Para um amigo sertanejo Eu morava com meus pais e mais doze irmãos. Te digo que a vida hoje é mole demais, mas naqueles tempos, o sofr...

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Para um amigo sertanejo

Eu morava com meus pais e mais doze irmãos. Te digo que a vida hoje é mole demais, mas naqueles tempos, o sofrimento era tão grande que as vezes dava dó até de viver. Morava num sítio chamado Massapê, mas não sei o porquê, já que tudo ali era seco e esturricado. Talvez o nome fosse por conta de uma glebazinha de terra em que a curva do rio banhava, lá nos fundos da propriedade. Ali sim, bom torrão que Pai plantava até arroz vermelho.

Sou sertanejo sim e desde que me entendo de gente que trabalho. Sei lá se quatro ou cinco anos, já pastorava cabras, corria que só a moléstia. Eu e meu cachorro Jupi. Bichinho preto, focinho fino e farejador que era uma beleza.
Não tinha nem dez anos e eu já caçava com ele. Meu irmão mais velho tinha vinte anos e nos sábados à noitinha, tomava banho, montava na mula com um cheiro danado de perfume e ia para um povoado vizinho da família dos Santino, ali ele namorava Cida de Jurema.

A cidade era distante 16km, eu raramente ia. Uma vez lembro que fui com meu pai, ele me colocou na sela do jumento e foi a pé, puxando. Caminhada longa e difícil. Aquele era dia de feira e ele queria pegar mais barato uma saca de farinha, sempre tinha um homem que vinha do Pernambuco e fazia um preço melhor. Além da farinha, o que aparecesse e precisasse, meu pai comprava. Resultado foi que na volta, na margem do rio que passa por trás da igreja, Pai resolveu pegar capim. Amarrou em feixes, e pôs nos cambitos nas laterais e dorso do animal. Não havendo lugar para minha carona, tive que fazer o trajeto de volta a pé e perto do pingo do meio dia. Foi cansativo demais, mas atenuava a dureza da viagem as palavras de Pai, ele falava muito, ensinava muita coisa, ficava apontando para as árvores, os pássaros, para o caminho. Era um homem sábio.

Certa vez, já com meus 12 anos, enquanto Pai ouvia o rádio e fazia seu cigarro, escutei que um tal de Mobral estava recebendo pessoas para estudar. Não que eu precisasse, sabia de muita coisa do mundo porque Pai era muito espirituoso, mas aí o questionei, queria estudar. Ele me olhou profundamente e disse que não carecia. – Mas eu queria! Nenhum dos outros irmãos se interessaram. Minha irmã mais velha que aprendeu a ler com uma tia, além de me dar umas lições foi quem, após pai autorizar eu ir até a cidade para estudar, me emprestava sua chinela para que eu não fosse descalço. E fui. Cheguei na igreja, a escola era do lado. O padre, que era diretor, me questionou e eu disse que queria estudar. Sabendo da minha história: – Mas você mora lá no Massapê, no meio das serras, não tem transporte, como vai vir? As provas seriam no fim do ano para o ingresso. Pedi que me emprestasse um livro para eu copiar. Controverso, me deu e eu voltei para o sítio. Passei dez dias copiando o livro para estudar. Fui devolver e o padre sorriu: – Você é esforçado meu filho, mas não tem chance com quem estuda todo dia...

No fim do ano fui à cidade. Acordei antes do galo, a caminhada durava quase duas horas... De longe, vi uma aglomeração de estudantes na frente da escola. Todos arrumadinhos, fardados. Me escorei na porta da igreja, encabulado, olhava para o horizonte, até que um dos garotos olhou para mim e perguntou o que eu fazia ali, respondi que ia me submeter ao exame de admissão. Perguntou onde eu estudei, respondi: – Com o livro que copiei em casa, no sítio. Ele, em tom de mangoça, chamou atenção dos amigos: – Olhem, esse menino estudou no sítio e quer passar na admissão. A mangação foi horrenda! Me recostei junto a porta da igreja, o beiral escondeu um pouco a minha vergonha. Olhei para baixo, vi meus pés sujos da viagem. Sandália surrada, maior que o pé, calças coronha e igualmente sujas de poeira. Chorei o choro dos justos e dos humilhados. Aquele pranto lavou meu rosto por minutos, ao enxugar lágrimas, secreção, espalhava-se a umidade pela face empoeirada formando faixas, quase uma camuflagem.

Os meninos entraram, fui depois. O padre passou a mão na minha cabeça com gesto de piedade e me levou a um lavabo. Feita a prova, me fazia medo até o resultado. No dia, chego na escola imprensado por olhares. O padre me parabenizou, tirei em segundo lugar! Com muita dificuldade fiz o ginásio, já o científico a barreira era maior, tinha que ir para a cidade grande. Havia uma tia lá, irmã de Pai. Ele fez um esforço danado, era aquilo que eu queria; vendeu uma porca para amealhar o necessário e me levou até lá, pediu para a tia me acolher, que não tinha jeito pois eu queria mesmo era estudar. Fui primeiro lugar, passei em dois vestibulares, fiz concurso no Banco, criei um lastro financeiro; deixei o emprego mecânico, fui para a universidade. Hoje, aposentado, quero curtir meus netos, escrever, fazer as poesias da minha vida sem olvidar o que passei, transformando tudo em força e beleza, jamais baixando a cabeça.

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