I A cor amarela tem cheiro de infância. Luz, vida, inocência. Antes de me estabelecer na vida adulta, pensava que essa cor viesse do ...

Rupturas e frações do tempo de maturação das ideias

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I
A cor amarela tem cheiro de infância. Luz, vida, inocência. Antes de me estabelecer na vida adulta, pensava que essa cor viesse do Sol e que bastava estar acordado para compartilhar energia com todos nós. Nessa época, eu já experimentava o sabor das ideias em meu pensamento. No calor dos meus sete anos, comecei a organizar cadernos de escrita para desenhar, com letras, o brilho daquele Corpo amarelo. A cada desenho, o ânimo se renovava.

Lembro-me de bons e contraditórios momentos. Amigas, festas, adolescência. Tudo dentro do normal. Boa nota de comportamento em casa e no boletim preenchido à mão pela professora, mas nada se compara à cor amarela.
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Descobri que a história da minha vida não cabe na imensidão do Sol. É ínfima, pequena demais. Hoje, no calor da vida adulta, inspiro-me Nele para construir minha cotidiana renovação. Apesar disso, acordo, sigo uma rotina meio às avessas, termino o dia.

A sucessão de copio e colo é devidamente registrada em cadernos de processo, cheios de tons amarelos. A foto, a flor, a página rasgada de José de Alencar reforçam o tom. Não faltam ocasiões para o uso desta cor. Roupa, caderno de inglês, papel de scrapbook. Ouvi dizer que roupa amarela ajuda a fixar melhor o conteúdo estudado e esse foi o motivo pelo qual escolho usar o caderno de inglês da mesma cor. O papel de scrapbook é pano de fundo para o registro das memórias pessoais.

Meu gosto pela escrita teve origem na leitura de Clarice Lispector, a mulher que matou os peixes. Ali encontrei literatura, guardada na biblioteca de sala de aula da professora Sueli. O livro da capa verde chamou minha atenção. Não era novo, mas era intenso. Achei o máximo aquele começo com cara de final e nunca mais deixei Clarice. Gosto da linguagem diferente, que tira do eixo os incômodos de minha casa. Gosto de Clarice.

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A linguagem é o caminho que me leva a um território que é todo meu: o texto. Desde a infância, ouço discursos constituídos a partir de um "não pode". Guardei para minha vida o que pode e cheguei aqui. A posição de meu corpo em relação ao chão está bem definida. Criei um minidicionário poliglota por meio dos cinco sentidos: visão, tato, olfato, paladar e audição. Acrescentei o lifelong learning, foco e determinação. Guardo uma variedade de tantas outras palavras que meu faro apurado me permitiu captar. Ganhei identidade pessoal e linguística. Tenho cinco sentidos à flor da pele, movidos pela correria diária. Casa, trabalho, trabalho em dobro. Meu tempo sempre foi contado. Padaria em dez minutos, banco em meia hora e o resto do dia todo. Caminho, aprecio outras cores além da amarela, sinto gente. Foi assim que conheci Renato.

Oito e meia da manhã. Dois destinos encontram-se na esquina. A pressa diária provocou o choque de corpos e de olhares e rupturas com amores antigos aconteceu em fração de segundos. Foi um misto de empatia e paixão instantânea.
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Ignorei tudo o que vai no corpo e vi o rosto marcante com um sorriso largo e irresponsável. Fui para casa. Entrei na sala. Minha mãe e meu irmão em seus atos de repetição cotidianos. Acostumei a ver a mesma cena todos os dias, mas não me incomodo. A pele que habitamos tem vários compartimentos, como vemos nas plantas convencionais. Sala, quartos, cozinha, banheiros e outros intervalos e espaços em branco que preencho de amarelo e cores afins, enquanto eles repetem a si mesmos para fugir da realidade. Nossa pele é extensa e cor de pêssego por fora. Por dentro é decorada com a foto em que seguro no colo meu irmão Alex, quando éramos pequenos, em minha festa de aniversário. Na foto, ele tem menos de um ano. Aos cinco, ele rabiscou a foto e cobriu meus olhos. Atingiu, de forma afetuosa, um dos meus cinco sentidos. Na época, a pele que habitávamos era menor e azul e ficava em uma rua simples, onde brincávamos livremente igual borboletas. Dormi com recordações desse tipo.

II
Cinco dias se passaram e voltei a usar meus cadernos de processo criativo, abandonados há duas semanas. Em um dos cadernos, registrei a memória ainda fresca do encontro com o rosto marcante de Renato logo pela manhã, na esquina de uma rua nervosa. Se a recíproca foi verdadeira, ele não teve de mim uma impressão positiva. Fixou-se em meus olhos de tal modo que meu corpo parecia terminar ali. Talvez sentiu a adolescente fria e orgulhosa de ontem, escondida nas camadas desta história. Antes que Renato o fizesse, meu tato alcançou a caneta e me descreveu em imagem e palavra. Sou meus cinco sentidos. Sou um ato de escrita. Sou a impressão primeira de Renato.

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III
Dias depois, ele me convidou para uma conversa mais próxima. Nunca entendi tão bem o significado da indecisão feminina ao escolher uma roupa. E os sapatos? As horas seguiam o curso normal do dia, e a noite a se aproximar. Estava calma, pois a primeira impressão havia ficado no encontro primeiro naquela esquina. Etapa vencida. Agora é viver o depois, que começa hoje à noite.

IV
A noite foi boa. Se estendeu até o casamento. Um ano depois, Gabriel nasceu. Perguntei-me por que escolhi ser mãe. A autorresposta fluiu como ocorre com o corpo feminino quando deseja abrigar uma extensão.doc
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da própria vida. Em uma época em que as mulheres tinham a maternidade como condição sine qua non, eu era filha. Queria sair do senso comum e internalizar o sentido de ser mãe. Queria descobrir o sentido de materializar o desenvolvimento da extensão de meu corpo que, ao mesmo tempo, não é meu, é outro.

Gabriel cresceu longe de mim porque meus laços com Renato foram rompidos. Três anos foram suficientes para Gabriel experimentar o doce e o amargo de ser meu filho e de Renato. Nascido no intervalo de nove brigas intensas, era uma criança alegre. Eu dividia minha vida entre ser mãe e estudante no doutorado em uma conceituada universidade. Conquistei meu espaço. Renato ficou indeciso. Não tinha bem certeza de qual era o lugar dele em minha vida.

V
Quando a mistura de nossas personalidades veio ao mundo, nenhum sorriso ou foto. Na memória do pai, apenas o fato. Mães registram o nascimento de seus filhos de um modo diferente dos homens. Não precisam de fotografias. O calor da extensão de seus corpos é a certeza de que o filho está ali. Tudo se renova.

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Gabriel foi um bebê muito amado. Renato amava o nosso filho, do jeito dele. Renato ama intensamente. Nisto, ele não mudou, mas o sorriso irresponsável que vi na esquina da memória deu lugar à ausência de sorrisos. Não aceitava minha independência financeira. Era provedor. Não encontrou espaços de sobrevivência em uma casa onde as responsabilidades eram compartilhadas. Sucumbiu. Tudo terminou em um aperto de mão, rápido e intenso. Éramos quase um par de opostos na sala, em clima de despedida. Nunca fomos tão próximos e tão estranhos. A conversa foi demorada. Fizemos os últimos combinados antes da separação de corpos e rotinas. Gabriel, a partir de agora, seria nosso único fio condutor.

VI
Antes da refeição principal, a conversa terminou. Nenhum sinal de carinho ou intimidade. Apenas um aperto de mão frio e incongruente selou o pacto de rompimento. Nenhuma cerimônia. Éramos dois estranhos. Gabriel, o nosso ponto de intersecção, deu o primeiro adeus de sua vida. Em breve, daria o segundo, embora não soubesse. A foto na mesa da sala já não será a mesma, com Albert Einstein mostrando a língua para mim como se me condenasse pela escolha errada em relacionamentos amorosos. Autorizo-me a refazer a decoração dos espaços da casa. Revolucionar o mundo, a começar pela troca de fotografias e do tapete da sala. Amo essa porta de entrada para meu chão particular.

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VII
Após a separação, Gabriel foi criado pela minha mãe. Ele cresceu na casa da avó e sabia da minha dedicação integral ao doutorado. Minha mãe teve o privilégio de ser mãe duas vezes. Eu, apenas uma. Gabriel aprendeu a dar o segundo adeus de sua vida. Conformou-se com minha mãe. Moro sozinha em São Paulo. Hoje caiu aqui uma chuva um pouco deselegante. Nutriu o solo de modo assertivo e a cidade mergulhou em um lânguido transtorno. O verde em volta reafirmou-se. No mundo virtual, o tom dourado das peles era notícia líquida no Instagram, que me obrigava a curtir agora ou calar-me para sempre. Vejo, em fotografias, os doze anos de extensão do meu corpo a realizar-se como ser humano. Está bonito o Gabriel.

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