Neste longo caminho já vi flores de primavera. Rosinhas miúdas, margaridas e cravos, lírios e tulipas traduziram a inocência dos primeiro...

Quanto tempo de inverno haverá?

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Neste longo caminho já vi flores de primavera. Rosinhas miúdas, margaridas e cravos, lírios e tulipas traduziram a inocência dos primeiros tempos – tão breves. Logo chegou o verão, com seus calores e risos. Tempo de despreocupação, de roupas curtas, suor no rosto, namoros e sonhos.

Agora caminho neste começo de inverno. Há uns silêncios profundos em mim. Vontade de mais ouvir que falar. Certezas? Apenas que sei tão pouco da vida e das coisas. Penso nos olhos dos filhos e na pilha de livros por ler e reler. Tantos escritores já estiveram no caminho. Suas vozes não se calaram. Este é o supremo segredo dos poetas: fingem que dormem entre páginas velhas, mas basta um gesto e saltam risonhos ou graves, a contar histórias que enredam. Suspiro.

Acima, um ruído, um farfalhar de folhas. Ergo os olhos. O vento agita as copas das árvores e despeja sobre mim as folhas caducas. Elas caem rodopiando feito um piãozinho e pousam no meu casaco. Rio. Quem, hoje em dia, olha para cima e ri para o vento que agita as árvores? Caeiro talvez tenha sido o penúltimo a achar que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Ai, delicadezas do dia, como sois encantadoras. Ai, pequenos milagres do caminho, tão grandiosos que sois.

Há um banco solitário, cercado de folhas secas. Gaivotas grasnam, esquilos bisbilhotam pelos troncos. Eu observo as gentes que passam.

Há quem venha sozinho e quem caminhe com os amigos. Alguns andam com a família. Mãos vazias. Dedos entrelaçados. Uns passam apressados, outros vão a passos lentos.

Seguem uns curvados, outros eretos e elegantes.

Há jovens que correm, afoitos. E velhos apoiados em bengalas. Gente pobre, mal vestida, gravatas mal ajambradas, toucas baratas. Gente com roupa de grife, sapatos de couro, echarpes de seda compradas na China. Passam barrigas cheias, barrigas que roncam, reis na barriga.

No caminho vejo doentes, gente que nem se mexe, crianças alheadas, mães atadas a cadeiras de roda. E vejo os que fazem dos leitos de dor um trunfo e um triunfo. Os que não se entregam a nada além do vinho, do riso e das letras – os indomáveis.

Daqui a cem anos nenhum desses caminhantes existirá. Suas histórias e memórias sobreviverão até uma ou duas gerações. Passarão. Passaremos. Com exceção dos poetas de gênio, não haverá rastros quando outras primaveras chegarem. O tempo nos engolirá e fará descer a neve que tudo iguala sob seu branco manto de frieza e silêncio. Ninguém saberá o que vai acontecer quando Anúbis pesar os corações. Haverá alguns mais leves que a pena e outros que vergarão a balança – alguns sussurros serão ouvidos ao longe, mas tudo permanecerá em segredo.

Apenas o caminho será o mesmo – testemunha muda das sombras do outono de ontem e das florezinhas que brotam quando o ciclo se renova.

Presságios, presságios, quanto tempo de inverno haverá?

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