O Afeto era jovem e belo, talvez um pouco triste... e, passando para além de suas serras, encontrou a Criatividade, com um sorriso maroto....

O afeto e a criatividade

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O Afeto era jovem e belo, talvez um pouco triste... e, passando para além de suas serras, encontrou a Criatividade, com um sorriso maroto. “O afeto está sempre à deriva” (Lacan). O amor estendeu o laço e o irmão autorizado abençoou. A simplicidade foi convidada para juntos, constituir uma família, baseada nos princípios morais e religiosos. O acordo assinado incluía a felicidade do estar junto, dividir um sonho, não querer o que além do possível fosse... “A sabedoria não existe na razão, mas no amor” (André Gide).

Conciliaram tranquilidade com agitação, sensibilidade com racionalidade, calma com energia, acomodação com trabalho, aceitação com insistência, meiguice com cuidado, seriedade com brincadeira, sesta com disposição, negação com planejamento, expedientes regulares com serões na costura... dois opostos que, pacificamente, seguiam o curso dos dias.

O equilíbrio conquistado perdia seu poder em agosto. E, Afeto sussurrava ao vento: “agosto é o mês do cachorro louco”... e com uma frase apenas, expressava seus temores: a raiva (hidrofobia), transmitida pelos cães e a morte, que espreitava os longos trinta e um dias do mês. O ar pesava no seu entorno, longos suspiros davam lugar a um olhar desconfiado. As lembranças melancólicas eram revividas, o relatório das perdas ocorridas no mesmo período eram repassadas, nome a nome. A maior e mais dolorosa, a mãe do Afeto. A dama dos brincos de brilhantes e pulseiras de ouro... de uma docilidade sedutora e um poder de convencimento impressionantes. Sua vaidade conhecida pelos familiares e vizinhos. Uma lady com pantufas de veludo, e muita coragem de viver. A cada crise hipertensiva que sentia, com um estilete fazia uma “sangria”, antes do Dr. Dias chegar para socorrê-la. Em seguida, pedia à secretária que corresse com o “rouge e o baton”, para que ninguém a visse pálida e abatida. “A vida sem vaidade, é quase insuportável” (Liev Tolstói).

Em meio às recordações, o olhar saudoso do nosso Afeto, se perdia no nada, e frequentemente o respirar se tornava insuficiente... advindo assim a tal “falta de ar”. O pânico era generalizado, alguém se apressava para levá-lo para a varanda, outro providenciava uma capa de disco de vinil para “abanar”, e traziam o milagroso “chá de erva doce”.

A insegurança após o evento, se fazia presente, afinal todos os irmãos eram cardíacos. E como setembro tardava a clarear o horizonte... “Todo querer se origina da necessidade, portanto da carência, do sofrimento! ” (Shopenhauer).

Um acontecimento diluía o “peso da premonição trágica”, os cinco dias da Festa das Neves, e a tarefa de levar as filhas todos os dias. Findo este interlúdio, o tempo voltava a nublar, e tudo que se queria fazer: só quando o mês acabasse, e a tranquilidade voltasse a reinar.

“O homem teme a morte, não porque ela vá doer, mas porque sua expectativa dói” (Epicuro).

Enquanto isso, Criatividade alertava a sua prole: “Todo dia tem que ter o seu plano, se não existir, a vida perde o sentido”, e com sua habilidade transmudava retalhos em colchas, linhas em toalhas, vestidos lindos, com muitos detalhes, para mulheres pouco dotadas, sorrirem satisfeitas no espelho. E plantava hortênsias, caso não se adaptassem, trocava por rosas vindas de Roselândia em São Paulo, se o mesmo acontecesse, substituía por lírios e indefinidamente os fracassos se tornavam terreno propício para novas ideias. A renovação constante, obtida através de muitas horas debruçada na máquina de costura, e posteriormente com agulha de croché, e bordados de Richelieu. Para cada execução, o valor empregado na realização de um desejo, seu “cuidar” se estendia solidariamente a todos...

Criatividade é uma capacidade humana, de transformar, tornar belo o disforme, de colorir o tédio, de surpreender o lógico, de atrair o interesse outro.

Provavelmente, conseguia tirar a atenção de Afeto, e esse movimento acontecia também no oitavo mês do ano. A associação popular “ agosto mês do desgosto”originou-se na Roma Antiga, com a convicção de que “no mês de agosto, um dragão cuspindo fogo surgia no céu”. Na verdade, ele espalhava angustia nessa casa... “A angústia tem inegável relação com a expectativa: angústia por algo. Em linguagem precisa empregamos a palavra “medo”, de preferência a “angústia”, se tiver encontrado um objeto” (S. Freud).

Afeto era só ternura, até para caminhar se movimentava suavemente, o tom da voz não se alterava, suas mãos longas e bem desenhadas sempre procuravam um toque carinhoso... sua presença era de paz, tão etéreo que suscitava cuidado, tão frágil nas emoções que, nem tudo lhe era contado, não teria condições de enfrentar dificuldades terrenas.

Seu caráter nobre e seu estilo de vida inibiam o padre de confessá-lo, por não sentir-se em superior condição espiritual. Puro como o mais caro brilhante, simples como um franciscano, intenso nos sentimentos.

De tanto viver mais a emoção do que a razão, de portar uma história familiar de males cardíacos, por mais proteção que tivesse, um belo dia, porque era um dia de janeiro, ensolarado, com toda luz, partiu Afeto para seu lugar original, o céu.
A escadaria do Centrocor acolheu um terço atirado ao longe pela filha... um momento de questionamento de fé, um instante de revolta, um luto quase impossível de transpor. Houve um silêncio e uma apatia para Criatividade. Afinal, eram tão unidos, que sobreviver sem Afeto, seria viver pela metade... chorou as lágrimas da solidão e da incredulidade, da saudade e adaptação a uma nova realidade.

“ Nosso mal está dentro da alma, e esta não pode fugir de si mesma” (Montaigne).

Costurou suas roupas pretas com sua própria dor, alinhavou a pontos largos sua resistência, apoiou-se no seu poder de fada criadora. Seu trabalho variava de foco, de reformar a casa, o jardim, auxiliar vizinhos, ajudar quem precisasse sem que ninguém soubesse... presente em todos da família e para cada um, sua palavra, seu ato.

“Por mais insensato que possa parecer, todo ato tem um sentido, uma história e expressa um desejo ou um conflito que diz respeito à vida afetiva e às fantasias inconscientes de cada um” (Antônio Quinet).

Sempre muito ativa e saudável, pensou em preparar peças bordadas ou de croché para as netas, e sorria dizendo: “para não ser esquecida”..., mas de repente, o coração recém examinado e liberado pelo especialista, deu sinal... uma sudorese sem dor, um sorriso brincalhão para as enfermeiras, um elogio para a filha: “perguntem a ela, é o meu anjo”. O melhor médico, o hospital mais conceituado, entrou para um cateterismo, para nunca mais sair. Era agosto, dia 13, o anjo foi impotente, totalmente desprovido de asas..., mas Criatividade tinha “costurado” suas próprias asas com amor e dedicação, para tornar-se imortal.

“O tempo presente e o tempo passado, Estão ambos talvez presentes no tempo futuro, E o tempo futuro contido no tempo passado, Se todo tempo é eternamente presente, todo tempo é irredimível” (T. S. Elliot)

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  1. Ângela Bezerra de Castro22/8/21 20:50

    Sendo texto de uma Psiquiatra, imaginamos, pelo título, uma abordagem teórica. Mas Marluce nos conduz por uma narrativa de intensidade lírica, na qual Afeto e Criatividade assumem, por um recurso metonímico, o papel de personagens. É comovente o relato dessa memória afetiva, reconstituindo a bela interação de um casal, cujo cotidiano se harmoniza, mesmo em face das diferenças. Com o seu estilo de intercalar, nos textos que escreve, conceitos de grandes autores, Marluce vai impelindo o leitor a refletir e alcançar a densidade da sua temática. Um recurso que vai caracterizando seu modo de escrever. O que mais chama a atenção, nesse texto, é que Afeto e Criatividade vivem uma cumplicidade tão linda, que parece neutralizar a tristeza da morte.

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  2. A doutora Marluce nos dá aulas de psiquiatria usando exemplos, o que torna a matéria inesquecível.
    Ainda hoje me recordo das aulas de português do professor Aléssio Toni, graças às análises de letras das músicas com que ele exemplificava a gramática...
    Mais um testo rico. Parabens, Marluce. Estou desfrutando e aprendendo muito com você.

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  3. Cada crônica sua, uma surpresa!
    Gostei muito do tom poético, principalmente da composição do caráter dos personagens.

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