A pergunta retórica se restringe a si mesma. Quem a formula já tem consigo a resposta à pergunta formulada. Se é a resposta cert...

'Por um abortamento de mecânica'

homem montanhas augusto anjos
A pergunta retórica se restringe a si mesma. Quem a formula já tem consigo a resposta à pergunta formulada. Se é a resposta certa ou errada, aos ouvidos do público a quem ela foi dirigida é outra questão a ser discutida, que não cabe nos limites da pergunta retórica, por ser ela simplesmente um recurso fático em via única. Ela inquire com a intenção de desafiar, de provocar, de aguçar a curiosidade, quem sabe até de procurar despertar o auditório do torpor.
homem montanhas augusto anjos
É o tipo de recurso que encontramos não só nos discursos, mas na literatura, como uma forma, muitas vezes ilusória, de envolver o leitor em algo que se encontra além do seu controle.

O preâmbulo se faz necessário, tendo em vista o que ocorre em As Montanhas, poema de Augusto dos Anjos, constituído de dois sonetos, e que integra o volume Outras poesias. O eu-lírico, dirigindo-se à alma, faz seis perguntas, duas indiretas e quatro diretas, como se estivera falando com uma pessoa e não estabelecendo um diálogo com a sua própria alma, o que alguns acharão tratar-se apenas de uma metáfora para uma reflexão. São questões interessantes, sobretudo, quando vemos que o eu-poético identifica nas Montanhas, um ser vivo em potencial, trazendo à tona o contraste entre o inorgânico e o orgânico, que nunca foi excludente, mas indicador de um fluxo constante entre esses dois estados da matéria.

homem montanhas augusto anjos
Acreditamos ser esse poema um dos mais emblemáticos, na obra de Augusto dos Anjos, em que, a um só tempo, conseguimos perceber, de modo simbiótico, a evolução da espécie e a evolução espiritual, os dois eixos maiores que constituem a sua poesia, sob a forma de interpelações que nos parecem mais uma epifania, com relação a quem somos e qual a nossa relação com o que nos circunda.

Vejamos os dois sonetos:

As Montanhas
I Das nebulosas em que te emaranhas Levanta-te, alma, e dize-me, afinal, Qual é, na natureza espiritual, A significação dessas montanhas! Quem não vê nas graníticas entranhas A subjetividade ascensional Paralisada e estrangulada, mal Quis erguer-se a cumíadas tamanhas?! Ah! Nesse anelo trágico de altura Não serão as montanhas, porventura, Estacionadas, íngremes, assim, Por um abortamento de mecânica, A representação ainda inorgânica De tudo aquilo que parou em mim?! II Agora, oh! deslumbrada alma, perscruta O puerpério geológico interior, De onde rebenta, em contrações de dor, Toda a sublevação da crusta hirsuta! No curso inquieto da terráquea luta Quantos desejos férvidos de amor Não dormem, recalcados, sob o horror Dessas agregações de pedra bruta?! Como nesses relevos orográficos, Inacessíveis aos humanos tráficos Onde sóis, em semente, amam jazer, Quem sabe, alma, se o que ainda não existe Não vibra em gérmen no agregado triste Da síntese sombria do meu Ser?!

O primeiro Soneto trata da potencialidade que não chegou a se realizar “por um abortamento mecânico”, do que poderia ser, no caso, outros seres viventes, como o eu-poético, num diálogo claro com o soneto, O Lamento das Coisas, quando da referência à “transcendência que não se realiza” e à “luz que não chegou a ser lampejo”. Tal estacionamento no inorgânico bem explicaria a especiação que se deu após a criação da sopa primordial, que o poeta, em A um Gérmen, chama de “geleia crua”.

homem montanhas augusto anjos
O segundo Soneto trata das emoções, uma vez o ser tendo se realizado. A aspereza dos relevos orográficos guarda a potencialidade, inacessível à compreensão humana, cujo conhecimento ainda não estabeleceu o comércio necessário para compreender os sóis, a vida, por excelência, porque é das estrelas que vem a substância da vida; sóis que amam jazer “em sementes”. Ora, a luz em contato com a sopa primordial ou a “geleia crua”, cuja base é, principalmente, o carbono, produz a vida que ali, latente, se encontra.

homem montanhas augusto anjos
As questões retóricas postas à alma traduzem, certamente, a aflição com a espiritualidade. O lugar em que jazem os sóis, na aspereza das montanhas, pode muito bem se transmutar para a “síntese sombria” do Ser, porque a luz que produz a mudança do inorgânico para o orgânico não cobre a necessidade da mudança do orgânico para o espiritual. Não basta ter vida, há que se trabalhar a espiritualidade, a luz há que se fazer lampejo, vibrando dentro de cada ser, de modo que a tristeza, no sentido de infelicidade, juntamente com a perspectiva de uma vida sombria, “no curso inquieto da terráquea luta”, se realize e deixe de ser apenas uma “subjetividade ascensional”, revelando a sua natureza espiritual.

Assim, num átimo, as montanhas passam de uma denotação a uma conotação. De matéria rochosa inorgânica, em que existe uma vida latente, elas passam a uma alegoria do homem, cuja “crusta hirsuta” recalca a ascensão sob a “pedra bruta”.

Como dissemos no início, quem formula a pergunta retórica não exige qualquer resposta, porque ela existe antes da inquirição puramente formal. A luta pela transformação do inorgânico para o orgânico é grande,
homem montanhas augusto anjos
mas não é maior do que a luta pela transformação da vida material em vida espiritual. Esta requer um “puerpério geológico interior”, que nos leva da dor do parto à dor da reconstituição do corpo e da psiquê, alterada pela gravidez.

Vejamos, com mais vagar, como se processam as questões retóricas, originadas por uma inquietação do eu-poético.

A alma deve levantar-se das nebulosas que a emaranham, para responder a algumas questões, sendo a principal delas sobre “a significação dessas montanhas”, “na natureza espiritual”. A questão seguinte aponta, para a dialética entre “a subjetividade ascensional”, ligada ao espírito e opondo-se às “graníticas entranhas”, bruteza material responsável pela “paralisação e estrangulamento” da necessidade de ascensão do espírito.

Segue-se, então, uma nova questão revelando o desejo da alma de alçar-se à espiritualidade, travado “por um abortamento de mecânica”. O eu-poético tem consciência de que, ainda que tenha evoluído do inorgânico, a prisão em que a alma se encontra, dentro do corpo, corresponde ao estacionamento evolutivo das montanhas. Desse modo, homem e montanha se identificam, ambos íngremes, apesar da natureza orgânica de um e da natureza inorgânica do outro.

homem montanhas augusto anjos
Vinda do inorgânico, a vida anseia por evoluir, expandir-se e perpetuar-se. O homem, uma dessas representações de vida, compara, então, a sua alma presa, pelo apego à materialidade, com a visão que tem das montanhas. Do mesmo modo que as montanhas estacionaram por uma causa mecânica, a alma humana encontra-se estacionada pela bruteza que a reveste. Trata-se de uma constatação que lhe revela “o anelo trágico de altura”: o homem recebe uma alma, para desprender-se da matéria bruta, mas a prende em si próprio, obstando a sua evolução espiritual, por conta das ações que lhe impedem a ascensão desejada pela alma. Eis o conflito estabelecido, entre matéria e espírito, que inquieta o eu-poético e o faz formular as questões retóricas. O estacionamento em fases diferentes, seja das montanhas, seja dos homens, este por estrangulamento da transcendência, aquele por uma causa mecânica, revela que é mais fácil chegar às alturas graníticas do que às alturas espirituais,
homem montanhas augusto anjos
com as montanhas sendo “a representação ainda inorgânica/De tudo aquilo que parou” no homem, aqui transfigurado no eu-poético, que reflete e questiona-se a respeito dessa homologia.

Da alma emaranhada em “nebulosas”, o eu-poético se dirige à “deslumbrada alma”, cuja função, agora, é perscrutar o “puerpério geológico interior”, de modo a explicar a significação das montanhas, ao analisar as dores desse parto e suas consequências, que produziram “toda a sublevação da crusta hirsuta”.

A comparação homem/montanha continua e se faz mais clara. Se parir uma criança é doloroso, o que inclui as mudanças operadas na gravidez, a dor do parto em si, e a tentativa de regeneração do corpo feminino, com consequências físicas e psíquicas, o que definiria o “puerpério”, quão não seria dolorosa a exposição da crosta terrestre, rompendo e rebentando na sua condição de “crusta hirsuta”? Atente-se, pois, para a palavra “sublevação”, que pode ser entendida como algo que, de baixo para cima, se eleva, seu primeiro significado, mas também podendo significar um movimento de rebelião e revolta, o que se confirma com o verbo rebentar – “De onde rebentam em contrações de dor,/Toda a sublevação da crusta hirsuta”.

homem montanhas augusto anjos
A partir do segundo Soneto, a comparação vai ganhando contornos mais nítidos de alegoria. O eu-poético dirige-se à alma, emaranhada e deslumbrada, para saber das montanhas, quando, na realidade, quer saber sobre ele próprio, sobre o homem, cuja soberba, pretendendo elevar-se como as montanhas, estaciona a sua ascensão espiritual. Novamente, temos a revelação do “anelo trágico de altura”: quanto mais subimos em matéria, mais estrangulamos e fazemos estacionar a nossa espiritualidade, a nossa “subjetividade ascensional”.

É o que se vê, a partir do segundo quarteto do segundo Soneto. A quem se refere o eu-poético, ao homem ou às montanhas, se o que ele diz pode se aplicar a um e a outro, a depender do nível alegórico de sua escrita, em consonância com a estrutura dos Sonetos?

No curso inquieto da terráquea luta Quantos desejos férvidos de amor Não dormem, recalcados, sob o horror Dessas agregações de pedra bruta?!
homem montanhas augusto anjos
Continuemos, no entanto, a perseguir as questões inquietantes do eu-poético, em relação ao estacionamento evolutivo da vida, “recalcados, sob o horror/Dessas agregações de pedra bruta”. Estacionada na sua evolução, a vida permanece em estado de latência; estrangulada na sua ascensão, a alma se inquieta no corpo que a aprisiona. O neoplatonismo é, a nosso ver, claro, estabelecendo uma equivalência entre montanha e homem, que corrobora a alegoria.

A vida é luta – “No curso inquieto da terráquea luta” – e o amor erótico é a garantia da sua continuidade. Pode parecer uma contradição falar-se de espiritualidade e de amor erótico – “desejos férvidos de amor” –, mas não é.
homem montanhas augusto anjos
Sem Eros a vida não existe, nos moldes em que a conhecemos. O recalque ao amor e aos desejos, impede a vida, assim como impede a evolução do espírito, vez que o espírito precisa do corpo para evoluir. A causa do estacionamento da matéria em montanhas é mecânica, puramente física. A causa do estacionamento espiritual é a vontade humana, são as escolhas feitas.

Observa-se, portanto, um jogo de vaivém da pedra para o homem, do homem para a pedra, a revelar a inacessibilidade desse comércio entre eles, que só se assemelham, quando do início do processo de criação da vida. Uma vez concluído esse processo, o inorgânico de que se originou a matéria orgânica e de onde surgiu o homem, revela-se montanha “hirsuta”, em cujas entranhas a vida encontra-se em gérmen, em latência. De modo homólogo, no eu-poético há uma latência, um gérmen vibrante, movido pela “subjetividade ascensional”.

A angústia do eu-poético leva-o a questionar a sua alma, presa e alucinada, por ver-se como “agregado triste”, como “síntese sombria”, cuja existência, contudo, acalenta a possibilidade de acender a luz que nele jaz, assim como os “sóis, em semente, amam jazer”, nas montanhas, “nesses relevos orográficos”, em que todos nos tornamos.

homem montanhas augusto anjos
Em suma, a vida exige o enfrentamento e a luta constante por mudança. Não se constrói a espiritualidade sem o sofrimento de enfrentar-se a si mesmo e mudar-se de dentro para fora; sem atender às necessidades do gérmen que vibra, na tristeza do ser sombrio que somos, exigindo a mudança. O eu-poético sabe das respostas, mas faz as perguntas para tornar realidade essa necessidade.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Uma exegese que só um consumado mestre augustiano como você, Milton, poderia fazer. Bravíssimo! Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir
  2. Obrigado, Gil!

    ResponderExcluir

leia também