O Afeto era jovem e belo, talvez um pouco triste... e, passando para além de suas serras, encontrou a Criatividade, com um sorriso maroto. “O afeto está sempre à deriva” (Lacan). O amor estendeu o laço e o irmão autorizado abençoou. A simplicidade foi convidada para juntos, constituir uma família, baseada nos princípios morais e religiosos. O acordo assinado incluía a felicidade do estar junto, dividir um sonho, não querer o que além do possível fosse... “A sabedoria não existe na razão, mas no amor” (André Gide).
Conciliaram tranquilidade com agitação, sensibilidade com racionalidade, calma com energia, acomodação com trabalho, aceitação com insistência, meiguice com cuidado, seriedade com brincadeira, sesta com disposição, negação com planejamento, expedientes regulares com serões na costura... dois opostos que, pacificamente, seguiam o curso dos dias.
Em meio às recordações, o olhar saudoso do nosso Afeto, se perdia no nada, e frequentemente o respirar se tornava insuficiente... advindo assim a tal “falta de ar”. O pânico era generalizado, alguém se apressava para levá-lo para a varanda, outro providenciava uma capa de disco de vinil para “abanar”, e traziam o milagroso “chá de erva doce”.
Um acontecimento diluía o “peso da premonição trágica”, os cinco dias da Festa das Neves, e a tarefa de levar as filhas todos os dias. Findo este interlúdio, o tempo voltava a nublar, e tudo que se queria fazer: só quando o mês acabasse, e a tranquilidade voltasse a reinar.
“O homem teme a morte, não porque ela vá doer, mas porque sua expectativa dói” (Epicuro).
Enquanto isso, Criatividade alertava a sua prole: “Todo dia tem que ter o seu plano, se não existir, a vida perde o sentido”, e com sua habilidade transmudava retalhos em colchas, linhas em toalhas, vestidos lindos, com muitos detalhes, para mulheres pouco dotadas, sorrirem satisfeitas no espelho. E plantava hortênsias, caso não se adaptassem, trocava por rosas vindas de Roselândia em São Paulo, se o mesmo acontecesse, substituía por lírios e indefinidamente os fracassos se tornavam terreno propício para novas ideias. A renovação constante, obtida através de muitas horas debruçada na máquina de costura, e posteriormente com agulha de croché, e bordados de Richelieu. Para cada execução, o valor empregado na realização de um desejo, seu “cuidar” se estendia solidariamente a todos...
Criatividade é uma capacidade humana, de transformar, tornar belo o disforme, de colorir o tédio, de surpreender o lógico, de atrair o interesse outro.
Afeto era só ternura, até para caminhar se movimentava suavemente, o tom da voz não se alterava, suas mãos longas e bem desenhadas sempre procuravam um toque carinhoso... sua presença era de paz, tão etéreo que suscitava cuidado, tão frágil nas emoções que, nem tudo lhe era contado, não teria condições de enfrentar dificuldades terrenas.
Seu caráter nobre e seu estilo de vida inibiam o padre de confessá-lo, por não sentir-se em superior condição espiritual. Puro como o mais caro brilhante, simples como um franciscano, intenso nos sentimentos.
De tanto viver mais a emoção do que a razão, de portar uma história familiar de males cardíacos, por mais proteção que tivesse, um belo dia, porque era um dia de janeiro, ensolarado, com toda luz, partiu Afeto para seu lugar original, o céu.
“ Nosso mal está dentro da alma, e esta não pode fugir de si mesma” (Montaigne).
Costurou suas roupas pretas com sua própria dor, alinhavou a pontos largos sua resistência, apoiou-se no seu poder de fada criadora. Seu trabalho variava de foco, de reformar a casa, o jardim, auxiliar vizinhos, ajudar quem precisasse sem que ninguém soubesse... presente em todos da família e para cada um, sua palavra, seu ato.
“Por mais insensato que possa parecer, todo ato tem um sentido, uma história e expressa um desejo ou um conflito que diz respeito à vida afetiva e às fantasias inconscientes de cada um” (Antônio Quinet).
“O tempo presente e o tempo passado, Estão ambos talvez presentes no tempo futuro, E o tempo futuro contido no tempo passado, Se todo tempo é eternamente presente, todo tempo é irredimível” (T. S. Elliot)