São tantas as afinidades entre as Memórias e a ficção romanesca, que a aproximação entre as duas espécies narrativas se impõe, naturalmente. Encontrando-se algo de romance em toda memória e muito de memória em quase todo romance.
Desde as primeiras páginas, com título tomado de empréstimo a Augusto dos Anjos e episódios de infância que lembram Zelins (como os banhos de rio e o carneirinho branco feito montaria), o livro de Joacil de Brito Pereira incita o leitor à comparação com a narrativa ficcional. Quando menos, à formulação hipotética: se fosse um romance...
Acervo familiar
Mas não de um herói quixotesco, como algumas vezes se autodenomina o escritor. E sim de um herói contemporâneo, conscientemente inserido nas contradições de seu tempo, buscando interferir decisivamente em soluções e desfechos. Um herói muitas vezes enredado na trama dos acontecimentos, com a história, sobranceira, exercendo seu papel de Destino.
Se este livro fosse um romance, guardada a distância ideológica, estaria muito mais pra Malraux que para Cervantes, na configuração de seu protagonista e no desenvolvimento da ação.
Isto que pode parecer digressão é uma maneira de afirmar a qualidade dessas Memórias. Não do ponto de vista cartorial da veracidade ou da exatidão dos acontecimentos.
Quanto a este aspecto, temos de admitir que quem conta recria os fatos no limite de sua seleção perceptiva.
Ron Lach
E digo isto sem qualquer censura, sem qualquer desapreço à enunciação subjetiva, essa forma insubstituível de expressão do homem e até mesmo de preservação da sua humanidade.
Nesse aspecto, as Memórias de Joacil têm a feição do relato, que é uma das mais antigas formas de comunicação.
Segundo o entendimento teórico de Walter Benjamin, o relato incorpora o acontecimento à própria vida daquele que conta, para comunicá-lo como sua própria experiência àquele que escuta. Dessa maneira, "o narrador deixa nele seu traço, como a mão do artesão, no vaso de argila".
São trezentas e sessenta e seis páginas de tempo e de vida, que prendem e surpreendem o leitor até o fim. O autor começa exatamente com o seu nascimento, no início dos anos trinta, e chega até os primórdios de sessenta. Do ponto de vista da continuidade histórica, o seu relato abrange três décadas. Guardando-se, como é possível deduzir, os instigantes acontecimentos da década de sessenta para o segundo volume dessas Memórias.
Ron Lach
E é com prazer que nos deixamos conduzir pela fluência narrativa em que se articulam acontecimentos tão vários. Lances pessoais, históricos e políticos interligados pela personalidade marcante do autor, recuperados na ótica de seu ponto de vista participativo.
E então é preciso ressaltar uma qualidade extraordinária deste memorialista: em nenhum instante, sendo a narrativa em primeira pessoa, sente-se a exorbitância do eu. Este senso de medida, em não colocar-se no centro dos acontecimentos, em ceder a cena para outros protagonistas, empresta às Memórias de Joacil uma dimensão verdadeiramente histórica.
Podemos não partilhar de sua ideologia e, por isso, dar outro nome ao que ele chama de "baderna". Podemos discordar de alguns julgamentos, em nome dessa mesma diferença ideológica. Porém este livro, muito mais que a vida de um homem, é o retrato de uma época, o painel multifário de uma sociedade, em suas virtudes e misérias.
MSantos
Há também instantes de júbilo, como os que enfocam a velha Faculdade de Direito do Recife, com seus estudantes cultos e mestres exemplares. Jovens bacharéis que, numa viagem à Europa, mais parecem representantes diplomáticos do seu país. Era outro tempo.
São muitas as veredas por onde Joacil nos conduziu e ainda nos conduzirá, nessa ousada travessia.