“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena” Fernando Pessoa Foi no "Bar e Restaurante do Damião", em Alagoa Grande, num ...

Sinfonia dos Sapos

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“Tudo vale a pena quando a alma não é pequena”
Fernando Pessoa

Foi no "Bar e Restaurante do Damião", em Alagoa Grande, num dia nebuloso, que ouvi a sutileza de uma sinfonia de sapos e pererecas, sublinhada pelo canto dos grilos, coadjuvantes da noite de um dia frio.

Do lado, um terreno encharcado pelas águas da chuva, o seu gramado saturado pela umidade. Era inverno. E foi imenso! Parecia estar numa lua, (na verdade, de mundos distantes ou no mundo da lua), flutuando no passado, estando no presente na terra de Jackson; Osório Paes, poeta de “Oh! Palidez”, música cantada pelo parceiro e intérprete J. Monteiro e pelo
cronista Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil; Dão Alfaiate, o solitário alfaiate Dão, que costurava os dias com cordas de violão; Toquinha; Oswaldo Trigueiro; Soldado Doido; João Cego da difusora, o comunicador que cerrava os olhos da noite, prometendo voltar no outro dia com suas “lindas páginas musicais”; Pimentinha; amigo Otávio Domingos; Profeta Bruno, filósofo ambulante que lia a mão das crianças, e tudo de mão beijada, sem cobrar nada, além de uma mísera pataca de moeda. Tantos foram os que entraram em cena naquele momento de reminiscências!...

Alagoa Grande, dentre outras coisas, tomada por uma mitologia popularesca, era conhecida (e ainda é), como “a cidade onde os sapos não cantam”. É que um dia, conta a lenda: Frei Damião, em frente da igreja matriz, "ordenou" que os sapos da "Lagoa do Paó" parassem de cantar, quando fazia o seu sermão pra centenas de fiéis. No entanto, ninguém o viu delegando essa ordem aos batráquios, nem tampouco daria pra os sapos ouvirem, lá na lagoa, as suas ordens e balançarem as suas cabeças sob seus poderes eclesiásticos. Apesar de ser um missionário temido por todos, e seus milagres e ensinamentos sacrossantos cumpridos e respeitados, as suas ordens dirigidas dessa vez aos sapos não foram cumpridas pelos próprios.

No entanto, até hoje, o fato ficou como crença que os fiéis do catolicismo quiseram levar a cabo, mesmo escondendo e turvando na fé um ledo engano...

Hoje os seus descendentes aquáticos, os filhos, netos e bisnetos dos sapos, coaxam freneticamente. Teria sido por não terem sido avisados da ordem dogmática que tentou impor o freio rijo, evocado por aquele conhecido capuchinho? Também ninguém pensou, que aquele momento, era o seu canto a única ferramenta que eles tinham pra fazer adormecer as suas noites na exuberante “Lagoa do Paó”.

- Ou foi a perseverança de um certo mito impregnado pelas fantasias da memória cristã? – poderia alguém ter perguntado.

- Pode ter sido.

Mas, de onde eu estava, configurei o Frei Damião, do céu, liberando o seu xará Damião, da terra, dono daquele bar e restaurante, para abrir as comportas de uma megarreminiscência sápida, para que eu, conterrâneo saudoso de tantos invernos, ouvisse, em silêncio, um opus extasiante que marcou uma noite superinesquecível e, inacreditavelmente, líquida e de emoção.

Gravei o concerto daquelas horas. O meu celular foi cúmplice daquele momento mágico, solidário à minha empatia com as mesmas melodias do passado. E, enfim, reproduzi na memória tudo aquilo que já estava adormecido, descansado, mas impregnado e, indisfarçadamente, grudado no sensório, no subconsciente, na alma de antigamente. E como foi bom senti-la de novo!

Ao sair de lá, mesmo sem ter tomado um pingo de álcool, isento que sou desses artifícios embriagantes que fazem - às vezes - aumentar as visões fantasmagóricas das coisas, mesmo assim, embriagado só pelo prazer de reviver, dei um beijo em mim, na minha vida, um beijo nunca distante, resguardado naquelas águas do bar e restaurante de Damião que moveram montanhas e removeram mil instantes como se tivesse ressuscitado sem nunca ter morrido, naquela hora, feliz de amplidão e completude.


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  1. Belo texto , meu amigo Saulo.Ainda existe em nossa terra vários sapos que continuam a calar o canto do seu desenvolvimento.

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  2. Ainda hoje,está gravada em minha memória esse conto folclórico da maldição dos sapos cantantes da velha Lagoa do Paó, atribuída a Frei Damião.
    (rsrs)

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