Parte III
Um banquete na abadia
Um banquete na abadia
Tenho verdadeiro fascínio por abadias. Antes havia lido muito sobre a primeira que iria conhecer: a Abadia de Fontenay (Borgonha). Ela foi fundada no século 12, mais exatamente em 1118, por São Bernardo de Claraval que pertencia à ordem dos monges cistercienses, criada em 1008. Eles abandonaram a vida de fausto em Cluny, e abraçaram a vida simples e reclusa.
Dentre as várias abadias criadas por São Bernardo, esta é considerada a que se encontra em melhor estado, tombada pela UNESCO. É impressionante a sua conservação: claustro, dormitório dos monges, capela, corredores, todos em excelente estado. O estilo arquitetônico é classificado como românico. Os arcos e pilares são uma atração à parte. Os tetos apresentam as nervuras características das construções medievais, chamadas tecnicamente de "abóbadas em cruzaria", como me ensinou o arquiteto Germano Romero.
Os claustros ficam no térreo e os dormitórios no andar superior. Estes são salões amplos, enormes mesmo! E ascéticos: a fragilidade das janelas dá uma boa idéia do frio que deviam sentir os monges, dormindo em seus colchões de palha, pois não havia camas e o ambiente não era aquecido. Que horror! Acredito que todos devem ter ido para o céu…
A igreja também é muito simples. Totalmente despojada, obedecia à filosofia de que nada deveria conter que desviasse a atenção dos monges, ou que os distraísse. Por isso, os capitéis eram despidos de qualquer ornamentação.
No scriptorium os monges copistas passavam a maior parte do dia escrevendo, analisando e copiando manuscritos. Os iluministas, então, realizavam seus belíssimos trabalhos: as "iluminuras". A sala contígua era onde os escrivães podiam aquecer as suas mãos.
O átrio é muito bem ajardinado, assim como os jardins em torno são floridos e cultivados com ervas medicinais. Tem uma grande horta onde se plantavam ervas comestíveis.
Do lado de fora dos aposentos da abadia, porém ainda dentro do seu espaço, existe uma forja siderúrgica, onde eram fabricados todos os instrumentos metálicos de trabalho: facas, foices, pás, ancinhos. E num lago interno há uma criação de peixes, entre ornamentais e comestíveis.
A abadia dispõe ainda de uma padaria e hospedaria para andarilhos e peregrinos visitantes que chegavam cansados, onde eles recebiam abrigo e refeições dos monges.
O local dispõe também de um pequeno prédio onde se localizava a prisão da abadia. Calma: não era para os monges desobedientes, mas para criminosos da região, que ficavam sob a jurisdição da Abadia de Fontenay.
O que mais chamou a nossa atenção, percorrendo o seu interior, foi o silêncio. Tínhamos a nítida sensação de que o silêncio era tão presente, tão notável, que até dava para ser ouvido! Era algo quase tátil!
Há uma boa explicação para o excelente estado de conservação observado pelos visitantes. A Abadia de Fontenay, hoje, pertence à família Aynard, que a conserva muito bem, mantendo todas as estruturas rigorosamente limpas e bem cuidadas, com vigilantes presentes em todas as suas acomodações.
A família explora de maneira eficiente o turismo, o simpático restaurante e a visitação sempre termina em uma pequena e estratégica loja, rica em publicações e souvenires.
Como curiosidade, a excelente preservação da Abadia de Fontenay contribui para que ela fosse cenário para o filme O Cyrano de Bergerac, de 1990, com Gerard Depardieu, que teve um grande sucesso nas telas do mundo todo.
Para chegar até a Borgonha, partindo cedinho de Blois, havíamos percorrido um divertido emaranhado de estradas vicinais, parando em moinhos d’água, pequenos vilarejos, pequenas tabernas, restaurantes regionais e feiras livres onde comprávamos lembranças e outros artigos. Inclusive comestíveis.
Mas isso me gerou um grave episódio diplomático, que quase resulta em tragédia familiar: a minha separação! Explico melhor.
Ao longo do trajeto até chegarmos à abadia, viajando por cidadezinhas, vilas e povoados, encontramos vinhos caseiros, melões da terra da minha cunhada Arlette, a Normandia, que são dulcíssimos e cheirosos. Pêssegos enormes com a pele bem sedosa. Cogumelos de todos os tamanhos e sabores. Uvas, azeitonas deliciosas, azeites trufados. Por aí.
Eu, por exemplo, provava e comprava melões, foie gras, vinhos e queijos caseiros. Estes, para mim, quanto mais fedorentos, mais gostosos são. É o que se espera de um queijo francês que se preze. E tudo o que não conseguia comer logo, guardava numa ampla sacola, adquirida com este objetivo.
Quando chegamos à abadia de Fontenay encontramos fechada: só abriria ao meio dia. Então sentamo-nos embaixo das árvores da frente para esperar, à margem de um canal, onde gansos e cisnes barulhentos disputavam arengando tudo o que se movesse ou fosse considerado comestível.
Foi quando eu recebi uma comissão composta pelos companheiros de viagem, inclusive por minha esposa. Logo Ilma já pensou? Devia ser grave, pensei.
Motim! Eles me entregaram um abaixo-assinado em que exigiam que eu me desfizesse de todas as gostosuras que havia acumulado ao longo da viagem: queijos, melões, foie gras, doces, escargots... Tudo! Pois já não aguentavam mais a deliciosa miscelânea de odores dentro da van. Só por isso... Que besteira! Narizes sensíveis…
O que fazer, pensei? Eram sabores inimagináveis por aqui. Só por causa de um cheirinho de nada, ora bolas!
Foi quando propus uma solução salomônica: com todos os alimentos guardados realizaríamos um pic-nic na frente da abadia, enquanto aguardávamos a sua abertura.
Excelente idéia, todos gostaram. Forramos uma mesa tosca que lá existia. Abrimos algumas das garrafas de vinho e espumantes, e devoramos tudo o que eu havia acumulado ao longo da viagem. Até os profiteroles, e as compotas de pêssego e de figo. Uma delicia!
Foi um senhor banquete! Marcou de forma indelével a nossa visita à Abadia de Fontenay. E não teve nenhuma repercussão orgânica sobre nós, viandantes!
E assim pudemos nos despedir em paz da Borgonha!