Tanto o panóptico quanto o girassol representam estruturas em que o poder está relacionado ao ver e ser visto. Um gira-se para a luz, o...

O poder dos girassóis

girassol poesia ternura isa corgosinho
Tanto o panóptico quanto o girassol representam estruturas em que o poder está relacionado ao ver e ser visto. Um gira-se para a luz, o outro comporta-se por temor do olhar invisível. Em “Panópticos e girassóis”, de Isa Corgosinho (Urutau, 2024), seu segundo livro de poemas, a vigilância sobre o essencial da vida e a essência do eu poético se entrecruzam num jardim de possibilidades existenciais de um eu lírico marcado pelas influências
girassol poesia ternura isa corgosinho
diversas de vozes que compõem a orquestra da poesia brasileira e universal.

A obra é dividida em sete partes (número cabalístico), a saber: Parte 1 – Ser de linguagem; Parte 2 – Panópticos e girassóis – Sombra e luz; Parte 3 – Girassóis – vertigem; Parte 4 – Panópticos – cegueira; Parte 5 – Girassóis – A dupla chama do olhar: amor e erotismo; Parte 6 – Girassóis da alma: sagrado e profano; Parte 7 – Girassóis – memória do olhar. Sendo a escritora doutora em literatura e professora, apresenta vasto conhecimento de autores e é por eles influenciada: Mallarmé, Octavio Paz, Augusto dos Anjos, Ana Cristina César, entre outros, fornecem um rico diálogo, ora explícito, ora a implícito, apenas com algumas pistas intertextuais.

Sigamos para análise propriamente. Se, nas palavras da autora, “o olhar esquerdo mira límpido a diversidade dos girassóis, o destro gira a máquina do vigiar e punir”, entendo que o lado esquerdo aprecia a vida plural e a potência criadora, enquanto o outro controla pela norma e contém a potência repressora. Vê-se, caro(a) leitor(a), a inventividade da poeta que une instâncias aparentemente opostas e comprova, pois, a força que há na ambivalente literatura.

girassol poesia ternura isa corgosinho
E.L. Kirchner, 1918
No poema inicial da obra, “O ser e a linguagem”, nitidamente um diálogo com Heidegger, Corgosinho traz os versos: “Vagávamos nômades pelos ermos / à mercê dos instintos — sentidos afiados”. Temos a imagem de um ser humano pré-linguístico, guiado pelos sentidos e pela concretude das coisas. A linguagem ainda não se consolidou como mediadora da experiência — o ser humano se define por sua vulnerabilidade e relação direta com o mundo sensível.

girassol poesia ternura isa corgosinho
E.L. Kirchner, 1920
No mesmo poema, segunda estrofe, “Nos tornamos sedentários / e o fogo moldou/ mãos de barro”. Há aqui uma virada civilizatória: a sedentarização, o domínio do fogo, a manipulação do barro (símbolo da criação). Essa transição implica a necessidade de registrar, fixar, eternizar as experiências — um gesto que prepara o surgimento da linguagem simbólica, da arte, da escrita.

“Ecos de galos 2” articula uma poética crítica, de ruptura com os vícios da escrita lírica e com o leitor acomodado. Ao rejeitar a leveza oca e a poesia “de prazer contente”, o poema propõe uma literatura que educa pela pedra, como diria João Cabral de Melo Neto. É uma poesia do rigor, da depuração, da provocação — que tensiona o espaço entre realidade e invenção, e propõe um texto que resiste à leitura fácil. Esse poema dialoga com uma tradição crítica da poesia brasileira, mas inscreve sua voz própria ao expor o processo criativo como conflito, ruptura e invenção. Na última estrofe, o texto afirma: “imastigável é o prazer do texto/ provoca/ isca a mente”. O prazer poético é “imastigável” — isto é, não se consome fácil ou docemente. Ele provoca, inquieta, exige esforço cognitivo e sensorial. A poesia não é entrega fácil, mas provocação.

girassol poesia ternura isa corgosinho
E.L. Kirchner, S.XX
No poema que dá nome à obra, “Panópticos & girassóis”, mostra-se que, mesmo nesse mundo de vigilância, ainda é possível encontrar algo "são", preservado. O "espelho enrugado do tempo" remete à memória e à perda da inocência: a infância é vista como tempo anterior ao panóptico. “Procuro/ as palavras/ pichadas/ nas pedras/ nas sobras/ das tintas/ que saltaram/ dos muros. Aqui, a poesia se torna busca por resistência: as palavras pichadas são vozes que desafiaram o controle, a vigilância. A rua, os muros, a tinta — todos elementos da linguagem marginal, subversiva, viva.

Em “A mão que afaga”, oferece-se um diálogo com o poeta Augusto dos Anjos, porém o novo poema parece fazer uma espécie de resposta crítica e atualizada, mais social e menos individualista, se comparada à angústia do eu lírico do poeta paraibano [...] “a mão que te acena da multidão/ está em plena cruzada/ individualismo hedonismo competição”.

girassol poesia ternura isa corgosinho
E.L. Kirchner, 1921
A seção 4 – “Panópticos – cegueira” se destaca pelos poemas de engajamento político-social, como o exemplar “O exílio do Brasil”, que não se trata de um exílio geográfico, mas de uma alienação cultural, política, ética e social. Denuncia com veemência os desmontes sociais, ambientais e políticos no país. Insere-se numa tradição crítica da literatura brasileira, atualizando a “Canção do Exílio” para um cenário distópico. É um grito poético de indignação, mas também um documento histórico de resistência e memória. Destaco os versos: “Minha terra tem milicianos atrozes”; “A floresta da minha terra / arde em chamas famintas / ateadas pelo Agro”; “os grãos matam os pássaros / soterram nossos índios” e “A falta de vacina matou mais de 700 mil / homens em pele chupam ossos”.

girassol poesia ternura isa corgosinho
E.L. Kirchner, 1919
“Girassóis – a dupla chama do olhar: amor e erotismo” reúne os poemas de caráter mais sugestivo da linguagem erótica, entrelaçando desejo e ternura em imagens que dançam entre a luz e a pele, onde o olhar acende o verbo e o corpo se torna metáfora. O poema “Dionísio” ilustra: “não é meu corpo / que te nego / nem o jardim das delícias/ te nego / a minha liberdade — essa casa interdita/restrita/às pulsões”. É um poema que se constrói a partir da tensão entre o impulso dionisíaco e a contenção subjetiva. Há um desejo intenso, que atravessa distâncias e
girassol poesia ternura isa corgosinho
Isa Corgosinho ▪ Facebook
transborda em ternura, mas que é frustrado pela impossibilidade — seja imposta pela própria voz poética, seja pela ação do tempo, que corrompe os momentos possíveis. Ao final, resta uma aproximação fadada à esterilidade, marcada por uma entrega emocional que não encontra reciprocidade ou concretude.

O poema que encerra a obra intitula-se “Águia” no qual há versos imagéticos, plurissignificativos e capazes de resumir a essência de “Panópticos e girassóis”: “na altitude/ invisível aos olhos/ entregarei/ minhas asas de ser/ ao Ser do Tempo/ garganta liberta/ cantará/ o devir a ser/ nas harpas do vento” (sem ponto final). É uma poderosa metáfora sobre a autonomia do sujeito poético, sua recusa em ser definido ou possuído, e sua busca por uma identidade em constante invenção. A “garganta liberta” permite à voz correr pelo vento e, em movimento criador – tal como a águia – não se dar a ninguém, mas voar, com olhar vigilante e capaz de contemplar os girassóis.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Quem melhor que um poeta para comentar um livro de poemas? Parabéns, Leo. Francisco Gil Messias.

    ResponderExcluir

leia também