Escritor, poeta, romancista, artista plástico, compositor, dramaturgo, ator, ensaísta, esteta: em Waldemar José Solha a versatilidade é os...

Um artista cósmico

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Escritor, poeta, romancista, artista plástico, compositor, dramaturgo, ator, ensaísta, esteta: em Waldemar José Solha a versatilidade é ostensiva, ainda mais porque ocorre de forma orgânica: sua poesia é teatral, seu teatro é poético, sua ficção é plástica, sua pintura é ficcional, e assim por diante. Se isso impressiona, também o faz a sua grandeza, em todas as acepções da palavra. Refiro-me com isso a sua vasta temática e a rica expressão dela, ou para ser mais exato, ao modo grandioso como se casam. Erudito, enciclopédico, múltiplo, e ao mesmo tempo, inventivo e ousado, Solha não é apenas planetário, mas cósmico.

Para efeito de apresentação, aqui reproduzo trechos de uma entrevista que com ele fizemos tempos atrás, onde se ressaltam aspectos de sua trajetória artística e, sobretudo, o modo particular de ver a arte e o mundo desse paulista que virou paraibano.

Quando pequeno em sua Sorocaba natal, Waldemar José Solha costumava ouvir, com os irmãos, as histórias da Bíblia que lhes contavam o pai. Foi daí que nasceu o seu interesse por ficção e arte, o que veio a aumentar um dia quando descobriu a revista Epopéias que passou a colecionar, sacrificando o lanche para comprar os exemplares. Começou a trabalhar aos quinze anos e, à noite, estudava pintura. Aos dezenove viveu séria crise existencial que o fez "abandonar qualquer veleidade artística" e decidir então estudar contabilidade. Aos 21 anos passou no concurso do Banco do Brasil e como só havia vagas no sertão nordestino, do qual nada conhecia, escolheu Pombal "por causa da música "Maringá". E aí começou a sua história com a Paraíba e também o seu "retorno definitivo" às artes, que ele conta da seguinte forma:

“Tomei posse em Pombal em 1962, lá me casei e tive filhos. Tudo ia bem no melhor dos mundos possíveis, quando comecei a ter uma série de sonhos muito fortes envolvendo a figura de Cristo. Impressionado com um deles, narrei-o por escrito. Mostrei o texto ao José Bezerra Filho — um colega que começava a escrever — ele se empolgou e insistiu que eu também devia fazer literatura, mandando meu "conto" para o professor Antônio Serafim do Rego seu amigo da capital — que também se pôs a instar comigo para que escrevesse mais. Perdi meu sossego de vez.”

W. J. Solha (esq → dir: 5º); José Bezerra Filho (dir → esq: 1º)
"Diante da ignorância do assunto" passou um bom tempo dormindo três horas por noite para poder conhecer todo o Shakespeare, Homero, Virgílio, Dante, Cervantes, Camões, o teatro grego, os clássicos russos, americanos, franceses, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Ariano Suassuna, os filósofos e toda a história da arte com que se deparasse. Dessa época vem sua paixão por enciclopédias. Em 1968 escreveu sua primeira peça de teatro, O vermelho e o branco, "a pedido de um novo colega" — Ariosvaldo Coqueiro — que fazia teatro em João Pessoa e tomara posse no Banco, trazendo uma série de reportagens sobre a morte do estudante Edson Luís no restaurante da Universidade, no Rio - fato que provocou o AI-5 e toda sua repressão. Pela primeira vez, então, ele subiu num palco. A peça fez sucesso, inclusive no Festival Nacional de Teatro de que participou em João Pessoa, embora o texto acabasse proibido pela censura 'por ferir a dignidade da pátria e ser capaz de sublevar os ânimos da juventude"".
No ano seguinte, Solha escreveu, dirigiu e interpretou o curto espetáculo O crânio do boi Acauã no esqueleto do Angico, para uma única apresentação numa festa da cidade, e meteu-se numa confusão envolvendo exército e pistoleiros, por causa de um caminhão-caçamba que possuía na época, inclusive, "um pistoleiro foi preso quando viajava para Pombal a fim de matá -lo".

Nos anos 70, Solha e José Bezerra fizeram uma verdadeira revolução cultural em Pombal e vizinhanças, que se alastrou a outros cantos do Estado, mas claro, nada comparável à empreitada de fundar uma Companhia Cinematográfica, a Cactus Produções cinematográficas Ltda, e de realizar o primeiro longa-metragem de ficção em 35 mm na Paraíba. O filme O salário da morte era baseado no romance Fogo, de José Bezerra, e tinha o aclamado cineasta Linduarte Noronha. Lamentavelmente o salário não alcançou sucesso de público ou crítica.

Arrasado pelo prejuízo financeiro e artístico do filme, Solha resolveu se isolar para escrever "algo que tivesse peso" e, dois anos depois, apareceu o seu primeiro romance, Israel Rêmora, que em 1974, ganharia o Prêmio Fernando Chinaglia, e no ano seguinte seria lançado pela Record, no Rio de Janeiro, sendo muito bem aceito pela crítica. Naquele mesmo ano, o segundo romance A canga, arrebanharia o segundo prêmio Caixa Econômica de Goiás, vindo a ser publicado mais tarde pela Editora Moderna.
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E desde então Solha não parou mais: um romance após outro, e no meio, uma peça de teatro, ou um texto para música, ou um quadro, ou muito mais de cada uma dessas coisas.

Considerado um escritor polivalente, que tem mexido com várias modalidades de arte, Solha discorre sobre o assunto:

“Todas as artes giram em torno da produção de imagens. Comecei com a pintura, a mãe de todas, mas a imagem em movimento é apaixonante demais. O teatro é um trabalho intenso de composição visual. E a literatura tem esse dom magnífico de produzir imagens virtuais, provocadas pelas palavras na mente de cada leitor. A música é também, toda ela, imagem. Por isso parece-me óbvio que um artista transite com relativa facilidade por todas as formas de expressão. Isso era regra na Renascença - vide Leonardo e Michelangelo.”

Naturalmente, todas essas formas de expressão interagem no trabalho de Solha e sua literatura, por exemplo, está mesclada das marcas das outras artes. Ele ilustra isso e muito bem a respeito de seu primeiro romance:

“Quando fui escrever o Israel Rêmora usei a 'montagem de atrações' do cineasta russo Sergei Eisenstein. Eu tinha os contos - capítulos em que usava a terceira pessoa, e tinha alguns versos escritos sempre na primeira pessoa e criados bem antes, sem qualquer intenção de produzir um romance com eles. Como Israel Rêmora é muito autobiográfico e os poeminhas eram muito pessoais, foi só colocar cada capítulo seguido de um deles e o fenômeno se processou: meus versos passaram a ser de meu personagem, passaram a ser monólogos dele, registros de sua reação a cada evento relatado em prosa.”

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Artista consciente de seu fazer, Solha defende uma teoria pessoal do romance e das artes, pois sabe muito bem até que ponto, no terreno da criação, teoria atrapalha ou ajuda.

“Acho que a leitura dos teóricos me ajudou a chegar ao primeiro romance. Mas ao chegar a ele, fiquei apavorado: 'Isto é um romance?' Só ao ler 'O jogo da amarelinha' entendi que tinha acertado. Aquela coisa de Cortázar dizer que o romance é onívoro. Fiquei-lhe tão grato que lhe fiz várias homenagens no Israel Rêmora. Quer dizer, eu não tive teoria que me orientasse quando chegou minha vez de criar. O mesmo aconteceu com 'A verdadeira estória de Jesus'. Forçado pela narrativa - aquela identidade una e múltipla que revelava Jesus, Super-Homem, Édipo,
Branca de Neve, Moisés, Krishna, etc, etc - como um arquétipo só pensei - para que contar que o super-bebê é o único que escapa da explosão de Kripton, se posso pedir ao editor que me autorize a reproduzir a página da história em quadrinhos em que se lê e se vê isso? Ele me autorizou também a reproduzir uma página de uma de minhas velhas Epopéias, a que continha a lenda de Siegfried, onde a Valquíria Brunhilda ressuscita quando o herói a beija, tal como acontece com a Branca de Neve, tal como acontece com a Bela Adormecida, tal como acontece no sonho falsa mente premonitório de Romeu. Resultado: Affonso Romano de Sant'Anna fez um artigo em que revelava que meu livro entrara no esquema carnavalizante da literatura teorizado por Mikhail Bakhtin, que eu jamais havia lido. Por isso tudo, não tenho uma teoria — ao que eu saiba — literária. Tenho uma geral, para todas as artes que se resume nisso: arte é a capacidade de se resolver problemas estéticos. Gênio, a de resolvê-los genialmente.”

O leitor da ficção de Solha constata um escritor obcecado com as mesmas situações ficcionais em vários de seus romances e ele se justifica a contento, nos dando o banho de cultura que faz parte de sua vasta e rica formação, e nos brindando, de sobra, com um conceito de estilo.

“Aquela massa muscular em Miguelângelo, tanto em homens como em mulheres, era algo assim. Todas as figuras de Giotto parecem irmãs. Como as nove sinfonias de Beethoven. Alguém já disse que todos vivemos reescrevendo o mesmo livro, tentando dizer algo que parece não querer sair. Edward Hopper passou a longa vida dele toda pintando a solidão. Podemos reduzir a obra dele, por isso mesmo, a quatro ou cinco telas, ou talvez uma só bastasse: Os noctívagos que, aliás, já tinha sido 'dita' pelo Absinto de Degas. Parece que isso - feliz ou infelizmente - é que faz o estilo: essa limitação".

Sobre o tema tão polêmico de a arte ter, ou não uma função, Solha não hesita. Ele acha, sim, que a arte tem uma função "e muito perigosa". E explica:

“todas as religiões são obras de poetas. Lá está Homero para os gregos, cá estão, para nós, os Salmos de Davi, o belíssimo Eclesiastes atribuído a Salomão, e por aí vai. Jung dizia que religião, arte, sonho, vêm tudo de um canto só. E temos o caso do nazismo e o enorme apoio que recebeu - com as melhores intenções da cineasta Leni Refenstahl. E o curioso é que, justamente pelo fato de Jung estar certo, é mais fácil encantar o leitor com o espectro em Hamlet e com o milagre de Josué parando o sol, do que negando qualquer coisa desse tipo”.

Sobre o prazer de ler e escrever, diz Solha:

“São prazeres completamente diferentes. Quando leio o que tenho diante de mim são dois, três, dez anos do trabalho de um autor num livro, sorvidos num dia só, às vezes. É uma carga extraordinária. Já o escrever é lento. É um processo cumulativo em que você começa com uma antevisão de algo vago que deve ser um grande livro, faz um esboço, trabalha-o, escreve-o de novo, de novo, de novo, de novo - até um ponto em que sente que chegou ao máximo do que pode fazer... e aí diz, como Van Eyck, ao assinar seus quadros: 'Faço o que posso'.
Texto constante do livro Paraíba na Literatura II, publicado pela Editora A União, em março de 2021


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  1. Maravilha, João Batista, beleza, Romero. A Paraíba me fascina por ter gente como voces.

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  2. Parabéns João Batista de Brito !!
    Foste na realidade um Excelente " Biógrafo de Solha🤜💥🤛
    Parabéns👍👍👍
    Paulo Roberto Rocha

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  3. Solha é um talento múltiplo, polimorfo; um questionador e um criador irrequieto, que atua em vários domínios da Arte. Louvo a sua erudição e a sua elegância, que complementa o artista e concorre para compor-lhe o íntegro perfil.

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