Poemas vocais é o título do mais recente livro do poeta Raniery Abrantes (Editora Ideia, João Pessoa, 2025), título que traduz perfeitamente o conteúdo da obra, pois, de fato, são essencialmente vocais os poemas do nosso trovador sousense. O autor, fiel à tradição nordestina do cordel, escreve mais para ser declamado do que lido. O silêncio reservado dos gabinetes e dos quartos não lhe interessa, mas, sim, a fala aberta nos palcos, nas feiras e em eventos culturais de toda ordem, nos quais a palavra proclamada de viva voz seja a condutora de sua personalíssima poesia até o público. Daí ser justo lhe chamar de trovador, um autêntico continuador da rica tradição medieval, ainda hoje cultivada em alguns países europeus e aqui no Nordeste brasileiro, provavelmente vinda das bandas da península ibérica, como tantas outras coisas de nossa cultura lusotropical.
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Nessa linha, também chamá-lo de “cantador” certamente não o ofende, pelo contrário, pois o insere numa nobre linhagem de artista populares de que tanto nos orgulhamos. E aqui a palavra “populares” está empregada no seu mais alto sentido. Falta-lhe talvez a viola, companheira inseparável desses talentos andarilhos que mantêm viva uma arte multissecular. Mas isso não é problema, já que a musicalidade intrínseca de seus versos é o bastante para embalar a declamação.
Em seu prefácio, Hildeberto Barbosa Filho ressalta isso ao escrever com propriedade: “Raniery Abrantes é um poeta
Raniery Abrantes e Hildeberto Barbosa
declamador, focado, sobretudo, na substância musical da palavra e visceralmente comprometido com a tradição oral e popular do cancioneiro nordestino”. E completa: “Mais que a página do impresso, parece pesar, em sua performance lírica, a vocalidade do poema recitado nos ambientes públicos, em especial, quando divide a cena com outras vozes e outros instrumentos que compõem o palco discursivo”. Aí está dito praticamente tudo sobre o nosso autor e a sua obra, a tradução exata, em doutas palavras, de sua pessoa e de seu ofício.
Como bem observou o prefaciador, Raniery é um poeta espontâneo, como são também os cordelistas e os cantadores nordestinos, pois prescinde de “pesquisas estéticas”, de árduos esforços formais e de teorias acadêmicas para produzir os seus poemas, os quais nos passam a impressão de que já nascem prontos, tal a naturalidade que deles emana. E a naturalidade, sabemos, é tudo nesse particularíssimo gênero poético que Raniery pratica.
Hildeberto, sempre arguto, viu Raniery como um goliardo contemporâneo. Para quem não sabe, chamavam-se de goliardos os poetas errantes e boêmios do medievo, irônicos críticos da sociedade e da igreja de seu tempo. Então, sim, a
Raniery Abrantes
licença poética é cabível, com algumas ressalvas quanto à abrangência da errância, da boemia e da temática.
Raniery segue uma tradição familiar, pois sua mãe também foi poeta. Uma ascendência assim às vezes inibe o desabrochar do bardo, face o receio de uma possível competição ou de uma eventual comparação de talentos. Não raro, um poeta ou artista por família é o suficiente. Mas nem sempre. São muitos os casos em contrário. Quando há uma vocação autêntica, a consanguinidade não deve jamais impedir que ela floresça. No caso do nosso Abrantes, vemos, tudo correu bem, e, quem sabe, outros poetas da mesma estirpe sertaneja apareçam.
No posfácio, Sérgio de Castro Pinto reafirma a oralidade dos poemas do autor: “O compromisso de Raniery é muito mais com o poema lido, recitado, do que com o poema que é feito apenas para ser usufruído com o olhar”. E para que o leitor tenha uma fiel ideia dessa característica da poética ranieryana, transcrevo a seguir o poema “O meu verso é navalha”, o qual sugiro que seja lido em voz alta:
Meu fino verso é navalha,
Que rasga fundo na pele.
Nas entrelinhas me impele,
Para um fogo de fornalha.
Travo com ele batalha,
De sangrar o coração.
Pois expõe linda paixão,
Que habita dentro de mim,
Um sentimento sem fim,
Que explode como um vulcão.
E nesse tom segue o livro, fazendo jus à tradição cordelista que reverencia. Sem ser popularesca, a arte poética do trovador Raniery Abrantes é daquelas que nobremente enriquece a cultura popular paraibana, nordestina e brasileira.