Tenho um amigo-jardim. Ele planta flores nos meus dias. Cria quarentenas imaginárias, lugares povoados de rara beleza, fartas doses de poe...

Um amigo-jardim

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Tenho um amigo-jardim. Ele planta flores nos meus dias. Cria quarentenas imaginárias, lugares povoados de rara beleza, fartas doses de poesia. Ensinou-me muitas coisas — a mais importante delas sobre encontrar conforto e alegria nas pequenas dádivas escondidas no cotidiano.

Precioso amigo este que me salva nos dias árduos, com horas vestidas de nevoeiro. Quando tudo passar, tenho certeza, muitos de nós terão dificuldade para lembrar o que fazíamos e como vivíamos nestes tempos de medo e solidão.
Ficarão perdidas muitas horas de vida na bruma de semiesquecimento e cansaço.

Por isso empenho-me para concentrar todos os meus esforços nos seus conselhos simples, nos seus pequenos presentes dedicados à arte de bem viver. De vez em quando este amigo me mostra fotos encantadoras. Uma caneca fumegante de café, uma dourada fatia de bolo sobre a mesa, um vaso de flores na janela de uma rua no Rio de Janeiro, túneis de folhas, ruas da Grécia e o mar turquesa na Polinésia. Guardo-as catalogadas num lugar seguro, fora do alcance das hienas.

Por vezes, mesmo este amigo fraqueja. Então me envia mensagens tristes. Sua voz embargada me emociona. Lamenta pelos mortos, pelos doentes, pelos amortecidos do espírito. É um pedido de socorro, um gesto de rendição de quem já não deseja enfrentar tantos desafios. É então a minha hora de devolver-lhe os presentes.

Por isso hoje lhe escrevo. Para dizer que fique firme. Não é hora de desistir. Quando as baixezas e bravatas crescem, é a hora exata para não se curvar. Se outros aderem à loucura, é tempo de pôr a sanidade como candeia em lugar destacado. E se um vírus espreita do lado de fora da porta, reforce as fechaduras.

Ontem saí pelo jardim da minha casa, a lembrar de você. Parecia um oásis, indiferente ao tumulto do mundo externo. Lírios amarelos e vermelhos, flores roxas, rosas e jasmins enchiam o ar neste fim de primavera. Um céu azul puríssimo combinava com o silêncio. Ri de um pássaro magrelo a correr pela grama; e do caramanchão, tão descabelado quanto nós nesta quarentena. Vi abelhas, borboletas e um beija-flor — precisava te contar isso.

No centro do jardim tem um chorão, um pinheiro e uma árvore de bordo. No chorão moram um esquilo marrom e (diz a lenda) um duende, dois gnomos e um leprechaum importado da Irlanda. Nunca os vi, mas ontem parei sob a árvore, disposta a evocar
os seres imaginários. Não deu, pois me distraí com uma brisa que me revirou os vestidos e fez desabar uma chuva de folhas amarelas sobre os meus cabelos. Saí recitando o Caeiro: às vezes ouço passar o vento; e só de ouvir o vento passar, vale a pena ter nascido.

Um outro amigo, tão querido quanto você, muito tempo atrás me lembrou de, nas horas angustiantes, utilizar sem limites a frase final de Candide ao Dr. Pangloss, no Cândido, de Voltaire: “Bem observado, mas vamos cultivar nosso jardim”.

Portanto, fique firme e venha respirar comigo em meio às delicadezas humildes do jardim.

Não fraqueje e cuide-se bem. Você me prometeu um encontro épico no d’Orsay, numa quinta à tarde de um verão futuro, com trilha sonora de Michel Legrand e coreografia a la Les Parapluies de Cherbourg. Eu anotei no meu caderno amarelo. Tudo o que anoto ali se converte em realidade (ou literatura).

Eu cuido de você e você cuida de mim. Nós cultivamos flores em nós.

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