A cada alvorecer é assim: um galo canta e outro responde de dois quintais muito afastados um do outro na faixa relativamente estreita d...

Vozes da Natureza

galo galinha quintal urbano
A cada alvorecer é assim: um galo canta e outro responde de dois quintais muito afastados um do outro na faixa relativamente estreita do bairro de Manaíra, um dos mais verticalizados de João Pessoa.

Para os que têm sono de passarinho e moram no meio do percurso, um canto parece vir das proximidades da Praça Alcides Carneiro. A resposta chega aos ouvidos como se soprada por ventos misteriosos,
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pois de sentido inverso ao da corrente dominante. Ou seja, como se viesse das bandas do antigo Aeroclube.

Nesse mar de espigões, o primeiro a inflar o peito na saudação ao Sol – ou na demarcação do terreiro onde supõe reinar, caso assim prefiram – é o galo do lado da Praça. Mas a resposta é quase imediata. E ambos ficam nisso até por volta das sete horas, quando o bairro, já acordado, tem as pessoas e os veículos a caminho do trabalho, dos estudos e destinos outros na lista diária de cada obrigação e compromisso.

É possível que a cantoria se estenda por mais tempo, porém sem já poder ser ouvida porquanto abafada, se for o caso, pelos motores, pneus e buzinas dos ônibus e carros menores numa área de trânsito infernal.

Bem-te-vis, rolinhas e pardais também se anunciam, diariamente, nessas horas, todavia, sem espanto algum, dado que há muito compõem o cenário urbano. A cidade que lhes roubou a mata a eles oferece ticos de vegetação nos parques, praças públicas e beiradas de rua. A ninguém mais surpreende, então, a presença habitual dessas avezinhas a catar as sementes, os insetos ou os farelos dispostos pelos humanos, intencionalmente, ou não.

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Surpreendente, mesmo, é o cantar de galos em quintais cada vez mais raros de cidades que se verticalizam, crescem para cima. Que alma pura os mantém, meses a fio, fora da panela? E com que sacrifício assim o faz?

Não dá para crer, facilmente, na inexistência de brigas com a vizinhança então desperta por essas aves domésticas, antes do nascer do primeiro Sol das três Américas, como quer a propaganda oficial. Ou será que, tanto quanto aos donos, o bater das asas, o pescoço esticado e o grito forte aos quatro ventos encantam vizinhos tolerantes e saudosos da vida no campo, ou dos quintais de antigamente?

Difícil imaginar que razões outras – e não a saudade de tempos idos quando a vida era feita de cheiro de mato, despreocupação, juventude, pais vivos e irmãos à volta – permitam esses cantares em locais tão improváveis: estes de hoje, feitos de concreto e ferro.

Quanto a mim, bendigo os dois galos de Manaíra, pois me permitem, por alguns instantes, a ilusão de ter de volta aquilo que o tempo, irrefreável e impiedoso, me fez perder. Pensando bem, talvez essa parte do meu bairro se ressinta das mesmas ausências e perdas. Quem sabe?

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