Era vermelha e branca. Tinha dois espelhos retrovisores com boa visão de tudo aquilo que atrás estivesse. Tinha um farol para clarear a no...

Conversa com o neto

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Era vermelha e branca. Tinha dois espelhos retrovisores com boa visão de tudo aquilo que atrás estivesse. Tinha um farol para clarear a noite e o dínamo para fornecer a eletricidade capaz de acendê-lo.

Trazia uma bomba para encher os pneus quando secassem e uma bolsa atada ao quadro, logo abaixo da sela, para guardar duas chaves de boca com as medidas, ali, de todas as porcas e parafusos.

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M. Livre
Assim que eu a vi, me apaixonei. Não era nova, zerada, saída da fábrica. Mas era bonita e conservada como se nova fosse. Os paralamas, branquinhos, continham duas listras da cor de morango maduro em cada lateral. Combinavam com a cor do quadro robusto, feito para aguentar o peso de duas pessoas adultas: o do piloto e do carona, ou o da carga que se pusesse no bagageiro no lugar de gente.

Ah, sim… O bagageiro possuía dois prendedores laterais na cor preta que seguravam as encomendas dentro de pacotes, ou de sacolas. Ambos ficavam deitados, escondidinhos, na parte de cima onde se podia sentar sem machucar o bumbum até o momento de serem levantados, um de cada lado, para reter a carga com a força de duas molas bem fortes.

O guidão, com punhos escuros de borracha, reluzia como uma joia feita de prata. Da mesma cor, e tão brilhante quanto, eram as maçanetas para os dois freios. Os meninos do meu tempo que tiveram a sorte de possuir uma belezura daquela enrolavam uma flanela amarelinha bem perto do farol a fim de manter tudo brilhando. Qualquer sujeirinha logo desaparecia com alguns esfregões.

Como eu gostava daquela sela. Quando nua, mostrava uma peça de couro suspensa em duas molas enroladinhas que serviam para ninguém sentir os buracos da rua nem os da estrada.
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M. Livre
Caíssem os pneus num deles, as tais molas balançavam e amorteciam o impacto. Vestida com um forro de espuma de capa clara, a sela se tornava ainda mais macia. Era como sentar numa nuvem.

A minha tinha o escudo do Fluminense, o time do meu coração. Mas poderia ter o do Flamengo, o time do teu pai, se flamenguista eu fosse. Era assim: cada um que escolhesse o clube preferido. Meu irmão, que antes de mim havia ganho uma bicicleta azulada, tinha sela de Vasco.

O mano morria de inveja de mim, mas não por causa do escudo. Ele invejava mesmo era meu conjunto de farol e dínamo. Por causa disso, meus passeios noturnos eram deliciosos.

O dínamo parecia uma garrafa pequena de metal com tampa feita para girar quando recostada ao pneu. Isso movimentava o gerador de eletricidade dentro da garrafinha que tinha fios até o farol dianteiro e a lanterninha de trás. Muitas vezes eu ouvi, orgulhoso, o espanto das pessoas mais velhas: “Parece uma motocicleta”.


Vou te contar uma história. Lá em casa ainda não havia aparelho de tevê. A gente via desenhos, filmes e futebol na casa de um colega de escola que morava numa fazenda distante da rua uns dois ou três quilômetros.

Certa vez, saímos de lá por volta da meia noite. Imagina só o perigo. Mas era em Pilar, onde ninguém atacava ninguém e somente se tinha medo de alma penada. Sabe não, amiguinho? Fantasma, assombração.

A gente se via obrigado a ir e retornar pelo muro do cemitério à falta de outro caminho. Minha bicicleta na frente clareando a estrada e a do meu irmão atrás, seguindo o rastro de luz.

Foi quando eu vi dois olhos de fogo em cima do muro branco. Freei com a rapidez de um raio e meu irmão quase passou por cima de mim. Pronto, escureceu tudo porque dínamo só funciona em movimento.

Nós dois, ali, arrepiados dos pés à cabeça. Mas tínhamos que voltar para casa. Tanto quanto de fantasma a gente também sentia medo do cinto de seu Juca, teu bisavô. E tu que pensavas que cinto de pai nunca serviu para nada além de sustentar as calças.

“Um, dois, três e já”, arrancamos com tudo. Eu na frente e meu irmão nos meus calos. Nunca corremos tanto. E nosso anjo da guarda nunca atendeu a tanto pedido contra quedas.
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Piqs
Pensa na agonia que seria se estatelar no chão debaixo de dois olhos de fogo.

Entramos em casa com o coração aos pulos. Seu Juca nem precisou usar o cinto porque se compadeceu dos dois filhos amarelos, de olhos esbugalhados, tremendo feito vara verde.

“O que foi?”, nosso pai perguntou. “Conta tu”, pedi ao mano. E ele: “Não. Conta tu mesmo”. Por fim, contamos. E Seu Juca: “Estão vendo? Isso foi castigo. Vão rezar e dormir”. Justamente, foi o que fizemos. Dormimos até as 10 horas, porque naquele dia não havia escola.

A lua assombra, mas o sol traz de volta a coragem, de modo que resolvemos investigar o mistério. Sabe o que vimos, dia claro? Uns seis bodes e cabras em cima de um montão de terra. Foi dali que um deles pulou para aquele muro. E foi dali que o bicho teve a luz do meu farol refletida nos dois olhos grandes. Farolzinho danado de bom. Além de tudo iluminar, também me ensinou que todos os animais, à noite, possuem olhos de gato.

Se a gente não tivesse feito isso iria passar o resto da vida certo de ter visto assombração. Não acho que isso exista, mas prefiro não arriscar. Nunca mais desejei passar tarde da noite em cemitério, no que faço muito bem. Não é não?.
▪ A Miguelzinho, que começou a pedalar sem o apoio daquelas duas rodinhas traseiras. Afinal, bicicleta foi feita para ter apenas duas.


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  1. Os legados do meu pai. Seus contos, prosas e conselhos.

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  2. A minha, talvez por ser um pouco mais antiga, era uma Phillips, preta, com sistema elétrico Lucas.
    Mas, os confortos eram assemelhados. O forro da sela tinha o emblema do Vasco e um "guarda-corrente" que protegia nossas calças compridas de serem engolidas pela corrente.
    Em casa, em local adequado, guardava uma lata de graxa e o material necessário fechar eventuais furos nas câmaras de ar.
    E, tome livre circular, pois mesmo em João Pessoa, além de servir como transporte para o colégio, quando não chovia, andar de bicicleta não era lá esses perigos.

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  3. Sua história me lembrou um lance dos anos 60, em Pombal. Eu e minha mulher, Ione, saímos à noite, da cidade, para amanhecer em Fortaleza, onde os pais e irmãs dela viviam. Mal saímos de Pombal, na estrada ainda de terra, vimos, depois de uma curva, aquela enorme procissão vindo em sentido contrário, centenas de velas acesas, Ione disse "É o Frei Damião". Pisei no freio, ... e a multidão de carneiros passou por nós, com os olhos refletindo nossos faróis, matando-nos de rir.

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    1. - Farol e olho de bicho dão nisso, amigo. Bom fim de semana.

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  4. Tania Brito26/3/22 14:15

    Fui viajando na história, que beleza de texto e, como o escritor e poeta José Leite Guerra nunca aprendi a pedalar. O jeito, já na terceira idade, foi comprar um triciclo, sonho transformado em realidade, pelo menos a minha❗

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  5. BICICLETAS DE CAJAZEIRAS NA GLOBO



    Lendo o artigo “Ladri de Biciletti”, publicado em um blog, por meu irmão Eduardo Pereira, sobre bicicletas em Paris, pensei: “porque não falar um pouco sobre bicicletas em Cajazeiras, da década de sessenta”.



    Para início de conversa, lembro-me, que eu tinha uns sete anos de idade, quando meu pai tinha uma bicicleta, marca Phillips, cor verde escura e, foi nela, que dei minhas primeiras pedaladas. Ou melhor, tentava pedalar. Na minha casa, ela ficava encostada na parede da área livre, onde eu colocava um pé no pedal e o outro no chão. Empurrava a bicicleta e, assim saía bem devagarzinho, arrastando o guidão na parede. Até aí, não pedalava, porque eu era pequeno e não alcançava o celim.



    Eu e meus irmãos, nunca tivemos bicicleta, quando morávamos em Cajazeiras. Aprendi a rodar bicicleta, em uma, dos irmãos Joaquim e Fassis, filhos de dona Paula e seu Nezim – da Papelaria São José -, que ganharam de presente. Eles eram meus vizinhos e deram-me a oportunidade de aprender a pedalar. Paulo Roberto (Giquirí), filho de seu Esmerindo Cabrinha, que também era meu vizinho, tinha uma bicicleta, que ele usava em seu serviço, na entrega de doces e mariolas de uma fábrica, na Rua Engenheiro Carlos Pires de Sá. Ele sempre me chamava para fazer a entrega e, eu tinha o prazer de ajudá-lo, mais para pedalar do que para ganhar doce e mariola. O comerciante ‘seu’ Bernardo Batista, outro vizinho meu, tinha uma bicicleta, que era o seu meio de transporte, era muito bonita e conservada. Ainda, um outro vizinho, Milton (Mitim) de seu Zé Cartaxo, também tinha sua bicicleta, que era modelo feminino (sem varão). Ele não gostava de emprestar para ninguém. Era pessoa suvina. Jansen Lacerda, filho de seu Zezinho Lacerda, tinha uma Monark, na cor roxa e era muita bonita. Ele me deu oportunidades diversas para dá umas pedaladas pelas ruas da cidade. João de Manezin, tinha uma bicicleta, que tinha no bagageiro uma caixa de madeira fixada, para transportar revistas usadas, que ele pedia no comércio. Na Rua Juvêncio Carneiro, tinha uma revendedora de bicicletas novas da marca Monark, que ficava ao lado da Prefeitura, do Cajazeirense Jota Epaminondas Braga (Epaminondas Braga e Bicicleta) e, ainda, nos Armazéns Paraíba. Aliás, sempre que eu passava nessas duas lojas, entrava para ficar desejando ter uma daquelas, porque eram bonitas, perfiladas uma ao lado outra. No final da Rua da Tamarina, próximo ao Clube 1º de Maio, tinha uma oficina de bicicletas de propriedade de seu Felismino. Ele consertava e também alugava. De vez em quando, eu me dirigia até sua oficina para alugar uma bike, pedalar pelas ruas cidade e paquerar as gatas do Colégio Estadual.



    Residindo, em Brasília, tive a oportunidade de possuir a minha primeira bicicleta Monark. Comprei, também, uma Monarkquinha para meu filho Ivaldo Moreira, quando ele tinha três anos de idade que, tempos depois, passou para sua irmã Gláucia, com quatro anos de idade. Eduardo, meu irmão, tinha uma bicicleta de corrida e, Ivaldo, meu outro irmão, foi à padaria com ela e, ao deixá-la na porta, comprou os pães e, ao retornar, não a encontrou mais.



    Lendo matéria do Jornal Correio Braziliense, de 15 de agosto de 2010 - com grande circulação no Brasil -, me deparei com uma matéria sobre as bicicletas Houston, do grupo João Claudino, de Teresina (PI). A matéria: “Um dos maiores feitos da Houston, e que ajuda a entender seu sucesso, foi um ousado lance de marketing no horário nobre da TV brasileira. A empresa fechou parceria com a Rede Globo, para fazer merchandising de suas bicicletas na novela “PASSIONE”. Para sustentar a ousadia, o grupo investe R$ 8 milhões na marca e quer aumentar a capacidade da fábrica, em Teresina, para a produção de até 1,1 milhão de unidades por ano. Além disso, planeja inaugurar uma nova fábrica, em Manaus (AM), onde, especula-se, poderia estrear a produção de motocicletas”, concluiu a matéria.

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