Num shopping sem muito alvoroço, facilitando o olhar para o que resta do Cabo Branco, permaneci umas duas horas num luxo cintilante de p...

Enquanto fui ali

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Num shopping sem muito alvoroço, facilitando o olhar para o que resta do Cabo Branco, permaneci umas duas horas num luxo cintilante de pavimento ocupado por consultórios médicos. Acabara de me desligar, em casa, do noticiário assustador exposto pela tragédia das enfermarias e UTIs em que o país se debate.

Saí com a filha Ciele, eu mesmo dirigindo, uma máscara por cima da outra e, por trás dos óculos, bem atento ao tráfego e às cenas que remanesciam do noticiário.

- Trouxe o vidrinho de gel?

Afirmei com o olhar na avenida mesclado pelas interferências imediatas do percurso e, menos diretas mas muito fortes, produzidas pelo estrago geral e imediato nas vidas e nas almas.

Não é fácil lembrar da existência de sol sob um túnel fechado por sombras tão espessas e sem sinais de saída como o que se interpõe, agora, com moribundos fora das enfermarias, nos corredores de hospitais e emergências, filas e mais filas no aguardo da vaga cedida por alta ou por morte.

A governadora do Rio Grande do Norte, de olheiras fundas, fala de voz embargada, nos aproximando ainda mais dessa hora minguada em que vê seu povo, o mesmo povo do lado de cá a que ela também pertence, antiga assistente social de liderança, ao lado de Madalena Fragoso, Lúcia Braga, elas todas discípulas de Jandira Pinto, mulher de forte espírito público dedicado aos menores abandonados até encontrarem Pindobal, escola correcional que ela transformou, sem castigo, num centro formador de artífices e de homens. Se cultivássemos uma memória mais fiel e justa ela teria sido lembrada nesse 8 de março.

Enquanto aguardo o atendimento, exploro, bem sentado, a vista que a ampla recepção oferece. O mar sem fim trazendo-me a lembrança do embarque de Nassau na volta definitiva para a Holanda. Ninguém explica por que veio embarcar na Paraíba, dizem uns que em Cabedelo, outros da enseada do Cabo Branco.
E lá vem um bando rumoroso de garotos e garotas a me tirar do holandês. Ocupam todas as poltronas, numa alegria de recreio, imprensando-me a um canto. Levanto discretamente, não em minha defesa, mas para deixá-los à vontade. Um deles se levanta e manda os outros saírem, deixando-me confuso.

- Pode sentar, vô, que a gente vai embora. E voltam a seu recreio, uns seis ou sete, apenas duas mocinhas de máscara, uma delas debaixo do queixo.

Dispersa um pouco a sombra que me cobria, começo a me lembrar dos que, como Bolsonaro, chamam a isto “paranoia”, mas o refresco dura pouco: o elevador se enche, voltam a imprensar-me, desta vez gente grande, bem vestida, falando e rindo por cima da máscara. E eu a julgar que a imprevidência era mais dos que têm de sair para ganhar ou arranjar a provisão do dia. Quarenta milhões de brasileiros estão sujeitos a isso, segundo o Ipea.

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  1. É exatamente isto mestre Gonzaga Rodrigues👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏
    Paulo Roberto Rocha

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