Andei relendo, esta semana, o negro Lima Barreto, não o do romance, o do belo e poético romance de Policarpo Quaresma. Mas o da crônica, o que vai no bonde, desce no café e traz à luz, tantos janeiros depois, as vozes anônimas das ruas que ficaram soterradas no Bota Abaixo de Pereira Passos, na Revolta da Vacina, no passeio guarnecido de destroyer, pela Baía da Guanabara, do nosso Presidente Epitácio. Que ostentação de força e de poder!
Um livro de referência a grandes escritores, que se espragata do alto da estante aberto em página dedicada a Elias Canetti, foi o que lucrei trepado em perseguição a uma aranha avistada da rede a se enfiar por entre os dorsos. O livro não foi o que lhe deu consagração, o Auto de fé, do qual, numa leitura precária, ainda pude guardar a terrível impressão que lhe causaram as multidões enraivecidas, mordidas de nazifascismo nas ruas da Viena de 1935. Dele não consigo me livrar de uma sentença que anotei com força de praga: “Tudo o que foi esquecido brada por socorro nos sonhos”.
Era no trabalho que melhor nos irmanávamos. Emulações à parte, naturais, legítimas, se não se rendiam não chegavam a comprometer o companheirismo. Terminavam recônditas.
Hildeberto Barbosa Filho ressalta numa Letra Lúdica dos meus guardados a falta que vem fazendo a crônica assinada por Martinho Moreira Franco, em sua maioria fadada a se manter viva em livro. Quantas delas nos revisitam por si mesmas, associadas a alguma emoção do instante presente. Foram muitos os momentos bem-sucedidos de sua especial subjetividade.
“Como tantos outros, não coligiu seu texto publicado nos jornais num volume que permitisse relê-los, ao sabor do critério da vontade e da estesia que a arrumação de suas palavras na frase despertava no leitor.”
— lamenta, às custas de seu exemplo, estendendo aos outros o amor que nutre pelo labor literário.
Martinho ironizava-se se dizendo cronista de variedades, carona que pegou na qualificação de intenção elogiosa como uma confrade amiga o tratara num registro qualquer.
E que variedades! Lembrei-me, já agora, por ser final do abril de Augusto e pela insistência como o telefone forçou-me a sair da rede só para ouvir um “desculpe, foi engano” - lembrei-me de crônica fora do estilo de Moreira a tirar partido da “ultrajante invenção do telefone”, nevrose que ele não deixou exclusiva do poeta do EU. Pena que essa crônica tenha se ido com ele.
Também Crispim se queixava da intervenção do telefone nos momentos mais inoportunos, cortando frases ou ideias em formação, como se escrever para ele fosse um prazer de portas bem fechadas. Andava de caderneta e lápis para o surto das ideias.
Quanto a Martinho, devo lembrar que foi sempre comedido em sua própria avaliação. Até mesmo em vazar seus autores e leituras, salvo as de cinema ou autores que migraram do jornal antes do livro e que fizeram o que ele não fez, buscar homizio mais seguro. Mas ninguém se deixasse levar por essa parcimônia. Percorrera o melhor da literatura brasileira e muita coisa estrangeira quase sempre atraído pela versão cinematográfica como Hemingway, só para citar o de sua maior nota, O velho e o mar.
Quando existiam aqui três jornais impressos, gastava a manhã inteira a saber dos outros, sobretudo da cidade, mais para conferir suas andanças, seus reparos, que para saber novidades. Lia por nós todos, e como sabia que muitos não liam ou liam por cima, era ele que fazia o telefone nos acordar para a notícia que suscitasse solidariedade ou nos deixasse numa boa. Lia por nós todos e para todos nós. Nas suas mãos o telefone deixava para trás a má fama de invenção ultrajante.
Nesse amor firme e justo pelas letras dos outros, Hildeberto não esquece seu antigo colega de colégio, Arlindo Almeida,
“de quem li, no dia a dia dos jornais impressos páginas de indiscutível valor a transbordar da fugacidade do tempo e da circunstância, detentora daquele olhar especial que só o autêntico jornalista possui.”
— conclui depois de ressaltar o pendor de Arlindo para as temáticas literária e filosófica, revelado desde o aluno do Colégio da Prata, em Campina Grande. Não cuidou de si, como reclama seu fiel colega de classe escolar, mas deve-se à dedicação de Arlindo, morto precocemente, a coleta possível das crônicas de outro que se consagra como belo exemplar humano, Nathanael Alves, mas que subestimou o belo acervo de páginas escritas em tom de apólogo dirigido a um mundo muito mais carente de amor que a do autor do seu livro de cabeceira, o jesuíta Teilhard de Chardin.
Uma das minhas antigas quizilas com a crítica literária sempre foi a de não encontrar o cronista Genolino Amado entre os elencados nas antologias brasileiras do gênero. O cronista que chegava a nossas páginas para adoçar as noites compridas do revisor, mesmo já iniciado nas “Sombras que Sofrem” de Humberto de Campos, da biblioteca de Alagoa Nova. (Ia dizendo bibliotequinha de Alagoa Nova - que injustiça, que grossa ingratidão!)
Ideal seria que fosse dado a todos sangrar seu substrato lírico, independente de idade ou de estações da vida. Foi o que senti aos primeiros tons da lira amorosa de José Nunes, deixando-se entrar em recaída numa idade em que já nos cansam outros labores.
Nesta idade de releituras, trago às mãos uma obra de Balzac e vem-me à lembrança o esforço da antiga editora Globo, de Porto Alegre, para editar a versão brasileira da “Comédia Humana”.
Com o passar do tempo a gente vai se recolhendo, sumindo dos pontos ou lugares onde foram sedimentadas as mais fundas amizades. Onde está o clube dos meus antigos intervalos de redação? Dos meus dedos de prosa com Dr. Celso Mariz, com Rubin Falcão, com Mário Santa Cruz, com Luciano Wanderley, com Rivadávia Pereira Guedes? O meu Cabo Branco erguia-se desse calcário humano. E ficou neles, tão insubstituível quanto a cal das almas em suas paredes.
Será reaberto amanhã o museu que a Fundação Casa de José Américo consagra a seu patrono. Já era museu ou a inspirar esse ambiente antes de legitimado como fundação cultural concebida e oficializada pelo governo Burity e aberta ao público com representação do Brasil, liderada pelo presidente de então, o mineiro Aureliano Chaves, Clóvis Bezerra na gestão do estado.
Até então aprendíamos por ouvir dizer. O jornal de 1950 pouco acrescentava à feitura do texto além do que se aprendera forçado sob o fogo da 2ª guerra mundial, narrada pelo rádio. José Leal e Dulcídio Moreira improvisavam verdadeira estenografia para não serem passados para trás pelo concorrente, O Norte, que terminou fechando para só retornar como porta-voz da campanha de José Américo ao governo do estado. Lia-se o jornal menos pela notícia do que pela opinião. Daí, muitos Carlos Dias Fernandes serem mais importantes do que o jornal.
Decaído de uma passagem bem-sucedida para mim e o jornal O Norte, voltei ao Correio da Paraíba de 1973, vinte anos depois de ser levado por Afonso Pereira, o primeiro diretor do jornal de Teotônio Neto, a formar naquela equipe fundadora chefiada por Geraldo Sobral.
Folgo em ver o Lajedo do Pai Mateus fazendo o encantamento da arte fotográfica de uma mineira sensível e imaginosa. Ivonete Leite converte a paisagem lítica do nosso Cariri em qualquer coisa de lunar e fantástico.
Antes de fixar morada nesta cidade resguardada de ufanias, retivera-a em dois relances. Primeiro em companhia de meus pais, em 1942, numa promessa que vieram pagar na Penha. Desse primeiro contato, já anoitecendo, resta uma penumbra de copas e de sombras que anulava ainda mais as tochinhas de luz nevoenta sumidas ao longo da praça Pedro Américo. O palacete de janelões imperiais, ao lado, apenas se insinuava, enfumado na noite, só vindo impor-se aos meus olhos de menino gruteiro sob o clarão da manhã seguinte.
Já o conheci economista no quadro de qualidade da Companhia de Industrialização, trabalhando, um birô pegado com o meu, ele na sua assessoria, eu usando a primeira horinha do expediente para escavar a minha crônica diária. Foi numa fase, ajudada por Patrício, em que mais propagamos o esforço desenvolvimentista da Paraíba com seus incentivos vocacionais na busca de projetos industriais internos e externos. Juntos, ao lado de Marcelo de Figueiredo Lopes, Francisco Antônio e Ernani Mesquita, elaboramos cartas de apelo à indústria calçadista de Franca e do Rio Grande do Sul, destacando como opção a vocação histórica de Campina Grande. Viajamos juntos, a convite de Natal e de São Luiz, difundindo a experiência da Paraíba, estado do mesmo porte econômico, com o seu programa de galpões multifabris.
Voltaram ao calcário original, raspados a cinzel, os pelicanos do Cruzeiro. Os atuais guardiães da obra franciscana, o mais precioso monumento sacro da Paraíba, conseguem motivar pessoas e instituições para a conservação da nossa principal riqueza artística. E prossegue o apelo na televisão, o que é um bom sinal.
Com os divertimentos públicos do Natal transferidos para a Lagoa e nela ainda mantidos ninguém sabe até quando, lembrei-me, temeroso, de Augusto dos Anjos, do seu pequeno busto sob as vênias de um tamarindo para tanto plantado e a mostrar que tamanho não é documento, desde que se deva à arte de um Umberto Cozzo a quem, num ano qualquer da década de 1940, a primorosa escultura fora encomendada.
Vitória Lima, que entre outros dotes e conquistas de justo orgulho se confessa plena com o de professora (foi como se deixou ver ao ser homenageada pela UBE local, em ato extensivo a Solha e ao autor carunchado destas notas), acaba de dedicar suas duas últimas crônicas à Amizade.
Em crônica de alguns anos atrás, Francisco Cartaxo Rolim, secretário de planejamento no governo Ivan Bichara (1975/78), não fez por menos, não se conteve ao fim de um de seus retornos a Tambaú: “Talvez a Paraíba não se dê conta do bem que faz a si mesma. Esse ar de província exibido no visual das praias de Cabo Branco, Tambaú, Manaíra e ao longo da orla até Cabedelo. Bendito seja!”
A cidade ainda não acordou. Atrás de mim, pelo retrovisor, isenta e limpa de tráfego, a avenida Epitácio assume uma imponência que o sol da manhã só faz coroar. Sou motivado a deixar o carro e curtir minha surpresa pelo ângulo do canteiro central. Assim, sem ninguém, absoluta em sua quietude de asfalto, eu nunca fizera ideia. Morando perto há décadas, vivendo o mesmo amanhecer, nunca havia reparado com esse olhar. A avenida deserta e por isso mesmo plena, absoluta, roubando a presença dos demais componentes urbanos.