avaliação histórica, é a publicação de crônicas e artigos de jornal, alguns destes bem amplos e consistentes, firmando a dimensão do jornalista e do ensaísta em nosso cenário cultural.

O saldo é positivo. O mestre permanece na voz de seus amigos e ex-alunos do jornal e da Universidade.

Os textos que compõem As Fontes da Solidão, nove ensaios escolhidos, revelam, em seu conjunto, a dimensão exata do escritor Juarez da Gama Batista: suas preferências temáticas; a extraordinária erudição; a ampla informação teórica, suporte de seus conceitos criticos; a ousadia de suas interpretações personalíssimas e a construção do estilo, traço maior de sua autenticidade.

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O critério foi dar prioridade ao que estivesse inédito. Era o caso do ensaio Quem Tem Medo De Gilberto Freyre? que, embora vencedor do prêmio Geraldo de Andrade 1973, da Academia Pernambucana de Letras, foi divulgado apenas entre alguns alunos e amigos, em cópias mimeografadas.

Depois, incluímos o que estava disperso em "plaquettes", a forma comumente usada pelo autor para imprimir e distribuir seus estudos. Assim, acrescentaram-se os textos sobre José Lins do Rêgo, de onde foi retirado o título geral para o volume. Não apenas em razão dos grandes laços entre o romancista e o ensaísta, mas por representar esse título uma escolha pessoal de professor Juarez para um conjunto de ensaios que ele não teve tempo de concluir.

Deixamos de lado o que estivesse publicado em livro, presumivelmente, com divulgação e preservação bem mais garantidas. No entanto, fugimos a esse critério para agrupar os quatro ensaios sobre Jorge Amado, dois deles já inseridos na Fortuna Crítica
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comemorativa dos 40 Anos de Literatura, do romancista. É que se encontram interligados pelo desenvolvimento de um mesmo núcleo temático, embora enfocando romances diferentes. E se complementam de tal modo que na sequência em que se dispõem parecem constituir um só ensaio, escrito em quatro tempos. Um grande estudo sobre a segunda fase do romance de Jorge Amado. Não apenas pelas antecipações verdadeiramente proféticas sobre Gabriela e Dona Flor, ou pelas ligações entre arquiteturas infinitamente distanciadas, de cidade e de mulher", nem mesmo pelo processo comparativo onde se exercita a excepcional erudição do mestre Juarez. Mas por divisar o que constitui para essas narrativas sua dimensão verdadeiramente literária.

E para que o conteúdo de As Fontes da Solidão no se restringisse ao âmbito da Literatura Brasileira, o que limitaria a área de interesse do autor, encerramos esse trabalho seletivo com O Protagonismo do Fausto e Matéria e Nunca Ouvido Canto. Este, premiado nacionalmente. Escolhido há muito tempo pela Academia Brasileira de Letras. E o primeiro, por representar a preferência do Mestre entre tudo quanto escreveu.

Um dia lhe fiz essa pergunta. E ele não pensou muito para satisfazer-me a curiosidade. Ainda insisti: E O Real como Ficção em Euclides da Cunha? E A Sinfonia Pastoral do Nordeste?

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A respeito do ensaio sobre Os Sertões, achava excessivo o número de notas. Gostava da Sinfonia. Mas era O Protagonismo do Fausto que continha suas convicções, as coisas em que acreditava. O que mais parecia com ele. Foi o que me disse.

Quer tratasse de Camões, de Goethe, de Eça de Queiroz, de Gilberto Freyre, de José Lins do Rego, de Euclides da Cunha, de Jorge Amado ou de José Américo de Almeida, a perspectiva e o processo sempre o conduziram a uma extrema liberdade criadora.

Desse modo é que, em Matéria e Nunca Ouvido Canto, vai descobrir no tema dos olhos um dos elementos que possibilitam a identificação do "espírito sobrevivente e persistente da Idade Média", no ilustre renascentista português.

"A festa dos sentidos - sobretudo um dos sentidos, o da visão - em que se tomou o cotidiano da Idade Média". Com igual ousadia desenvolveu em O Protagonismo do Fausto a inquieta e inquietante indagação - "Fausto, tragédia ou comédia?" Bem como em Gabriela, seu Cravo e sua Canela estabelece a aproximação ou equivalência entre a personagem romanesca e Brasília. "Arquitetura de cidade e de mulher. Terrível e metafísica solidão". Que, segundo ele, "se explica e se completa em tantas outras expressões do psiquismo traumático da pequena burguesia nacional, comprimida pelas depressões salariais".

Sobre a moça de Ilhéus o ensaísta dirá, de forma antecipada, em 1961: é fácil prever o êxito de Gabriela no cinema e na TV, no "ballet" e até nas histórias em quadrinhos. Um dia, talvez, apareça nos anúncios das revistas ilustradas". Acrescentando que o mesmo se aplicava às personagens que viessem depois. Veio Dona Flor, e a profecia se cumpriu duplamente.

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Uma sólida concepção de arte se vai reiterando a cada novo ensaio. Todos eles sustentados por segura informação teórica. Por uma teoria sedimentada, sintetizada e que, por isso, não transparece ostensivamente, sendo absorvida pela linguagem, pelo estilo do escritor.

Mesmo quando define ou conceitua, a adequação da forma ao conceito preocupa-o tanto quanto a qualidade do enunciado. De modo que escreverá poeticamente - "A obra de Arte é o lapso, o instante que se reteve e se fez inquestionável. Um alto no que se esvai. A instantaneidade. A surpresa. A verdade repentina das suas estruturas. Uma recuperação". Por igual processo, chega em O Barroco e o Maravilhoso no Romance de Jorge Amado à densa e múltipla conceituação do herói picaresco, onde se identificam, a um só tempo, a ousadia, a erudição e a originalidade do ensaísta:

"O anti-herói heroico - não tem em vista nenhuma glória, nenhuma grandeza, nenhuma ambição que não seja a imediata garantia do próximo instante de sua pobre vida deserdada, um caco de vida. Sua perspectiva limita-se, reduz-se, é estreita e minguada, e sua altivez não tem recriminações, nem ostenta esse heroísmo desconhecido de todos: uma obscura, mas palpitante integridade pessoal, somente sua, ninguém a enxerga. Tem alguma coisa, tem tudo de um filósofo estoico. É tudo isso que o qualifica como alta figura humana, pondo-o de pé no meio da assuada, da risada, da esbórnia, dos excessos, das tantas incoincidências das coisas, como um monumento se eleva de dentro do nevoeiro. Sua única reserva de milagre é o tino rápido, ligado, a inteligencia vivissima, ágil, e a verve, o bom humor permanente, além de uma incrível, porém modesta e convicta consciência de superioridade, estímulo para a defesa do seu atual, da sua hora e deste momento (um tanto a Unamuno), e os movimentos de dançarino ou de acrobata, de mágico ou domador de velhas feras, a risada final".

Sempre agiu assim em relação aos temas ou aos assuntos de sua predileção: não transcrevia, não repetia. Buscava sínteses conclusivas que eram somente suas. Muitas vezes em contraste violento com tudo quanto existia. E, assim, fazia da atividade critica uma forma de ser.

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Entre tudo quanto escreveu, quero destacar A Sinfonia Pastoral do Nordeste. Ensaio que, segundo o romancista estudado, "como que foi escrito num canto iluminado, dentro de uma biblioteca lendo todos os livros, ou dentro de um museu olhando para todos os quadros”.

Um caso único em que a leitura suplanta o texto objeto. O seu reconhecimento dos mitos é mais que a descoberta do romance. É uma recriação. O Boqueirão renasce no ensaio, "sem história alguma", com "a natureza de ritual, de celebração de mitos". "O Boqueirão: um corpo de mitos lançados sobre um afresco de inocente e esplêndida fatura renascentista, saudável, irradiante, vencedora. E, por isso, de repente grave e profundo, como quem sabe que passará".

Os ensaios reunidos sob o título de As Fontes da Solidão transcendem a história pessoal de Juarez da Gama Batista. Deixam de constituir apenas a produção particular do indivíduo, para representar a síntese de uma forma de pensamento e expressão configuradora de uma época. Elevando-se, dessa maneira, à condição de memória cultural da sociedade a que pertencem.

Na Academia Paraibana de Letras, professor Juarez ingressou em 1968, ocupando a cadeira que tem como patrono José Lins do Rego. Foi recebido por José Américo que firmou sobre o jovem acadêmico de então esta sentença definitiva:

"Poderão as injustiças negar-lhe todas as qualidades menos que seja um intelectual. Nasceu para as letras, vive para as letras, sonha com as letras. Tanto se espiritualizou, tanto se intelectualizou, que guarda uma aparência de quem levanta voo".

Texto constante do livro Paraíba na Literatura II, publicado pela Editora A União, em 30 de março de 2021

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  1. Mais aula do que texto, dessas em que refletimos, aprendemos e nos inspiramos. Brilhante Ângela Bezerra!

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