Quando o maestro José Alberto Kaplan ficou paraplégico (em virtude da siringomielia que terminaria por derrubá-lo em 2009), passei a levá...

Da música erudita

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Quando o maestro José Alberto Kaplan ficou paraplégico (em virtude da siringomielia que terminaria por derrubá-lo em 2009), passei a levá-lo em meu carro, todas as manhãs de sábado, à residência de seu grande amigo – logo meu, também - advogado Dr. Paulo Maia -, dono da maior coleção de LPs, vídeos, CDs e DVDs de música erudita da Paraíba. Era um hábito do amigo judeu argentino – de quem eu fora parceiro na Cantata pra Alagamar e no musical Burgueses ou Meliantes - , que vinha de décadas. Tomando um bom gin com tônica (“a bebida da rainha”, dizia o Dr. Paulo) , vendo o mar logo ali, atrás da vidraça, era incrível, naquelas sessões matinais, não só acompanhar as riquíssimas programações de grandes concertos em som e imagem de alta fidelidade, como absorver algo da vasta cultura musical dos dois e dos outros frequentadores, os benditos poucos, the happy few, band of brothers: jornalista Luiz Carlos Nascimento Souza, Yerko Pinto – então spalla da Sinfônica local e integrante do prestigiado Quinteto Paraíba, além de Hector Rossi - que fora professor de contrabaixo de meu filho Alexei Dmitri (1966-2017), mais o ex-governador Tarcísio Burity (1938-2003) que, em tempos áureos, não só construíra o gigantesco Espaço Cultural José Lins do Rego da capital,

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como conseguira – extravagantemente - transformar a sinfônica da Paraíba na melhor do país, na época, com muitos músicos importados, como o próprio Yerko, chileno, e Hector Rossi, argentino, tudo sob a regência de Eleazar de Carvalho – que dividia seu tempo entre João Pessoa e Nova Iorque. Burity tinha as obras completas de Mozart e Bach, dos quais nos fornecia, vez em quando, algumas gravações raras, ele sempre acompanhando aquelas nossas audições... nas partituras. Secretamente compunha, assinando T. Virgilius.

A grande cultura de Luiz Carlos incluía a musical. Fizera parte do coral da UFPB, sob regência do Kaplan, anos antes, quando criamos – em 78 - a Cantata em torno do trabalho do arcebispo Dom José Maria Pires pela Reforma Agrária. Eu... , bem, tive a sorte de escrever os libretos – entre outros - dessa obra, o do Oratório Via-Sacra da Prof. Ilza Nogueira, o do Réquiem Contestado e o do concerto Os Indispensáveis, mais o da primeira ópera armorial - Dulcineia e Trancoso -, de Eli-Eri Moura – que fora aluno de Kaplan, e, em 2011, nos meus 70 anos, a Cantata Bruta – de Eli-Eri e de mais cinco integrantes do grupo COMPOMUS, da UFPB - , foi feita em cima de contos curtos, meus, sobre a violência urbana.

- Burity – perguntei-lhe numa daquelas manhãs, - se tivesse de levar uma única música para uma ilha deserta, qual seria?

- O segundo movimento do Concerto número 21, para piano e orquestra, de Mozart.


Curioso: não o concerto, apenas o andante. Um de meus ensaios se chama Em Arte, o Todo é Sempre Menor do que sua Melhor Parte. Mas ... discordei dele. E, comigo, o Luiz Carlos: melhor que o de Mozart, em nossa opinião, é o também segundo movimento do Concerto número 5 de Beethoven, para piano e orquestra, por sua mais densa, mais intensa beleza.

Compare os dois no YouTube.

Opinião é algo complicado. Começo Trigal com Corvos - meu primeiro poema longo, dizendo ao leitor:

Se não me quer tudo bem. Afinal também sou louco por arte mas o Guernica não me tem entre seus fãs nem Machado de Assis e Brahms.


Johannes Brahms era a paixão maior do nosso anfitrião, Dr. Paulo! Tanto, que pintei um retrato do alemão pra presenteá-lo . E, também, o de sua outra devoção, da qual, felizmente, compartilho: Rachmaninoff.

O nome Johannes me leva ao dia em que ouvi pela primeira vez, há coisa de ... meio século, o Erbarme Dich, da Paixão Segundo São Mateus, de... Johann... Sebastian Bach. Ao passar do ateliê de pintura para a oficina de cerâmica de Miguel dos Santos, notara que, sobre a porta, em lugar do calvo Picasso estava alguém com cacheada peruca.

- Novo patrono?

- Foi o maior gênio de todos os tempos!

Insistiu tanto, que levei pra casa o LP, que ouvi pela primeira vez na manhã seguinte e de um modo insólito: pressionado entre os expedientes no Banco do Brasil e minhas horas de literatura, parei o fusca na feira, Ione desceu, fechei os vidros, abri a tampa de plástico do toca-discos , liguei-o e botei a agulha nos sulcos. A entrada do violino foi tão... tranquila, que me recostei no assento, fechando os olhos. Mas o que parecia repousante, ganhou angústia e, quando a contralto começou a cantar, abri os olhos, e vi que tudo: a rua, os feirantes, fregueses – me pareceu... muito infeliz. Dias depois transformei isso num curta-metragem – O Efeito Iôrran - rodado em Super-8, bitola, da época, para exercícios de filmagem.

Assim, mais uma vez, Em Arte, o Todo – no caso, A Paixão Segundo São Mateus – me parecia Menor do que sua Melhor Parte: o Erbarme dich.

Ainda me lembro da satisfação com que o Dr. Paulo buscou num de seus catálogos e, em seguida, tirou da estante a Missa da Coroação, de Mozart, regência de von Karajan, gravada na Basílica de São Pedro, Roma. Ficamos todos mesmerizados com a química – quase de romance - entre o maestro e sua magistral solista, soprano Kathleen Battle, no Agnus Dei.

Pode-se ver isso, também, no YouTube.


Por contraste, ela se revela soberbamente cavilosa na ária Una Voce Poco Fa, da ópera Barbeiro de Sevilha, de Rossini.

E já que falamos de flerte, igual é o clima de Marsalis ao acompanhá-la com o trompete no belíssimo Eternal Source of Light Divine, de Händel.

O bendito YouTube: tem tudo, hoje, menos o gin e os diálogos, que tínhamos em casa do Dr. Paulo.

E chego a Purcell. Quando vi o filme England, my England, fui surpreendido pela sublime beleza da Música para o Funeral da Rainha Mary, e pela minha inquietação: “Já ouvi isso!” Claro, era a trilha de abertura do Laranja Mecânica. Kubrick é mestre desses anacronismos que funcionam. Como quando usou o majestoso Assim Falava Zaratustra – composto por Richard Strauss em 1896 - na abertura de 2001.


E essa vinculação estranha me faz pensar no quanto Rhapsody in Blue, de Gershwin - com estreia em 1924, fundindo jazz e música erudita -, abriu caminho para a inesquecível dança com terno, gravata, guarda-chuva e chapéu, de Gene Kelly , em 1952. A Rhapsody é, talvez, a composição mais... cheia de vida que conheço. É ... estonteante, a partir do belíssimo solo de clarinete com que começa a obra, como você pode ouvir na abertura antológica do Manhattan, de Woody Allen.

Eu, que fui bom datilógrafo – ou não teria entrado no Banco do Brasil em 62 - , assisti, rindo muito, ao concerto A Máquina de Escrever - do americano Leroy Anderson – de 1950, bem nesse espírito terno-e-gravata, quando o vi interpretado por... Jerry Lewis, no filme Errado pra Cachorro, 1963.

Aliás, os clássicos podem ser bem divertidos. Rossini, o do Una Voce poco Fa, acima, criou um Dueto dos Gatos – ou Dueto Cômico dos Gatos – para dois sopranos. Mas nenhuma das matronas que já vi cantando isso querendo inutilmente causar riso, chega aos pés destes dois garotos. Dê uma olhada:


Kubrick. Acho que foi por ver clássicos se tornando trilhas sonoras do futuro em seus filmes, que me pareceu ver, na primeira parte do Concerto Brandenburguês número 3, de Bach, três tentativas de, circulando-nos, fazer com que entremos numa espécie de buraco negro, o que só vai acontecer – mais ou menos - aos dois minutos e quarenta e oito segundos. Vi isso ampliado na Abertura 1812, de Tchaikóvsky , em que o cerco ao fundo do poço acontece a partir da Marselhesa – Napoleão invadindo a Rússia - , por volta dos 11 minutos e 50 segundos, o vórtice acompanhado de tiros de canhões, enquanto se vai descendo, descendo o som, em círculos, até que se chega ao limite ao redor dos 12:35 quando, imediatamente, irrompe a grande alegria cheia de repiques de sinos russos, da vitória.

João Moreira Salles, em seu documentário... perfeito... sobre Nelson Freire , mostra a dívida que nosso grande pianista tem com Guiomar Novaes, quando o põe ouvindo - e executando como ela - a curta e tocante Dança dos Espíritos Benfazejos, de Gluck.


Tive infância e adolescência sem TV. Ao descobrir as óperas, concertos, sinfonias, cantatas, procurava tudo pelo rádio, sempre que podia. Tinha pai, mãe, duas e irmãs e um irmão disputando os aparelhos, que ficavam ligados o tempo todo em alguma novela, repórter Esso, PRK 30. Mas minha mãe reservava para mim a meia hora diária que eu tinha para o almoço em casa e, aos sábados à noite, uma hora – sintonizado nas emissoras 9 de Julho ou Eldorado. Eu chegava do centro da cidade, onde trabalhava no escritório da loja de eletrodomésticos Lauro Miguel & Cia, de sírio-libaneses, Dona Ermelinda perguntava, botando meu prato, ao me ver entrar, cobrindo o som do velho rádio Pilot ligado na sala:

- Que ária é essa, de que ópera, de quem, e quem está cantando?

Eu lavava as mãos respondendo:

- ... Recondita harmonia, Tosca, Puccini, Mario Del Monaco.

- ... É o Coro dos Ferreiros, Il Trovatore, Verdi.

- ... é a Maria Callas no Casta Diva da Norma de Bellini…

Callas! Fazia-me bem aquela voz serena, sem marcas de impostação da maioria das sopranos.

- Doutor Paulo? E ópera?

- Non me piace

Burity:

- Gosto muito. Principalmente das de Mozart.

Sim, a ária A Rainha da Noite é poderosa. Não dá pra esquecê-la em A Flauta Mágica, de Bergman, no Amadeus, de "Miloš" Forman.


Eu estudava pintura à noite, em Sorocaba, num ateliê anexo a um conservatório musical. Meu professor – Flavio Gagliardi – era, também o de um tenor, filho do dono da sorveteria em frente, e eu pintava toda noite ouvindo os dós sustenidos do rapaz. Quando viajei de Pombal pra Sorocaba em 64, em minhas primeiras férias do BB, passei diante do Teatro Municipal de São Paulo e vi que o filho do sorveteiro era o Duque de Mântua do Rigoletto, de Verdi, em cartaz. Fui conferir a coisa e vi o inesperado: a maior ovação para o mais curto recitativo que conheço, o do vilão - o muito sinistro Sparafucile, quando ele se apresentou, envolto em roupas negras, ao bufão, com sua tremenda voz de baixo fazendo o teatro tremer, na última sílaba:

- Mio nome... è... Sparafuci .... leeee!

Trocando e-mails com o poeta e tradutor Ivo Barroso , colega do Banco do Brasil – só que de carreira internacional - fiquei sabendo que viu parte das filmagens do belíssimo Todas as Manhãs do Mundo, de Alan Courneau, quando trabalhava na França. Contou-me detalhes do que testemunhara nos arredores de Paris - brigas, por exemplo, entre Gérard e Guillaume Depardieu, pai e filho que faziam o Marin Marais maduro e o compositor quando jovem , e me esclareceu esta dúvida:

- Ivo, quando vi o solo de viola da gamba – antepassada do cello - , em que o jovem Marais é testado pelo velho Sainte Colombe , fiquei deslumbrado... mas o mestre se recusou a lhe dar aulas, dizendo que ele não era músico! Qual o problema, que não percebi?


- Despeito. Basta dizer que quem executa a música como se fosse Guillaume Depardieu é Jordi Savall, uma sumidade de quem tenho vários discos!

Você pode ver esse breve solo do filme no... YouTube.

Todas as Manhãs do Mundo. O Mestre da Música. Amadeus.

Que seria do cinema sem a música? Um dos mais belos filmes que conheço é o genial documentário sobre a loucura que é o mundo contemporâneo: Koyaanisqatsi – de Godfrey Reggio - com três grandes trunfos: essa visão da nossa realidade, a fotografia magnífica, ... e a trilha sonora – minimalista - de Philip Glass.

E que seria do belo “faroeste italiano” de Sérgio Leone – Era uma vez, no Oeste – sem a trilha sonora de Morricone?

Quanto me soava misterioso, na juventude, o nome de Miklós Rósza, com suas criações para grandes épicos, como Ben-Hur e El Cid! Aliás, minha paixão pela música erudita começara aos 11 anos, quando colecionei uma revista em quadrinhos de grande porte, só de épicos, Epopéia, em cuja quarta capa havia, sempre, a reprodução de um quadro célebre e, na terceira, o resumo de uma ópera.

Inesquecível a “Cavalgada das Valquírias”, de Wagner, nos alto-falantes dos helicópteros americanos atacando um vilarejo do Vietnã – como faziam as velhas cavalarias aos índios do oeste - em “Apocalypse Now”!


Mas, embora ache “Spartacus” uma das obras-primas de Kubrick, a trilha sonora de Alex North não tem a beleza e força do Spartacus de Aram Khachaturian.

Os russos!

Deslumbrante a música de Prokofiev para o balé Romeu e Julieta, principalmente na Dança dos Cavaleiros, quando o casal de jovens se vê pela primeira vez e... perdidamente... se apaixona. Belíssima, a coreografia de Nureiev.

E que dizer d´ A Sagração da Primavera, de Stravinsky? Há muitas outras coreografias dela no YouTube, mas a de Pina Bausch é impressionante. O rito de iniciação à sexualidade feminina!

- Alô, Kaplan, já viu que estamos em 1991, a exatos 200 anos da morte de Mozart?

- Estou justamente procurando algo para uma aula especial sobre ele.

- Acabo de ler De Segunda a um Ano, o livro muito louco do John Cage, em cujo prefácio Augusto de Campos diz que Mozart criou um sistema em que 176 compassos numerados podem ser utilizados para uma infinidade de músicas, a partir de constantes sorteios com dois dados.

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- É mesmo?!

Kaplan, nessa homenagem, criou com seus estudantes várias músicas nesse sistema, graças ao Eli-Eri , que – bem depois de criar as trilhas sonoras de minhas peças A bÁtalha de Ol contra o gÍgante FERR e A Verdadeira Estória de Jesus - estava no Canadá, fazendo mestrado e doutorado de composição.

Cinco anos depois, Eli-Eri me pediu intervenções em português no Réquiem Contestado – com textos litúrgicos em latim – que pretendia compor. O concerto – impossível não lembrar o equivalente mozartiano – eu considero o melhor que ele já fez. De minha parte, o que me permanece memorável é o trecho latino:

Quantus tremor est futurus, quando judex est venturus, cuncta stricte discussurus!, com minha “tradução” em seguida: Quanto temor No futuro, Quando estiver Tudo escuro E Deus chegar, Ódio puro!

Por oposição, lembrei-me agora do Adagietto da 5ª. Sinfonia de Mahler – a mais... diáfana composição musical que conheço – dando vida aos momentos mais pungentes do Morte em Veneza.

Mas foi a Prof. Ilza Nogueira que me proporcionou uma das mais gratas surpresas, quando, ao me pedir versos de cordel para as estações da Via-Sacra, em 2005, colocou-os em partituras de Beethoven, Alban Berg, Stravinsky, etc, etc, e... Mahler, com cuja Ressurreição “vestiu” meu último poema do espetáculo.

Vivi grande comoção quando, no final dos anos 80, fui com meu grupo de teatro apresentar uma de minhas peças no Festival de Inverno de Campina Grande. Ficamos hospedados em algo como um convento e, de manhã, ao darmos com o refeitório fechado, acabamos entrando na única porta que encontramos aberta. Um dos atores localizou uma serafina (harmonium) , sentou-se ante o teclado e, cercado pelo grupo (todos ex-integrantes do coral da UFPB, regido por Kaplan e Eli-Eri) começaram a cantar o Ave Verum de Mozart. Um frade que entrou apressado, em seguida, tirou as palavras da minha boca: - Pensei que fossem anjos!!

Ô, mas há grandes emoções com coisas bem ... terrestres, cotidianas . Cecilia Bartoli arrasa com o solo Sposa son Disprezzata, da ópera Bajazet, de Haendel. A frase final – la mia speranza – é indescritível.

Já os anos 20, do século XX, foram marcados pela canção – Mack the Knife - Die Moritat von Mackie Messe – da Ópera dos Três Vinténs, de Brecht/Weill, e digo isso porque Kaplan me ligou numa noite perto do final de 82, dizendo que a UFPB queria o coral - que ele regia -, cantando músicas natalinas nos bairros mais pobres de João Pessoa.


- Mas já pensou cantar Jingle Bell e O Christmas Tree lá em Marés? Não dá pra v. mudar as letras pra alguma coisa na linha de Brecht?

- Que é que você quer pra amanhã?
- Noite Feliz.
- OK. Terá uma Noite Infeliz.
No dia seguinte:
- E pra amanhã?
- O Christmas Tree.
- Vai ter O Triste mais Triste.

Bem, como pôr fim a esse tema infinito?

Uma opção: meu primeiro dia de expediente na agência do Banco do Commércio e Indústria de São Paulo, em Sorocaba. O subgerente me apresenta, rindo, o chefe do setor Cobrança, com quem eu iria trabalhar por um ano, antes de vir pra Paraíba:

- Este é o Sidney Sinfônico.

Logo vi a razão do apelido: trabalhava o tempo todo simulando, com a boca, algum concerto. Num dado momento, pergunto:

- O que está “tocando”, Sidney?

- O que ouvi na sexta feira santa, quando Cristo morre, na dramatização da Rádio Nacional do Rio. Escrevi pra lá, perguntando de que se tratava. É “A Catedral Submersa” do Debussy.


Nesse momento, um dos dois caixas da agência – barítono – começa a cantarolar, lá na frente, um trecho da Carmen, de Bizet: - Toreador, en ga-aa-arde, Toreador, toreador!

Segunda opção: meu pai mal falava comigo. Vim ao mundo num mau momento para ele, “no miserê do tempo da guerra”. Tudo diplomaticamente captado, até a manhã de domingo em que eu ouvia, no seu rádio Pilot (que era muito bom ) a sinfonia 40, de Mozart, quando ele chegou da missa , fulo:

- P... que la merda: estou escutando esse escândalo desde a esquina!

Desliguei o aparelho, fui ao meu quarto, continuando a obra na memória, liguei o rádio – muito ruim – ao lado da minha cama – ouvindo minha mãe interceder a meu favor (“Ele só tem o domingo para isso!”), e ele me esculhambando, o som do rádio falhando, minha memória continuando a sinfonia, até que tudo desandou e, enlouquecido, dei um murro no rádio, que se calou de vez. Tirei o punho dentre as válvulas, vendo meu pai entrar.

- O que foi isso?

- Não se preocupe: eu pago o prejuízo.

Saí do quarto, cruzei a sala, fui para a rua, sentei-me debaixo de um cipreste do vizinho. Não demorou e meu pai se aproximou, calmo. Falou-me em São Francisco dormindo junto a um crânio, pra não se esquecer de que tudo é pó. Eu não tinha a religiosidade dele, mas entendi o que se passava e passamos a ser amigos. Quando fui a seu enterro, em 92, dei uma entrada, na volta, pelo Museu de Arte de São Paulo, tão importante na minha adolescência, revi telas de Portinari, van Gogh, ... e, ao me deter diante do São Francisco de El Greco ante o hamletiano crânio, senti, literalmente, um murro no estômago.

Terceira opção: meu irmão, com sua farda de guarda-civil de São Paulo, me recebe na estação rodoviária – porque eu era menor de idade – e me leva ao Teatro Municipal para os Concertos da Juventude – aquele que eu ouvia pelo rádio, quando meu pai estourou – para ver a “Morte do Cisne”, de Saint-Saëns, dançada por uma iugoslava - de cujo nome não me lembro - com a célebre coreografia de Mikhail Fokine – o que me daria um mês de paz.

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