O quadro " Intervalo" - de Edward Hopper -, que ilustra este texto, capta o vazio que já senti tantas vezes entre duas sessões de cinema, ansiedade que não conseguiria definir melhor do que Bráulio Tavares num de seus extraordinários artigos do Jornal da Paraíba, que cito de memória:
- É a expectativa difusa de que algo miraculoso, impossível, começará a acontecer quando as cortinas se abrirem, algo maior que a vida real, e com o poder de fazê-la parar durante duas horas.
Isso porque a arte é densa. E é por essa densidade que lhe falta, que a senhora solitária de Hopper espera. Falo da densidade humana e artística, que ela poderá encontrar na performance extraordinária de um Gary Oldman no filme "O Destino de uma Nação" – em que vive o papel de Churchill; poderá encontrar no livraço que é "Dom Sertão, Dona Seca", do Sitônio Pinto; num concerto do Eli-Eri Moura na Sala Radegundis Feitosa, do Departamento de Música da UFPB; na análise do João Batista de Brito sobre o Oscar dado ao citado Gary Oldman em 2018.
A angústia da criação é o reverso dessa, que sente essa senhora. É a que está justamente na operação capaz ( ou não) de obter espessura de conteúdo e forma que a tirará do nada. Certa vez, amigos meus, fanáticos por Mozart, irritaram-se quando – ao assistirmos em DVD a um dos trinta concertos para piano e orquestra do Amadeus, eu disse: “Esse foi puramente burocrático”. Mas o próprio Bach, obrigado a apresentar nova cantata toda semana, nem sempre se saía essas coisas . Sempre eficiente, claro. Mas às vezes apenas isso. Miguelângelo deixou inúmeras esculturas inacabadas, certamente porque percebeu que acabariam mal, mas deixou algumas outras completas que são horríveis, como a de Giuliano de Medici, com seu pescoço... inviável .
Mas o romancista – entre todos os criadores – talvez seja o que recebe o maior desafio. Porque o seu é um trabalho que tem de prender essa senhora à espera da próxima sessão não por duas horas, mas – não raro – vários dias. E pense no autor que tem de encontrar algo para construir que o mantenha empolgado... frequentemente por anos. De meus primeiros livros, ainda datilografados, guardo oito, dez versões de cada um, cada uma tornada ilegível, de tantas anotações. Dizem que Schubert se chocou ao ver as partituras de Beethoven, todas intrincadas de tantas correções, sem que isso tirasse delas uma aparência de fácil concepção, como aquela torrente de variações das quatro notas iniciais da Quinta Sinfonia.
Kléber Mendonça Filho, Marcelo Gomes e Laércio Filho destronaram meu superego, quando trabalhei como ator para os três, de enfiada, no final de 2010, pois o controlador da obra - cada um a seu tempo – passou a ser um deles. Quando eu pintava, suspendi a mostra acertada com a galeria Gamela, pra surpresa de sua dona.
- O que foi que houve?
- Está faltando alguma coisa nos meus quadros e não vou expô-los assim, Roseli.
- Mas eu já não estive aí e não os aprovei?
Não fiz a exposição. Voltei à escrita, olhando a toda hora aquelas telas ao meu redor. A angústia, indizível. Até que... percebi que aqueles quadros todos somente funcionariam... juntos. Faltava-lhes, individualmente, densidade. Doei, então, o lote à UFPB, com o compromisso do responsável, de mantê-lo sempre... como uma instalação intitulada: Ando Muito Confuso... o que, aliás, acabou em malogro: ao fazer o Senhor X, no episódio-piloto rodado por Dowling na Biblioteca da UFPB, entre os longas do Recife e o curta de Acauã, tive o desprazer de ver algumas daquelas minhas telas dispersas em várias salas do edifício. O que não deveria me parecer novidade, pois nem morri e já tenho uma pilha de livros esquecidos, peças nunca mais montadas, ... quadros naquela situação.
Que fazer? Dizer: C´est la vie.