Seu amigo fará uma cirurgia em breve. Caso não muito simples, com perspectivas incertas. Sem dúvida, uma situação delicada, daquelas em que é preciso pisar em ovos e pesar e medir cada palavra. Qualquer erro poderá ser constrangedor, numa hora em que todo e qualquer embaraço deve ser rigorosamente evitado. Você sabe que tem que falar com o amigo antes dessa cirurgia, mas não é simples. Mesmo que por telefone, sem a saia justa do olho no olho, esse diálogo é dificílimo. Para ambas as partes. Uma, por ter que encontrar a forma mais adequada e suave de abordar o assunto, mostrando amizade e solidariedade, contornando a gravidade da situação; a outra, por ter que se apresentar forte, dentro do possível, buscando forças onde muitas vezes não há.
Nessa conversa incontornável, sabemos, as palavras nem sempre expressarão a verdade completa dos fatos e dos sentimentos. Mas não se trata de hipocrisia, claro, e sim de compaixão recíproca, uma forma de amor ao próximo, que, infelizmente, só costuma revelar-se – quando o faz – nos momentos em que os empecilhos abundam. É preciso coragem para fazer a ligação – e também para atendê-la.
Um dos amantes deixou de gostar do outro, não importa a razão. Pode ser por nenhum motivo aparente, pelo simples deixar de gostar, que isso acontece. Ou por uma paixão inesperada e avassaladora por outrem. Nos dois casos, não é fácil para o parceiro que sai comunicar ao parceiro que fica. Principalmente quando o que termina a relação guarda um certo bem-querer e algum respeito pelo outro. Pois, nesse caso, não se trata simplesmente de ir embora, como muitos fazem, sem qualquer explicação, deixando atrás de si mágoas e perplexidades para sempre. Fazer isso até que seria cômodo. Mas não. Aqui é o caso de ir-se embora com alguma dignidade, alguma decência. Por isso, é preciso conversar com quem se deixa, buscando justificar o que, para o outro, a priori, não se justifica. É preciso ter coragem para começar o penoso colóquio da separação; é preciso cautela e tato para selecionar palavras e frases, de modo a, se possível, minorar a dor e o trauma do(a) abandonado(a).
O funcionário é bom, eficiente, cumpridor de suas obrigações. O patrão simpatiza com ele e aprecia sua dedicação. Ele trabalha já há algum tempo na empresa. Não é um simples estagiário. É casado, tem filhos e não é mais nenhum garoto. Ocorre que os negócios não vão bem, as despesas estão altas, a receita mingua e a necessidade de demitir impõe-se com todas as suas consequências sombrias.
O bom funcionário terá que ir embora. E o patrão terá que dizer-lhe isto olhando nos seus olhos estupefatos. Mas como fazê-lo, de modo a amenizar o impacto de tal notícia devastadora? Como fazê-lo sem que o empregado leal não se afunde mais que o necessário? O sofrimento e o desconforto do chefe, que, diga-se, não é nenhum capitalista insensível, são tão incômodos quanto serão os do funcionário logo a seguir. A boca do que falará primeiro está tão seca e sem voz quanto a do que ouvirá calado sua sentença. Aqui não há margem para diálogo, pois nenhum argumento em contrário poderá prevalecer. Aqui a palavra única, árdua e definitiva pertence exclusivamente ao que manda – e que se constrange – e sente - ao fazê-lo.
Três situações típicas. Muitas outras existem, o leitor sabe, viveu ou ouviu falar. A vida é também feita dessa matéria espinhosa, cotidianamente. Nada a fazer. E nunca estaremos suficientemente preparados para isso. Todavia, uma coisa percebo: a cada experiência dessa, quando somos a parte ativa do processo e conseguimos desempenhar relativamente bem nosso ingrato papel, saímos como que mais fortes, mais maduros, exatamente porque mais calejados, mais sofridos, o que confirma a máxima de que só crescemos nas dificuldades.
Conversas difíceis. O leitor certamente terá tido as suas.
Lendo agora as memórias de um intelectual brasileiro que acompanhou de perto, e atentamente, o desenrolar da célebre revolta estudantil, até hoje comentada e que iria se espalhar pelo Ocidente, pus-me a refletir sobre a imprevisibilidade de certos acontecimentos da história. Não de todos, concedo, pois que existem aqueles cujas premissas vão se formando de forma tão clara e inequívoca, à vista de todos, que sua eclosão não chega a surpreender, já que vêm marcados pelo selo das coisas inevitáveis. Mas em muitos casos, não há dúvida de que os acontecimentos surgem fora de qualquer previsão, desencadeados por causas às vezes banais, só podendo ser compreendidos a posteriori,
Diz-se, não sem razão, que a primeira impressão é a que fica. Sim, mas não sempre. Vejamos. Claro que a impressão inicial tem muita força, até porque é a que fica para sempre quando não temos a oportunidade de aprofundá-la e de revê-la (quando é o caso). Vê-se, portanto, que não raro essa impressão inaugural é equivocada, motivo pelo qual ela não fica, não deve ficar. E aí o que vai ficar é a segunda ou a terceira impressão, aquela que nos oferta a versão mais verdadeira ou mais aproximada da verdade das pessoas e dos fatos. Ainda bem.
Um dia Antonio Carlos Villaça estava mostrando a alguém a sacristia do Mosteliteratura paraibana cronica mosteiro sao bento indiferenca auto ajudairo de São Bento do Rio de Janeiro. Trata-se de uma sacristia muito bonita, comprida, com paredes de azulejos antigos, um lugar muito especial, cheio de história e arte. Observou, no entanto, que a dita pessoa tudo olhava distraída, como se não estivesse verdadeiramente vendo o que lhe era mostrado. Villaça então se perguntou: “Por que os seres não prestam atenção às coisas que lhes estão próximas? Cismam sempre com outras, distantes. E isto me intriga”.
Pois é, a mim também. O leitor certamente sabe do que se está falando; já vivenciou o indisfarçado desligamento de algum interlocutor a quem falava ou apresentava algo,
Em texto publicado em 17.8.2009 na Folha de S. Paulo, Luiz Felipe Pondé comenta um encontro recente com um amigo de infância. Segundo ele, “esses encontros são marcantes para mim porque sempre acabo percebendo como hoje sou outra pessoa. Diante das lembranças compartilhadas, a distância no tempo se impõe como distância no afeto”. Ou seja, o que Pondé está corajosamente afirmando é que para ele o amigo de infância de certa forma tornou-se um estranho, ou quase. Em outras palavras, o tempo e a distância consumiram o antigo afeto, a antiga amizade que o ligava ao velho amigo.
Aconteceu, mas não foi, claro, no divã de Freud, salvo simbolicamente. Foi no mais modesto divã de minha psicanalista (ou psicoterapeuta), com quem conversei, quinzenalmente, durante uns dez anos. Dez anos que, para algumas coisas, pode ser muito tempo. Mas para falar de si mesmo, escavar a alma em busca do que for, buscar compreender-se para poder compreender a vida como ela é, voltar ao passado mais longínquo, porque lá é que está a explicação de tudo, enfim, para isto e ainda mais, não é tanto tempo assim. Quem já deitou no divã, sabe. Pois bem.
Quem afirma é Rosa Freire D’Aguiar, viúva de Celso Furtado, no prefácio do livro Correspondência Intelectual – 1949-2004, organizado por ela e recentemente publicado pela Companhia das Letras: “Em 1975, tendo recuperado os direitos políticos cassados por dez anos, ensaiou uma volta para o Brasil. A convite da Universidade Católica de São Paulo, lá esteve por um semestre, responsável por um curso sobre economia do desenvolvimento. Era a primeira – e seria a última – vez que lecionava numa universidade brasileira”. Veja só.
Ser o primeiro, no sentido de ser o titular, o superior, o chefe, nunca foi fácil, em qualquer circunstância. Mas ser o segundo, no sentido de ser o substituto, o vice, o sub, então nem se fala: é mais difícil ainda. Se não é todo mundo que sabe ser o primeiro, como os exemplos nos mostram, menos gente passa no teste de ser o segundo. Claro que muitos não veem nenhum problema, nenhuma dificuldade em ser o primeiro ou o segundo. Tiramos de letra, dizem esses açodados que geralmente se saem muito mal, tanto sendo o primeiro como também o segundo. Tudo é arte: ser o primeiro e ser o segundo, mas a de ser adjunto é mais sutil e exigente, não há dúvida.
A história da família Rolim dá um romance. Mas essa não foi a opção do engenheiro e historiador paraibano Sérgio Rolim Mendonça ao escrever sobre sua ascendência familiar em seu mais recente livro, A saga do Chanceler Rolin e seus descendentes, publicado, em caprichada e bonita edição, pela Editora Labrador, de São Paulo. Talento literário para isso, se fosse o caso, não lhe faltaria nem falta, à vista do que já mostrou quando da publicação de suas memórias (ou autobiografia),
Normalmente, quando um artista, um escritor, um pensador desaparece, sinto-me atraído por um retorno às suas obras. Certamente é uma maneira de afirmar sua presença ainda entre nós, uma espécie de vitória sobre a morte, tão pertinente nestes tempos de Páscoa cristã. Realmente, quem deixa uma obra atrás de si sobrevive à parada do coração, pelo menos por uns tempos. E às vezes resiste para sempre, como é o caso dos verdadeiramente grandes. Shakespeare, por exemplo.
De Pedra Lavrada, no Cariri paraibano, para Moscou. Dá para imaginar? Pois é. São muitos quilômetros. E não é só a distância espacial ... Mas esse foi o caminho percorrido por nosso conterrâneo Paulo Bezerra para se tornar um dos mais autorizados tradutores de Dostoiévski do Brasil, na atualidade. Caminho heroico o desse intelectual, cujo destino inicial talvez fosse ser ferreiro, profissão do pai. Mas o seu sonho era outro: o de estudar. E esse sonho, que foi e é o de tantos meninos e meninas modestos em nossa pátria pouco gentil, transformou sua vida, como costuma acontecer quando as fantasias se tornam reais.
Agora tomo um trem imaginário para Florença, após deixar os canais venezianos para trás. Busco não a Florença turística, ao alcance de qualquer um, mas uma Florença especial, a da literatura, que há tempos a vem adotando como pano de fundo — e também como personagem — de tantas obras relevantes. Tive o privilégio, como tantos outros, de visitar a cidade de
A amargura de que fala o título é a “de não ser bonito, quando jovem”. E quem a cita é Paulo Francis, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, em 19/5/1991. No texto, ele está se referindo ao escritor Milan Kundera, célebre autor de A insustentável leveza do ser, romance que marcou época em fins do século passado. Escreve Francis: “Como é feio Milan Kundera. Parece um macaco. Imagino Kundera, garoto, num baile de formatura, tentando tirar uma menina para dançar e sendo recusado, delicadamente, se ela era educada, e com riso zombeteiro, se não.
Há cem anos, o paraibano Epitácio Pessoa, que presidiu o Brasil no período 1919-1922, decidiu dar ao seu estado natal, sempre pobre e carente de grandes investimentos públicos federais, uma obra capaz de alavancar seu desenvolvimento econômico, libertando-o, pelo menos em parte, do eterno problema das secas periódicas, que inviabilizavam a sustentabilidade de nossa atrasada economia fortemente baseada em rústicas agricultura e pecuária.
A vida ensina que eles nem sempre coincidem. Aliás, melhor dizendo, quase nunca eles coincidem. E não raro eles se excluem um ao outro. Daí a necessidade constante de optar-se entre um e outro, já que dificilmente pode-se ter os dois ao mesmo tempo. E essa opção constitui-se como fundamental na vida de cada um e, também, uma das principais questões da filosofia moral, a Ética.
Parecia um homem comum. Talvez um funcionário público modesto, talvez um guarda-livros, antiga profissão fadada à extinção, pelo menos no nome. De paletó, sua segunda pele, óculos redondos de lentes grossas, realçadoras de uma miopia congênita, a surrada pasta de couro na mão, símbolo de seu ofício e de sua austeridade, modo de ser natural de quem só se importava com o que era essencial. Sem falar no chapéu de feltro, adereço indispensável para os homens da época. Quem passasse menos atento por aquela tranquila esquina do Jardim Botânico, bucólico bairro de um Rio de Janeiro ainda aprazível, e visse aquele homem de pé, esperando o bonde como qualquer mortal, não desconfiaria nunca de sua verdadeira identidade, a despeito de sua já reconhecida proeminência na vida pública nacional.
Mais uma imensa perda humana e cultural para a Paraíba. É assim que vejo, que vemos todos a recente partida de Otinaldo Lourenço, ícone do jornalismo e do rádio paraibanos. E assim vai se alastrando nossa pobreza aldeã, confirmando a sabedoria popular que diz, desalentada: “De onde se tira e não se bota, a tendência é se acabar”. Pois é. É como se, com essas perdas todas, estivéssemos findando, pouco a pouco, nosso parco patrimônio humano, o único que nos coube desde sempre e que não raro temos, burramente, desperdiçado ou desconhecido.
Não o conheci pessoalmente, ou seja, nunca fomos apresentados, mas posso dizer que o conhecia mais ou menos de perto, na medida em que um leitor pode conhecer um cronista, partindo do pressuposto de que, de uma forma ou de outra, o cronista se revela em cada crônica, já que toda literatura, assim como toda arte, é autobiográfica.
É dura a vida, no Brasil, de escritores que vivem e produzem fora do eixo Rio-São Paulo. No resto do mundo imagino que deva ser a mesma coisa, a mesma dificuldade de conseguir um editor importante e a necessária divulgação, aquela que pode tornar o autor conhecido, se não pelo grande público, ao menos pelo grupo mais restrito dos leitores contumazes. Deve ser dura também a vida dos que escrevem e vivem no Rio e em São Paulo, mas que ainda são anônimos e/ou inéditos, já que não é fácil, em nenhum lugar, obter reconhecimento.
É a primeira vez que escrevo sobre este tema, mas não a que falo sobre ele, de modo que, para mim, é uma oportunidade de refletir mais sobre o assunto e organizar melhor meu pensamento a respeito. Esta é certamente uma das vantagens que a escrita tem sobre a fala. Vamos lá.