Olhei pela porta e vi Georgette ao piano. Dedos e mãos suaves distorcem o real escondido à sombra da cor neutra. Evito me precipitar na ...

Georgette

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Olhei pela porta e vi Georgette ao piano. Dedos e mãos suaves distorcem o real escondido à sombra da cor neutra. Evito me precipitar na tomada de decisões. Adio a conversa e deixo para depois o conflito trancado no peito. Georgette já não tem olhos, audição, língua. Tem os nervos à flor da pele e a face cheia de sentimentos ocultos. Os sentidos despertam em Georgette a curiosidade de redesenhar o mundo. Por isso, cria a própria arte ao piano. Improvisa Mozart com a Sonata em Dó Maior para buscar equilíbrio.

Mozart reforça a calma no semblante de Georgette e parece trazer de volta uma certa alegria. Há quanto tempo ela não se sentia assim. Notas quebradas e a moça segue caminhando pela música. Georgette desconhece a semiótica,
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mas entende perfeitamente as próprias emoções. É serena na medida certa.

A esta altura da jornada, palavras seguem outra trilha. Ao alcance das mãos, a moça faz a escolha que mais lhe agrada. Allegro. Andante. Alegretto. Ouço e vejo o que ninguém mais ouve e vê. Meus sentidos estão plenos. Olhos, audição, língua e tudo o que já não cabe em Georgette.

Eu a conheci completa. Trazia nos olhos os tons do campo; nos ouvidos, as lições da infância; na língua, o sabor das tardes amenas e as receitas que tantas vezes experimentei. Sozinha na solidão que lhe compete, exala o som das angústias e vazios da mulher de seu tempo. Georgette acreditava que poderia exalar apenas isso.

Nem sempre olha diretamente as próprias mãos ao tocar. Pode ver tudo ao seu redor com os olhos da alma. É tão mais degustável o que se pode ver e guardar neste cantinho do universo de cada um. A alma é uma casa que abriga todas as nossas condições e a condição de ser mulher agora me parece entediante para Georgette.

Ao piano, deságua. Expressa o que jamais poderia ser em minha frente ou em sociedade. Quando toca, é olhos, audição e língua. Os discursos gerados internamente surgem nos intervalos entre as notas.

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A filha dela brinca no jardim. Começa a experimentar o mundo à volta de um modo bem diferente da mãe. Emily corre entre as flores e uma mistura generosa de delicadeza e força surge. Meninas são delicadas, e fortes também. Dentre as poucas escolhas que pôde fazer, Georgette escolheu ser delicada.

Emily começou a fazer escolhas na infância. Escolheu ser forte e gosta de livros, pintura e cavalos. É alegre a menina. Assim o quis. Quando adulta ao piano, será observada de longe e alguém verá os olhos, ouvidos e a face completa. Despertará amores, talvez mais do que Georgette e isso não importa. Se escolher amar, que seja feliz.
▪ Texto inspirado no quadro Georgette ao piano, de René Magritte, 1923

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