Conta-se que certo dia Alceu Amoroso Lima, já glorioso, recebeu uma homenagem de amigos e admiradores, praticamente uma consagração pública do escritor, crítico e pensador brasileiro. Agradecendo aos presentes, ele fazia uso da palavra, saboreando o gozo daquele momento especial. Eis que, súbito, adentra a sala uma anônima senhora, trazendo à mão um
Alceu Amoroso Lima @museucasadeportinari
ramalhete de flores, que todos devem ter pensado ser mais um tributo para o homenageado. Mas não. Para surpresa geral, ela caminha até Alceu e atira-lhe, como uma pedra, o buquê nos peitos, com inequívoca brusquidão. Sem falar uma palavra, diante da plateia atônita, ela se retira. Doutor Alceu interrompe o discurso e permanece alguns segundos em silêncio, certamente se recuperando do choque. O auditório em peso olha em sua direção, aguardando de sua parte uma mínima palavra que esclareça o inusitado episódio. Ele diz o seguinte: “É uma lição de humildade. Recebo isso como uma lição de humildade.” Apenas isso. E continuou a fala que interrompera, como se nada tivesse acontecido.
Ninguém nunca soube quem era aquela pessoa misteriosa. Ela surgiu do nada e ao nada parece ter voltado. Algum dos presentes, mais malicioso, poderá ter se perguntado se ela seria talvez uma amante ou ex-amante de doutor Alceu. Mas, ora, doutor Alceu nunca foi homem de amantes. Pelo contrário. Essa hipótese era absurda e como tal
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devia ser descartada. Doutor Alceu era homem de reputação verdadeiramente ilibada, católico praticante, de missa diária, e mais que isso: era o maior líder religioso leigo do Brasil. E assim o mistério restou intocado.
É muito possível que a explicação do episódio seja a que doutor Alceu compreendeu e anunciou de imediato: uma lição de humildade. Lição enviada, sabe-se lá por quem, talvez por Deus, para contrabalançar a glória daquele momento em que ele colhia os aplausos do Brasil. Como se, igual ao célebre escravo de César, ela tivesse vindo apenas para lembrá-lo: És pó!
Sim, se somos todos pó, é preciso que nos lembremos disso com frequência, principalmente nos instantes de eventual grandeza e de vitória, aqueles nos quais costumamos esquecer nossa finitude, inebriados pelos enganosos êxitos mundanos.
Doutor Alceu viu naquele imprevisto o escravo de César, o seu escravo particular. Muitos de nós já recebeu a visita desse sábio servo do imperador romano, disfarçado sob as mais diversas máscaras. Às vezes, ele vem na forma de uma enfermidade, ou de um acidente não fatal, ou de qualquer outro revés. De repente, ao meio de nossa pretensa
Alceu Amoroso Lima @literaturaebompravista
imortalidade, ouvimos uma voz sussurrar, só para nós: És pó! E aí cabe-nos, se não formos néscios, tão somente ouvi-la e interiorizá-la, para dali por diante nos tornarmos mais humildes, o que significa dizer mais humanos.
Receber as adversidades, quaisquer adversidades, como lições de humildade. Eis um dos aprendizados básicos da vida. Não raro a contrariedade vem na forma de uma injustiça. Ou de uma incompreensão. Ou ainda de uma ofensa imerecida. Não importa. Sabemos que o mundo e as pessoas têm mil maneiras de nos ferir. Aceitemo-las como lições de humildade. Como oportunidades para lembrarmos que somos pó.
Doutor Alceu aprendeu algo com aquela mensageira que lhe afrontou. Nós todos podemos aprender como ele. Que as lições de humildade que recebemos na vida sejam, portanto, acolhidas com serenidade, essa discreta filha da sabedoria e do espírito de paz.