Sobre o Movimento de Maio de 1968, na França, Jomar Souto, poeta paraibano pertencente à Geração 59, escreveu: “ (...) Lembro bem se m...

'Os vivos (?) e os mortos', de Fernando Monteiro

Sobre o Movimento de Maio de 1968, na França, Jomar Souto, poeta paraibano pertencente à Geração 59, escreveu:

“ (...) Lembro bem se me lembro, você coberta de giz, chorando lacrimogênio num bulevar de Paris”.

Eu mesmo, por ocasião do autoexílio de Caetano e Gil, quando ambos se viram forçados a migrar para Londres, letreei uma composição de Cleodato Porto, “Monstros soltos por aqui”:

“Minha mãe eu vou pra Londres me encontrar comigo lá buscar o que eu perdi escrever ouvir falar Londres adress longe minha mãe eu vou pra Londres e de lá uma lã por na rispidez deste amor Edgard Allan põe nevoeiros e cinzentos monstros soltos por aqui minha mãe eu vou partir Das chaminés de Londres o sol sai e salpica o céu minhas pupilas istmos e ilhas neva neva aqui never never aqui minha mãe eu vou partir”.

Inscrita num dos festivais de música da época, aqui em João Pessoa, “Monstros soltos por aqui”, como não poderia deixar de ser, foi censurada.

Pois bem. Fernando Monteiro**, cineasta, ficcionista, poeta e o que mais deseje ser esse pernambucano de Recife, nascido em 1949, escreveu “Os Vivos (?) e os mortos”, que dista anos-luz do poema de Jomar e de minha letra, pois, como um correspondente de guerra, o narrador se situa no olho do furacão, no epicentro dos episódios, cobrindo-os sem as “muletas” das metáforas ou do “lirismo bem-comportado”. Ou seja, ele não investe na “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”, mas na vida como ela é e foi, pois o que narra é “sempre presença da coisa dita e não discurso sobre a coisa”. E este é um dos muitos méritos do livro, a faculdade de, remontando aos anos da ditadura militar, trazê-la de corpo inteiro, na medida em que, mais do que um “sismógrafo de si mesmo”, o narrador amplia o raio de ação do poema e o converte numa caixa de ressonância dos mais profundos e coletivos sentimentos.

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Poema em prosa, se for levado em conta que o termo poema remete à matéria (poesia) e o segundo à forma, à disposição gráfica das letras sobre a textura do papel, “Os Vivos (?) os mortos” só excepcionalmente possui características do gênero lírico, deferindo-se daí que talvez não seja de todo correto, pertinente, a denominação de eu lírico para o sujeito emissor do poema. Pois, com efeito, muito mais do que especular a propósito de estados d’alma, o sujeito emissor de “Os Vivos (?) e os mortos” narra uma história com ação e com personagens bem aos moldes do gênero épico, embora não seja esse o momento para discutirmos sobre uma questão tão complexa quanto o é a dos gêneros literários.

Fernando Monteiro vem de uma experiência bem-sucedida: “Museu da noite”, poema monotemático que trata a respeito do incêndio no Museu Nacional. Já com “Os Vivos (?) e os mortos”, ele remonta à ditadura militar, mais especificamente à Casa da Morte, situada na Rua Arthur Barbosa, número 68, no Bairro de Caxambu, Petrópolis, onde presos políticos eram submetidos à tortura e muitas vezes executados sumariamente por um tribunal de exceção composto por um pequeno grupo que decidia sobre o destino dos que se opunham ao regime. E isto a ponto de um major, à imagem e semelhança de um Dante Alighieri tupiniquim, “substituir” a inscrição no frontispício do Inferno de “A Divina comédia” – “Deixai toda esperança, ó vós que entrais” – pelo prosaico e paranoico “Ninguém sai vivo dessa casa! ”.

Mas o texto de Fernando Monteiro saiu vivo, pois a literatura, quando bem realizada, torna-se portadora de uma saúde de ferro, inabalável, mesmo quando narra as atrocidades de Auschwitz, da Casa da Morte ou do desgoverno Bolsonaro. Isso sem contar que, além do criador e da criatura, Fernando Monteiro, o cidadão, também poreja saúde, vigor, justamente por não se enquadrar naquilo que Dante reservou para os neutros ou indecisos em tempos de crise: o Ante-inferno ou Vestíbulo, local em que permanecem os rejeitados por Deus e pelo demônio, que dedicam a eles a mais fria indiferença, o maior dos desprezos, cujas gélidas labaredas queimam mais do que o mais abrasador dos fogos.

Faz algum tempo, falando a respeito da obra do artista plástico Flávio Tavares, lembrei-me de Dalton Trevisan, para quem “Só a obra interessa. O autor não vale a personagem. O conto é sempre melhor do que o contista”, observações sobre as quais o leitor pode concluir que o texto possui um caráter mais sólido do que quem o concebeu. Mas não é bem assim, pois autor e obra algumas vezes possuem um caráter inteiriço, sem jaça, da melhor cepa, a exemplo do que ocorre com Fernando Monteiro e a sua ficção; com Fernando Monteiro e a sua poesia; com Fernando Monteiro e o seu cinema.

Enfim, na esteira de Walt Whitman do livro “Folhas de relva”, quem é tocado pela obra de Fernando Monteiro – e quase todos o são – toca no homem Fernando Monteiro em toda a sua inteireza e plenitude.

*Prefácio do livro “Os Vivos (?) e os mortos”, de Fernando Monteiro, ilustrações de Chico Díaz, Sol Negro Edições, Natal, Rio Grande do Norte, 2021.

**Fernando Monteiro, escritor, poeta e cineasta, nasceu na cidade de Recife. Conquistou vários prêmios quer com a sua poesia, quer com a sua obra de ficção, entre eles o da revista Bravo!, além de ter sido o homenageado do sétimo Festival de Literatura (“A Letra e a voz”) e da Bienal Internacional de Literatura de Pernambuco.

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  1. Meus sinceros aplausos: para o nosso célebre poeta que dá nome a aeroporto, Sergio de Castro Pinto; e para o ambiente de Leitura, por manter-se lúcido com a realidade que nos envolve cada vez mais apertado.

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