Parte II - O Açude Velho O garoto tinha atingido o alto e já não estava longe de casa, sendo-lhe inútil agora correr ou apressar o pas...

A Caieira do Vivente (Parte II)

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Parte II - O Açude Velho

O garoto tinha atingido o alto e já não estava longe de casa, sendo-lhe inútil agora correr ou apressar o passo, pois estava ensopado, fora alcançado pelo temporal no meio do caminho, onde se pôs às pressas depois que o homem, quase gritando lhe ordenara correr para casa Senão vai adoecer e sua tia põe a culpa em mim / não se esqueça da panela Debaixo do que parecia ser o céu se abrindo e fechando em questão de segundos, produzindo interferências no som apenas para não deixar escapar mais que estilhaços de ira vocálica, de imprecação escandalosa e fragmentada, e isto numa escala de som quase insuportável – brados terríveis, entrecortados, de algum deus antigo e esquecido, mas que dele não fosse aquilo resultado de nenhuma ação presente, mas apenas o eco ou memória virtual auditiva de situações remotas e incompreensíveis, sendo as falhas de voz defeitos naturais de registro, causados pelo tempo.

Um pouco tremendo de frio, com a panela entre as mãos, parou e voltou-se meio que de lado, girando a cabeça para olhar o que tinha deixado para trás. Dali podia ver a baixada, um pequeno vale irregular e esburacado que resumia quase todo conhecimento que tinha do mundo. Durante os estios o lugar virava uma espécie de olaria pública, mas, com as chuvas, logo se transformaria, para ele, num irresistível caldeirão de vida ativa e diversificada: era o seu tão querido Açude Velho.

A subida terminava ali, diante de uma fileira de quintais de muro alto, todos com seu longo portão de tábuas encravado sob o pórtico – um dente na linha superior do muro ( esses portões viviam sempre fechados por causa dos animais criados em quintal). Do lado oposto do vale, uma serra restringia de imediato o horizonte, deixando entrever grandes lajedos e rochas (como grandes retábulos brancos, que permanecessem sempre indevassados pela vegetação), mas a visão agora era confusa com a cornija de água lhe abatendo os cílios, e o vale lhe pareceu uma depressão difusa e emaranhada sob a cortina de chuva.

Por algum escrúpulo próprio dos muito jovens, o garoto não queria dar a entender que observava o amigo, mas mesmo assim libertou uma das mãos e passou-a no rosto, em seguida, mantendo os olhos entrecerrados voltou-se de vez para o vale. Mas, num primeiro momento, tudo que consegue distinguir – um pouco abaixo de onde se encontrava – é o velho e enorme trapiazeiro, cercado de penhas, a debater-se soltando folhas ressecadas na direção das pancadas de vento. No entanto, um pouco mais além, a perder-se no vale, não havia bem como distinguir as coisas. Mas os trovões agora repercutiam afastados. O garoto correu então para debaixo do grande sapotizeiro que estava a sua direita e ali ficou, tentando ver melhor.

A seus pés, os iniciais filetes de água que se formaram na direção abaixo já não eram divisíveis, a água agora descia numerosa e violentamente salpicada pela chuva em busca dos poções, uma grande parte dos quais até bem pouco tempo, ressecados. O garoto sabia que logo estariam cheios, pois na margem oposta do vale a afluência era ainda maior, havia mesmo uma cachoeira lá, à altura de onde naquele momento deveria estar o amigo, ressurgindo sempre nas chuvas mais fortes. Pela ação e força dos ventos, a paisagem parecia sufocar por trás de várias camadas de cortinas corrediças. Num momento de maior concentração, porém, consegue distinguir a caieira.

Na realidade, uma pequena montanha de tijolos com mais de dois metros de altura e quatro de comprimento, a metade disso na largura, porem a visão que tinha dali dava para essa dimensão menor, e com aquela massa de água interpondo-se, não passava de um ponto acinzentado, querendo sumir da visão. Mas quanto ao amigo, pelo visto, desaparecera completamente.

Naquele momento, porém, o aguaceiro emprestava uma claridade tardia e inesperada ao vale, um último revérbero que não deixava dúvida quanto ao que estava por vir: a noite cairia rápido. O menino lembrara-se de que a tia lhe havia dito para não ficar embaixo das árvores em céu relampejante, mas agora os raios faiscavam distantes, nos limites para onde a chuva parecia estender-se.

O garoto tinha então um sentimento dúbio diante do acontecido, de um lado sabia que o amigo não teria como lhe pagar a semana de trabalho sem a venda dos tijolos, conforme o prometido, de outro, estava feliz com a volta das chuvas: elas tinham o poder de rapidamente transformar aquele pequeno mundo em ocasiões riquíssimas de surpresas, em fatos novos e surpreendentes que se dariam bem debaixo de seus olhos. É que as águas se juntariam lá embaixo e logo aquilo seria um lugar de banhos intermináveis, um lugar para minhocas e varas de pescar, para brincadeiras e disputa de habilidades dentro da água.

Aquilo o deixava feliz, pois – sabia – as melissas, os marmeleiros, logo estariam interrompendo os caminhos. Canafístulas se debruçariam à sua passagem, e também as faveiras-do-mato, que agarram nas roupas.

O ar seria insistentemente cortado por rápidas lavandeiras, papa-capins, pássaros-de-arroz e uma infinidade de outras aves.

De manhãzinha os porcos sentiriam o cheiro viçoso das beldroegas e romperiam as varas do chiqueiro para vir fuçar por ali. Cães magricelas, de terreiro, possivelmente deitados próximos de algum monturo para aproveitar o calor de uns restos de brasas ali atiradas, pressentiriam no ar que havia algo de errado com aquilo e latiriam para eles, mas seriam ignorados.

Como de costume, em manhãs estivais as donas-de-casa soltariam seu plantel de aves por algumas horas para que caçassem larvas e bicassem sementes de melões-de-São-Caetano, e durante os intervalos elas ficariam catando pelo chão as melhores pedrinhas para reforçar o trabalho digestivo de suas moelas.

Um galo caminharia imponente e algo pensativo entre elas, erguendo hesitante uma das patas e demorando a repô-la no chão, mas arrancaria de repente numa corrida desajeitada e logo teria um louva-a-Deus preso no bico.

Possivelmente, uma das galinhas iria ciscar embaixo do cercado de avelós e poderia ocorrer de ali localizar uma suculenta minhoca, mas teria que ser rápida com isso, se quisesse garantir sua refeição evitando uma disputa acirrada com as outras.

Os pequenos cachorros-d’água, de ordinário abandonariam sua hibernação subterrânea e iniciariam uma corrida para a água, mas teriam de escolher boa hora para isto: de preferência uma em que não tivessem que passar pelo crivo de aves que espreitam em locais privilegiados - um anum ou cancão -, ou pela curiosidade de algum menino intrigado com o que havia de familiar naquela forma.

Mal os poções emendassem uns nos outros, e a linha d’água fosse subindo até quase encostar nos primeiros galhos do trapiazeiro, os sapos e rãs já teriam iniciado a sinfonia do amor que seria ininterrupta durante os primeiros dias e noites, e mais escassa e prudente depois do baile inicial de acasalamento, quando a Grande Gia haveria de encontrar seu apertado refúgio de mãe futura em alguma fenda de rocha às margens do açude: em lugar assim seus desafetos naturais poderiam ouvir um coaxar ocasional e até perceber um brilho de olhos no escuro, mas não saberiam como fazer para que saíssem de lá.

Do outro lado do vale não moravam pessoas, e por isso as coisas por lá seriam menos previsíveis, os personagens menos corriqueiros.

O elegante e rápido bico-doce serpearia por lá sem jamais dá qualquer chance as baleeiras dos meninos, que se contentariam em tentar alvejar lagartixas.

Um misto de dragão e crocodilo em escala reticente – o tejuaçu –, faria cuidadosa aparição com sua incansável língua testando as possibilidades do meio-dia, e caso não houvesse pelas imediações alguma espingarda de soca, viria beber naquela margem mais profunda. Cágados dormitarão ao sol nas pontas de pedra que ficam à tona d’água, próximas à margem, para acumular o calor que lhes permitirá uma noite inteira no fundo lodoso. Estarão com isso, sem saber, testando o fôlego de algum banhista que mergulhará distante, virá por baixo da superfície e subirá rente às pedras numa tentativa, quase sempre frustrada, de conseguir lhes por a mão nos cascos antes que percebam qualquer coisa e se deixem escorregar de volta para a água.

Um pequeno pégaso negro a que chamam cavalo-do-cão – pequeno para tanto, mas enorme em se tratando de um inseto –, com seu vôo baixo e em círculos, certamente irá meticulosamente esquadrinhar uma área próxima, vistoriando entre caules encrespados de gravatás e bromélias, e não raro será posto a correr dali por um dos bravos mangangás que nunca aceitam ser importunados – mas não cessaria o incansável voejar antes de localizar a negra tarântula que lhe é o secreto motivo de tanta atividade, imobilizá-la numa certeira aguilhoada, e depois, sobre ela, fecundar seus ovos.

Ao crepúsculo da noite, estranhos sons subiriam do lago e seus arredores para avisar-lhe, a si ou a algum outro retardatário, que era a hora de abandonar o local, e, caso o aviso não surta efeito, de qualquer maneira as levas de invisíveis mosquitos acabarão por convencê-lo de que não existe hora melhor para deixar o ambiente em paz. Mas nem isto seria o bastante para que aves aquáticas – galinhas-d’água, mergulhões – se sentissem mais seguras para procurar seu jantar em outro lugar que não fosse um extremo de margem mais afastada, movendo-se cautelosas entre caniços, no meio do capinzal semi-submerso, ou por trás de alguma moita de mufumbos, quando em rápidos mergulhos levariam alvoroço e privariam de sono os cardumes de pequenos peixes – piabas, condelos, suvelas –, que provavelmente não tinham como saber que aquele não era o melhor lugar, nem o momento ideal para sua merecida letargia restauradora de forças.

Com um pouco de sorte voltaria a ouvir na noite o berrar monocórdio e meio que nasalado da enorme cobra-de-veado, uma voz que lhe pareceria monótona e distante, algo afeminada e cheia de inconfessáveis propósitos, quando novamente o amigo lhe chamaria para ver mais próximo (e como num sonho) aquele corpo que viera dos lados da serra - o bojo engrossado das recentes presas devoradas. Tornaria a ver, quem sabe, aquele rolo sinuoso, fantasticamente sinistro e amarelado à luz da lua, e que seria visível pendente dos galhos negros do trapiazeiro parcialmente submerso, e a hum palmo ou dois do espelho imóvel da água.

O amigo. Voltou a lembrar-se dele. Mas agora tinha que correr para casa, anoitecia rapidamente.
Leia a Parte I aqui
(continua no próximo capítulo)

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