O vento Leste me traz o cheiro de bacalhau na brasa e faz com que eu suspenda o chamego com o ring neck, o periquito de pescoço anelado...

Numa cama de alface

bacalhau churrasco
O vento Leste me traz o cheiro de bacalhau na brasa e faz com que eu suspenda o chamego com o ring neck, o periquito de pescoço anelado de quem espero, ao ponto da impaciência, que aprenda a dizer um mísero “olá, tudo bem?”. Debruço-me, então, na janela a fim de observar, dois andares abaixo, no prédio vizinho, o grupo ruidoso em torno de uma churrasqueira. Ali, sim, fala-se pelos cotovelos. E, ao que parece, come-se bem.

É, assim mesmo, no carvão em brasa, minha forma preferida de bacalhau desde que seja dessalgado, lentamente, em três águas, a partir da noite anterior.
Mais do que isso, perde um quê da maresia e toda a graça.

Depois do fogo, prefiro que seja servido em lascas mergulhadas num vinagrete feito com bom azeite, coentro fresquíssimo, cebola, pimentão, tomate mais verde do que maduro e azeitona preta. Esqueçamos a pimenta e o alho. Em certas ocasiões, eles são dispensáveis.

Bacalhau desse jeito combina muito bem com batatas assadas. Tenham estas últimas preparo simples, tempero com nada além de alecrim, orégano, sal e manteiga antes de irem ao forno e dali somente saírem quando bem douradas. E que venham à mesa numa cama fofa de alface sutilmente avinagrada. Aceito uma pitadinha de açúcar, coisinha de nada, nuns tomatinhos do tipo cereja. Deem-me isso e estarei no Paraíso. Ah, sim, eu trocaria aquelas cervejas por um vinho branco.

Minha conta bancária não costuma me levar além da prateleira de supermercado onde eu possa encontrar algo engarrafado no Vale do São Francisco, produzido com uvas nordestinas. Acreditem, já me dou por muito satisfeito com isso.

Sei das premiações a esses vinhos degustados às cegas por especialistas na Grande Prova Brasil, o maior concurso nacional. Não menos,
de prêmios no Concurso Mundial de Bruxelas, edição de 2009, para quatro dessas marcas. E de outros prêmios na Argentina, Chile e França.

Ouvi de um desses vinicultores que produzir vinhos caros não é muito trabalhoso. O que dá trabalho é produzir baratos com estilo. Desde então, com o perdão pela ousadia, arrisco a advertência aos parentes e amigos mais próximos: preço dolarizado não é tudo, meus queridos. Foi o saudoso Guilherme Rabay que na festa dos 50 anos do Banco do Nordeste, lá vai tempo, me chamou a atenção para a boa qualidade dos vinhos de Petrolina na ocasião ali servidos. Deus o tenha.

Eis que, de repente, me ocorre que bacalhau já foi comida de pobre. Vinha em caixotes da Noruega, com intermediações de Portugal, para as bodegas de todo o Brasil, desde os tempos coloniais. Eu e meus irmãos o tivemos no balcão do meu pai, antes de o velho Juca se estabelecer, na segunda metade da década de 1950, como dono de padaria, no Pilar da minha infância.

A freguesia daqueles peixes secos e bem salgados provinha, então, das ruas periféricas. Descia da Serventia e do Compra-Fiado, topônimos advindos da má situação daquela gente. Isso mesmo, não o peixe falso da maior parte dos balcões de hoje, mas o bacalhau de boa qualidade saído das águas geladas para as taperas dos desvalidos.

Os mais adentrados hão de lembrar, certamente, da expressão popular antiga e bem-humorada: “Quando um pobre come galinha um dos dois está doente”. Pois é, nas voltas que o mundo dá, galinha já foi comida muito mais cara, coisa para os abastados. Assim, também, o ovo posto por ela nos ninhos da roça e agora, sobretudo,
nas grandes e modernas chocadeiras da avicultura.

Bem que eu gostaria de lembrar o nome do articulista que em jornal de grande circulação falou da origem humilde e da vergonha decorrente do cheiro que agora me dá água na boca. Daria, também assim, a vocês e à torcida do Flamengo, apesar da lembrança do Vasco que esse peixe nos traz. Naqueles idos, porém, a vizinhança não poderia sentir a fumaça reveladora da penúria familiar.

Mas lembro do que narrou José Lins do Rego, flamengo de quatro costados, em “Menino de Engenho”, o livro com o qual iniciou a série de romances do Ciclo da Cana de Açúcar. O que ele conta nos remete à primeira década do Século 20 e às histórias ouvidas a poucos passos da Casa Grande do Corredor, o engenho do avô atualmente renovada e disposta à visitação pública, porquanto objeto do zelo de Alba e Joaquim Soares, os atuais proprietários.

O capítulo em questão diz respeito aos concertos de carpintaria na Moita de Engenho sob cujo teto abrigavam-se os tachos, a moenda e a fornalha para o preparo do mel e do açúcar. Lembra José Lins neste primeiro livro.

Eu passava o dia inteiro rondando os oficiais nas suas confidências. Contavam a história de uns carpinas num engenho do Brejo. O senhor de engenho só mandava para eles bacalhau, na janta e no almoço. Passavam o dia inteiro bebendo água com a boca seca. Um dia, um deles disse para o negro que não gostava de bacalhau, que não aguentava mais aquilo.

No outro dia o tabuleiro com a comida chegou: era peru. E peru de tarde. E a semana toda, peru. Num domingo, o mestre saiu para dar umas voltas nos arredores. Viu um negro com uma porção de urubus nas costas:


Os oficiais anoiteceram e não amanheceram na propriedade. E rebentou ferida pelo corpo deles. Estiveram para morrer um tempão.

Ah, o Mestre José Lins... Tão bom quanto bacalhau.


COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também